Verdades infames

Discurso de Thomas Bernhard por ocasião da outorga do Prêmio Georg Büchner. Darmstadt, 1970 d.C.

Tradução de Sergio Tellaroli. Companhia das Letras. 

oferecimento

 

 

 

A despeito de uma relação sempre conflituosa com a crítica e sobretudo com seu país, a Áustria, Thomas Bernhard foi agraciado com importantes prêmios literários ao longo de sua carreira de poeta, contista, romancista e dramaturgo. Cerca de uma dezena deles lhe foi concedida de 1964 a 1988. Acerca desses prêmios, das autoridades que lhes concederam e das respectivas cerimônias de premiação, Bernhard manifestou-se por escrito em 50 páginas datilografadas que pretendia entregar ao seu editor, Siegfried Unseld, em março de 1989, para publicação. O título, Meus prêmios. 

 

Ilustres presentes,

Aquilo de que falamos não foi investigado; não vivemos, mas conjecturamos e existimos como hipócritas, desconcertados, numa fatal e, em última instância, letal incompreensão da natureza, uma incompreensão em que hoje nos perdemos graças à ciência; os fenômenos nos são mortais, e as palavras que, por desamparo, manipulamos em nossa cabeça, milhares, centenas de milhares de palavras gastas, perceptíveis em todas as línguas e em todas as situações como mentiras infames derivadas de uma verdade infame, ou, ao contrário, como verdade infame derivada de mentiras infames; as palavras que dizemos e escrevemos a nós mesmos, que ousamos silenciar quando falamos; as palavras feitas de nada, palavras que nada são e de nada servem, como bem sabemos e ocultamos; as palavras às quais nos aferramos, porque enlouquecidos pela impotência e privados de toda e qualquer es¬ perança pela loucura; as palavras apenas infectam e ignoram, apagam e pioram, envergonham e falsificam e aleijam e ensombrecem e obscurecem as coisas; vindas da boca ou do papel, elas profanam por meio daqueles que as profanam; o caráter das pala¬ vras e de seus profanadores é desavergonhado; o estado de espírito das palavras e de seus profanadores é o do desamparo, da felicidade, da catástrofe…

Dizemos que estamos representando uma peça teatral, sem dúvida estendida ao infinito… mas o teatro, no qual estamos preparados para tudo sem sermos competentes em nada, sempre foi, desde que aprendemos a pensar, um teatro da velocidade crescente e das deixas perdidas… primeiramente, um teatro dos corpos — em segundo lugar, um teatro do medo do espírito e, portanto, do medo da morte… não sabemos se se trata da tragédia por amor à comédia ou da comédia por amor à tragédia… mas tudo tem a ver com pavor, com miséria, com incapacidade mental… nós pensamos, mas nos calamos: quem pensa, dissolve, suspende, catastrofiza, demole, decompõe, porque o pensar é, logicamente, a dissolução coerente de todos os conceitos… O que somos é (e isto é história, é o estado de espírito da história): o medo, o medo do corpo e do espírito, e o medo da morte enquanto força criati¬ va… O que publicamos não é idêntico ao que é, o choque é outro, a existência é outra, nós somos outros, o insuportável é outra coisa, não é a doença, não é a morte, são bem outras as relações, outras as situações…

Dizemos ter direito ao que é justo, mas só temos direito ao que é injusto…

O problema é dar conta do trabalho — e isso significa da resistência interior, da estupidez exterior… isso significa passar por cima de mim mesmo e de cadáveres de filosofias, de toda a literatura, de toda a ciência, de toda a história, de tudo… é uma questão de constituição espiritual e de concentração espiritual, e do isolamento, da distância… da monotonia… da utopia… da idiotia…

O problema é, sempre, dar conta do trabalho, tendo em mente nunca, jamais dar conta de coisa nenhuma… esta é a questão: seguir em frente, sem consideração, ou parar, pôr um ponto final… a questão é a dúvida, a desconfiança e a impaciência.

Agradeço à Academia e agradeço aos senhores pela atenção.