Capítulo XVIII da História de Rasselas, Príncipe da Abissínia, escrito por Samuel Johnson em menos de uma semana para pagar pelo funeral de sua mãe. Londres, 1759 d.C.
Na Abissínia (atual Etiópia), os filhos do Rei crescem confinados num vale com altas montanhas de lado a lado cuja única saída é um portão bem policiado. No palácio, os príncipes e princesas são ensinados a ver o mundo exterior como um lugar pleno de desespero, e só conhecem uma vida de lazer e instrução. Apesar disso, Rasselas, o quarto filho, com 26 anos, se mostra cada vez mais taciturno. Quando um dos tutores tenta emparedá-lo, perguntando-lhe pelo que afinal anseia, Rasselas responde que o problema é justamente que ele não anseia por nada; os dias são iguais, não há o que desejar, e ele crê que ver as misérias do mundo lhe daria algo pelo que aspirar. Após 20 meses vivendo em sua imaginação, ele decide se aventurar, mas passa mais de um ano procurando uma rota de fuga sem sucesso até finalmente encontrar Imlac, um poeta que viajou por todo o mundo em busca da criação perfeita e hoje vive estagnado no “Vale da Felicidade.” Os dois então encontram uma caverna e no fundo dela uma fenda através da qual, junto com a Princesa Nekayah, irmã do herói, e sua dama de companhia, Pekuah, conseguem escapar. Após passarem por Suez, chegam ao Cairo, onde o príncipe, disposto a decidir o que fazer de sua vida, se instala numa casa luxuosa.
Enquanto caminhava um dia na rua ele viu um edifício espaçoso ao qual todos eram pelas portas abertas convidados a entrar. Ele seguiu a corrente de pessoas, e encontrou um salão ou escola de declamação, no qual professores liam conferências ao seu auditório. Ele fixou seus olhos num douto erguido acima dos outros, que discursou com grande energia sobre o governo das paixões. Seu olhar era venerável, sua ação graciosa, sua pronúncia clara, e sua dicção elegante. Ele mostrou com grande força de sentimento e variedade de ilustração que a natureza humana é degradada e aviltada quando as faculdades mais baixas predominam sobre as mais altas; quando a fantasia, a mãe da paixão, usurpa o domínio da mente, nada mais se segue a não ser o efeito natural do governo ilegítimo, perturbação, e confusão; que ela trai a fortaleza do intelecto em favor dos rebeldes, e excita suas filhas à sedição contra seu legítimo soberano. Ele comparou a razão ao sol, cuja luz é constante, uniforme, duradoura; e a fantasia a um meteoro, de lustre cintilante mas transitório, irregular em seu movimento e ludibrioso em sua direção.
Ele então comunicou os vários preceitos dados de tempos em tempos para a conquista da paixão, e discorreu sobre a felicidade daqueles que tinham obtido a importante vitória, após a qual o homem já não é escravo do medo nem o bobo da esperança; já não é emaciado pela inveja, inflamado pela ira, emasculado pela ternura, ou deprimido pela amargura; mas caminha calmamente através dos tumultos ou privações da vida, como o sol que prossegue do mesmo modo seu curso através do céu calmo ou do tormentoso.
Ele enumerou muitos exemplos de heróis inamovíveis pela dor ou prazer, que olharam com indiferença para aqueles modos ou acidentes aos quais o vulgo dá os nomes de bem e mal. Ele exortou seus ouvintes a deixarem de lado seus preconceitos, e armarem-se a si mesmos contra os dardos da malícia ou do infortúnio, pela invulnerável paciência: concluindo que somente esse estado era a felicidade, e que esta felicidade estava em poder de todas as pessoas.
Rasselas ouviu-o com a veneração devida às instruções de um ser superior, e esperando por ele à porta, humildemente implorou a liberdade de visitar um tão grande mestre da verdadeira sabedoria. O palestrante hesitou um momento, quando Rasselas pôs uma bolsa de ouro em sua mão, que ele recebeu com uma mistura de gozo e espanto.
“Eu encontrei,” disse o Príncipe ao retornar a Imlac, “um homem que pode ensinar tudo o que é necessário conhecer; que, do trono inabalável de uma fortaleza racional, olha de cima às cenas da vida mudando abaixo dele. Ele fala, e a atenção observa seus lábios. Ele raciocina, e a convicção fecha os seus períodos. Este homem há de ser meu futuro guia: eu aprenderei suas doutrinas e imitarei sua vida.”
“Não seja tão precipitado,” disse Imlac, “ao confiar ou ao admirar os professores de moralidade: eles discursam como anjos, mas eles vivem como homens.”
Rasselas, que não podia conceber como algum homem podia arrazoar tão forçosamente sem sentir a contundência de seus próprios argumentos, realizou sua visita em uns poucos dias, e lhe foi negada a admissão. Ele já aprendera então o poder do dinheiro, e abriu seu caminho por uma moeda de ouro ao aposento interno, onde ele encontrou o filósofo em uma sala meio escurecida, com o olhar turvo e sua face pálida. “Senhor”, disse ele, “você veio num momento em que toda amizade humana é inútil; o que eu sofro não pode ser remediado: o que eu perdi não pode ser suprido. Minha filha, minha única filha, de cuja ternura eu esperava todos os confortos da minha idade, morreu na noite passada de uma febre. Minhas ideias, meus propósitos, minhas esperanças, estão no fim: eu sou agora um ser solitário, desunido da sociedade.”
“Senhor,” disse o Príncipe, “a mortalidade é um evento pelo qual um homem sábio jamais pode ser surpreendido: sabemos que a morte está sempre próxima, e que deveria portanto sempre ser esperada.” “Rapaz,” respondeu o filósofo, “ você fala como alguém que nunca sentiu as aflições da separação.” “Então você esqueceu os preceitos,” disse Rasselas, “que você impôs com tanto poder? Não terá a sabedoria nenhuma força para armar o coração contra a calamidade? Considere que as coisas externas são naturalmente variáveis, mas a verdade e a razão são sempre as mesmas.” “Que conforto,” disse o enlutado, “podem a verdade e a razão me conceder? A que servem elas agora, senão para dizer que minha filha não será restaurada?”
O Príncipe, cuja humanidade não suportaria que ele insultasse a miséria com a reprovação, foi embora, convencido da vacuidade dos sons retóricos, e da ineficácia de períodos polidos e frases estudadas.
*
As he was one day walking in the street he saw a spacious building which all were by the open doors invited to enter. He followed the stream of people, and found it a hall or school of declamation, in which professors read lectures to their auditory. He fixed his eye upon a sage raised above the rest, who discoursed with great energy on the government of the passions. His look was venerable, his action graceful, his pronunciation clear, and his diction elegant. He showed with great strength of sentiment and variety of illustration that human nature is degraded and debased when the lower faculties predominate over the higher; that when fancy, the parent of passion, usurps the dominion of the mind, nothing ensues but the natural effect of unlawful government, perturbation, and confusion; that she betrays the fortresses of the intellect to rebels, and excites her children to sedition against their lawful sovereign. He compared reason to the sun, of which the light is constant, uniform, and lasting; and fancy to a meteor, of bright but transitory lustre, irregular
in its motion and delusive
in its direction.
He then communicated the various precepts given from time to time for the conquest of passion, and displayed the happiness of those who had obtained the important victory, after which man is no longer the slave of fear nor the fool of hope; is no more emaciated by envy, inflamed by anger, emasculated by tenderness, or depressed by grief; but walks on calmly through the tumults or privacies of life,
as the sun pursues alike
his course through the
calm or the stormy sky.
He enumerated many examples of heroes immovable by pain or pleasure, who looked with indifference on those modes or accidents to which the vulgar give the names of good and evil. He exhorted his hearers to lay aside their prejudices, and arm themselves against the shafts of malice or misfortune, by invulnerable patience: concluding that this state only was happiness, and that this happiness was in every one’s power.
Rasselas listened to him with the veneration due to the instructions of a superior being, and waiting for him at the door, humbly implored the liberty of visiting so great a master of true wisdom. The lecturer hesitated a moment, when Rasselas put a purse of gold into his hand, which he received with a mixture of
joy and wonder.
“I have found,” said the Prince at his return to Imlac, “a man who can teach all that is necessary to be known; who, from the unshaken throne of rational fortitude, looks down on the scenes of life changing beneath him. He speaks, and attention watches his lips. He reasons, and conviction closes his periods. This man shall be my future guide: I will learn his doctrines and imitate
his life.”
“Be not too hasty,” said Imlac, “to trust or to admire the teachers of morality: they discourse like angels, but they live
like men.”
Rasselas, who could not conceive how any man could reason so forcibly without feeling the cogency of his own arguments, paid his visit in a few days, and was denied admission. He had now learned the power of money, and made his way by a piece of gold to the inner apartment, where he found the philosopher in a room half darkened, with his eyes misty and his face pale. “Sir,” said he, “you are come at a time when all human friendship is useless; what I suffer cannot be remedied: what I have lost cannot be supplied. My daughter, my only daughter, from whose tenderness I expected all the comforts of my age, died last night of a fever. My views, my purposes,
my hopes, are at an
end: I am now a lonely
being, disunited
from society.”
“Sir,” said the Prince, “mortality is an event by which a wise man can never be surprised: we know that death is always near, and it should therefore always be expected.” “Young man,” answered the philosopher, “you speak like one that has never felt the pangs of separation.” “Have you then forgot the precepts,” said Rasselas, “which you so powerfully enforced? Has wisdom no strength to arm the heart against calamity? Consider that external things are naturally variable, but truth and reason are always the same.” “What comfort,” said the mourner, “can truth and reason afford me? Of what effect are they now,
but to tell me that my
daughter will not
be restored?”
The Prince, whose humanity would not suffer him to insult misery with reproof, went away, convinced of the emptiness of rhetorical sounds, and the inefficacy of polished periods and studied sentences.
*
Tradução: Marcelo Consentino
Ilustração: Litografia de Honoré Daumier. Prancha n. 3 da série Croquis pris au théâtre, publicada no La Charivari, 1864, com a legenda “Dizem que os parisienses são difíceis de se satisfazer; sobre essas quatro fileiras nenhum descontente – é verdade que todos esses franceses são romanos”.