Sermão de Santo Inácio

Extratos da fala do Padre Antonio Vieira no Real Colégio de Santo Antão em Lisboa, 1669 d.C.

Et vos similes hominibus expectantibus Dominum suum.

[E sede semelhantes aos homens que esperam o seu senhor, Lc 12:36]

Admirável é Deus em seus Santos; mas no Santo que hoje celebra a Igreja é singularmente admirável. A todos os santos manda Cristo neste Evangelho, que sejam semelhantes a homens: Et vos similes hominibus: mas assim como há grande diferença de homens a homens, assim vai muito de semelhanças a semelhanças. Aos outros Santos manda Cristo que sejam semelhantes aos homens, que servem os senhores da terra: Hominus expectantibus Dominum suum: a Santo Inácio manda-lhe Cristo, que seja semelhante aos homens que serviram ao Senhor no Céu. Quanto vai do Céu à terra, tanto vai de semelhança a semelhança. Aos outros Santos meteu-lhes Cristo na mão este Evangelho, e disse-lhes: servi-me assim como os homens servem aos homens: a Santo Inácio mete-lhe na mão um livro das vidas de todos os Santos, e diz-lhe: Serve-me assim como estes homens me serviram a mim. Foi o caso. Jazia Santo Inácio (não digo bem). Jazia Dom Inácio de Loiola mal ferido de uma bala francesa no sítio de Pamplona; e picado como valente por ter perdido um castelo, fabricava no pensamento outros castelos maiores, pelas medidas de seus espíritos. Já lhe parecia pouca defensa Navarra, pouca muralha os Pirineus, e pouca conquista a França. Considerava-se Capitão, e Espanhol e rendido; e a dor lhe trazia à memória, como Roma em Cipião, e Cartago em Aníbal, foram despojos de Espanha: os Cides, os Pelaios, os Viriatos, os Lusos, os Geriões, os Hércules, eram os homens com cujas semelhanças heroicas o animava e inquietava a fama: mais ferido da reputação da pátria que das suas próprias feridas. Cansado de lutar com pensamentos tão vastos, pediu um livro de cavalarias para passar o tempo; mas, oh Providência Divina! Um livro que só se achou, era das vidas dos Santos. Bem pagou depois Santo Inácio em livros o que deveu a este. Mas vede quanto importa a lição dos bons livros. Se o livro fora de cavalarias, sairia Inácio um grande cavaleiro: foi um livro de vidas de Santos, saiu um grande Santo. Se lera cavalarias, sairia Inácio um cavaleiro de ardente espada: leu vidas de Santos, saiu um Santo da ardente tocha: Et lucernae ardentes in manibus vestres [E a luz arde em vossas mãos]. Toma Inácio o livro nas mãos, lê-o, ao princípio com dissabor, pouco depois sem fastio, ultimamente com gosto, e dali por diante com fome, com ânsia, com cuidado, com desengano, com devoção, com lágrimas.

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Para satisfazer às obrigações de tamanho dia, nem quero mais matéria, que o caso que propus, nem mais livros, que o mesmo Livro, nem mais Texto, que as mesmas palavras: Et vos similes hominibus. Veremos em dois discursos: Inácio semelhante aos homens, e Inácio homem sem semelhante. Mais breve ainda: o semelhante sem semelhante. Este será o assunto. Peçamos a Graça. Ave Maria.

Temos a Santo Inácio com o seu livro nas mãos, com os exemplares de todos os Santos diante dos olhos, e Deus dizendo-lhe ao ouvido: et vos similes hominibus. Tantos instrumentos juntos? Grande obra intenta Deus. Quando Deus quer converter os homens e fazer Santos, lavra um diamante com outro diamante, e faz um Santo com outro. Santo foi Davi; converteu-o Deus com outro Santo, o Profeta Natã: Santo foi Cornélio Centurião; converteu-o Deus com outro Santo, S. Pedro: Santo foi Dionísio Areopagita; converteu-o Deus com outro Santo, S. Paulo: Santo foi Santo Agostinho; converteu-o Deus com outro Santo, Santo Ambrósio: Santo foi São Francisco Xavier; converteu-o Deus com outro Santo, o mesmo Santo Inácio.

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Assim como todos os astros recebem a luz do Sol, e cada um deles é juntamente um espelho e retrato resplandecente do mesmo Rei dos planetas, assim todos os santos recebem de Cristo a Graça, e do mesmo Cristo retratam em si todos os dotes resplandecentes da santidade, com que se ilustram. Por isso o Anjo, quando anunciou a Encarnação, não disse: Qui nascetur ex te Sanctus [Os santos que de ti hão de nascer], senão: Quod nascetur ex te Sanctum [O santo que de ti há de nascer]: porque Cristo não só foi Santo, mas o Santo dos Santos. O Santo dos Santos, como fonte de toda santidade por origem, e o Santo dos Santos, como fonte de toda a santidade para a imitação.

Este é o modo universal com que Cristo faz a todos os Santos. Mas a Santo Inácio, a quem quis fazer tão singular Santo, fê-lo também por modo singular, podendo dizer dele em tão excelente sentido, como verdadeiro: In splendoribus Sanctorum genui te [Nos resplandores dos santos eu te gerei]. Cristo foi gerado nos resplandores de todos os Santos, porque é o exemplar de todos os Santos; e Santo Inácio foi gerado nos resplandores de todos os Santos, porque todos os Santos concorreram a formar a santidade de Santo Inácio. Bem sei que é melhor exemplar Cristo só, que todos os Santos juntos, mas também sei que para ser Santo basta imitar um só Santo que imitou a Cristo. Assim dizia S. Paulo a todos os que vieram depois dos Apóstolos: Imitatores mei estote, sicuto et ego Christi [Sede meus imitadores, como também eu, de Cristo]. Mas Cristo, para formar a Santo Inácio, ajuntou as imitações de todos os Santos, para que o imitasse ele só como todos.

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Mal pudera eu provar de uma vez tão grande discurso, se o Céu (cujo é o assunto) não tomara por sua conta a prova. Vede se o provou evidente, elegante, e engenhosamente. Enfermo Inácio, e já nos últimos dias de vida, veio visitá-lo seu grande devoto o Eminentíssimo Cardeal Pacheco; e trouxe consigo um pintor insigne, o qual de parte donde visse o Santo, e não fosse visto dele, a furto de sua humildade o retratasse. Põe-se encoberto o pintor; olha para Santo Inácio; forma ideia; aplica os pincéis ao quadro, e começa a delinear-lhe as feições do rosto. Torna a olhar (coisa maravilhosa!) o que agora já viu não era o mesmo homem; já não era o mesmo rosto, já não era a mesma figura, senão outra muito diferente da primeira. Admirado o pintor, deixa o desenho que tinha começado; lança segundas linhas, começa segundo retrato, e segundo rosto: olha terceira vez (nova maravilha!) o segundo original já tinha desaparecido, e Inácio estava outra vez transformado com novo aspecto, com novas feições, com nova cor, com nova proporção, com nova figura. Já o pintor se pudera desenganar e cansar: mas a mesma maravilha o instigava a insistir. Insta repetidamente; olha, e torna a olhar; desenha, e torna a desenhar; mas sendo o objeto o mesmo, nunca pode tornar a ver o mesmo que tinha visto; porque quantas vezes aplicava e divertia os olhos, tantos eram os rostos diversos, e tantas as figuras novas em que o Santo se lhe representava. Pasmou o pintor, e desistiu do retrato: pasmaram todos, vendo a variedade dos desenhos que tinha começado: e eu também quero pasmar um pouco à vista deste prodígio.

Santo Inácio nunca teve dois rostos, quanto mais tantos. Foi Cortesão, foi Soldado, foi Religioso, e nunca mudou de cores, nem de semblante. Serviu em palácio a el Rei D. Fernando, o Católico, e a sua maior gala era trajar sempre a mesma cor, e trazer o coração no rosto. (…) Pois se Inácio teve sempre o mesmo rosto, Cortesão, Soldado, Religioso: se teve sempre, e conservou sempre o mesmo semblante, como agora se transforma em tantas figuras, quando querem copiar o seu retrato? Por isso mesmo. Era Inácio um, mas semelhante a muitos e quem era semelhante a muitos, só se podia retratar em muitas figuras.

Antes de Cristo vir, e aparecer no mundo, mandou diante o seu retrato, para que o conhecessem e amassem os homens. E qual foi o retrato de Cristo? Admirável caso ao nosso intento! O retrato de Cristo (como ensinam todos os Padres) foi um retrato composto de muitas figuras. (…) As perfeições de Cristo, ainda em grau muito inferior, não se achavam, nem se podiam achar juntas em um só homem: e como estavam divididas por muitos homens, por isso se retratou em muitas figuras. Era Cristo a mesma Inocência; por isso se retratou em Abel. Era Cristo a mesma Pureza; por isso se retratou em José. Era a mesma Mansidão; por isso se retratou em Moisés. Era a mesma Fortaleza; por isso se retratou em Sansão. Era a mesma Caridade, a mesma Obediência, a mesma Paciência, a mesma Constância, a mesma Justiça, a mesma Piedade, a mesma Sabedoria; por isso se retratou em Abraão, em Isaac, em Noé, em Jó, em Samuel, em Davi, em Salomão. De sorte que sendo o retrato um só, estava dividido em muitas figuras; porque só em muitas figuras podiam caber as perfeições do retrato. Tal o retrato de Santo Inácio, como feito à semelhança de muitos: Et vos similes hominibus.

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Temos visto a Inácio semelhante a homens: resta ver a Inácio homem sem semelhante. Mas do mesmo que temos dito, nasce a dificuldade, e a dúvida do que temos para dizer. Se Inácio foi semelhante a tantos homens; como pode ser que Inácio fosse sem semelhante? Se era tão semelhante, e a tantos; como não tinha, nem teve semelhante? (…) Digo que muito facilmente se distinguirmos as partes, e o todo. Tomado Santo Inácio por partes, era semelhante: todo o Santo Inácio, não tinha semelhante. Vede se o provo.

Criado o Céu e os elementos, no Céu criou Deus os Anjos, no ar as aves, no mar os peixes, na terra as plantas, os animais, e ultimamente o homem. Estando porém desta maneira o universo cheio, povoado, e ornado de tanta intensidade e variedade de criaturas, diz o Texto Sagrado, que em todas elas não se achava uma que fosse semelhante ao homem: Adae vero non inveniebatur adjutor similis ejus [mas não se achava um ajudante semelhante a ele, Gn 2:20]. A mim parecia-me que antes se havia de dizer o contrário. Porque demonstrativamente se convence, que não se acha criatura alguma em todo mundo, que não tenha semelhança com o homem. Todas as criaturas deste mundo (não falando no homem) ou são viventes, ou não viventes. Se não são viventes; são os Céus, os elementos, as pedras. Se são viventes, ou vivem vida vegetativa, e são as plantas; ou vivem vida sensitiva, e são os animais; ou vivem vida racional, e são os Anjos: e tudo isto se acha no homem. Porque o homem, dos elementos tem o corpóreo; das plantas tem o vegetativo; dos animais tem o sensitivo; dos anjos tem o racional. Essa foi a razão e o sentido (como notou Santo Agostinho) com que Cristo chamou ao homem toda Criatura, quando disse aos apóstolos: Predicate omni creature [Pregai a toda criatura]: porque o homem é um compêndio universal de todas as criaturas, e todas as criaturas, cada uma, segundo a sua própria natureza, estão recopiladas e retratadas no homem. Pois se todas as criaturas quantas Deus criou neste mundo, têm tanta semelhança com o homem, e o homem por sua própria natureza é semelhante, não a uma, ou a algumas, senão a todas as criaturas; como diz o Texto Sagrado, que entre todas as criaturas não se achava semelhante ao homem: Non inveniabatur similis ejus? Porque ainda que o homem, considerado por partes, era semelhante a todas as criaturas; considerado todo o homem, ou o homem todo, nenhuma outra criatura era semelhante a ele. As partes eram semelhantes; o todo não tinha semelhante. De maneira que a mesma semelhança que as criaturas tinham com Adão, dividida e por partes, era semelhança; unida e por junto, era diferença. Assim também Santo Inácio em respeito dos outros Santos, a quem eu sempre respeito. Santo Inácio, parte por parte, era semelhante: todo Santo Inácio não tinha semelhante. Adão semelhante sem semelhante entre todas as criaturas: Inácio semelhante sem semelhante entre todos os Santos.

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E para que esta diferença e dessemelhança se conheça com toda evidência, e se veja com os olhos, olhemos para o verdadeiro retrato de Santo Inácio. Ninguém pode retratar a Santo Inácio, como vimos: mas só Santo Inácio se retratou a si mesmo. E qual é o verdadeiro retrato? Qual é a Vera efígie de Santo Inácio? A Vera efigie de Santo Inácio é aquele Livro de seu Instituto, que tem nas mãos. O melhor retrato de cada um é aquilo que escreve. O Corpo retrata-se com pincel, a Alma com a pena.

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Fez-se Deus Homem pelo Mistério Altíssimo da Encarnação, e notou profundamente São Tomás (como já o tinha notado São João Damasceno) que fazendo-se Deus Homem, não só tomou e uniu a si a natureza humana, senão também todas as outras naturezas que tinha criado. Pela criação saíram de Deus todas as naturezas: pela Encarnação tornaram todas as naturezas a unir-se a Deus. Mas como se fez esta universal união? Como uniu Deus a si todas as naturezas? São Tomás: Communicavit se Christo homini, et per consequens omnibus generibus singulorum [Cristo se comunicou aos homens, e por consequência a todos os tipos de indivíduos]. Tomou Deus no Homem (diz São Tomás) não só a natureza humana, senão também todas as naturezas; mas não tomou as diferenças delas, senão os gêneros. Tomou o gênero dos elementos no Corpóreo; e ainda que pudera ser um elemento, como o Fogo da Sarça, não tomou a diferença de elemento. Tomou o gênero das plantas no vegetativo: e ainda que pudera ser uma planta, como a Árvore da vida, não tomou a diferença de planta. Tomou o gênero dos animais no Sensitivo; e ainda que pudera ser um animal, como a pomba do Jordão, não tomou diferença animal. Tomou o gênero dos Anjos no racional; e ainda que pudera ser um Anjo, como Gabriel, não tomou a diferença de Anjo. De maneira que tomou Deus no Homem todas as naturezas quanto aos gêneros, mas não quanto às diferenças; porque os gêneros eram das criaturas: as diferenças eram de Cristo. Assim o fez o grande imitador de Cristo, Inácio. Uniu em si todos os Patriarcas, uniu no seu Instituto todos os Institutos; mas o que tomou, foram os gêneros, o que acrescentou, foram as diferenças; o que tomou, foram os gêneros, e por isso é semelhante; o que acrescentou, foram as diferenças, e por isso não tem semelhante.

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Acabemos com o fim. O fim para que Deus ajuntou em Santo Inácio as semelhanças e perfeições de todos os Santos, foi para que neste grande Santo achássemos junto, o que nos outros Santos se acha dividido. Santo Inácio (se bem se consideram os princípios e fins de sua vida) foi o fruto do Flos Sanctorum [o Livro dos Santos]. O Flos Sanctorum era a flor, Santo Inácio foi o Fruto. Se de todas as flores se compusesse uma só flor, esta flor havia de ter o cheiro de todas as flores; e se desta flor nascesse um fruto, este fruto havia de ter o sabor de todos os frutos. E esta maravilha fez Deus em Santo Inácio. O Livro foi a flor, ele o fruto; um fruto que contém em si todos os sabores; um Santo que sabe a tudo o que cada um deseja e há mister. O Maná era semelhante sem semelhante, porque tinha o sabor de todos os manjares: sem semelhante, porque nenhum manjar sabia a tudo, como ele. Por isso se chamou Maná, ou Manhú, que quer dizer: Quid est hoc? Que é isto? E a esta pergunta se respondia: é tudo o que quiserdes. O mesmo digo eu de Santo Inácio. Tudo o que quiserdes, tudo o que desejardes, tudo o que houverdes mister, achareis neste Santo ou neste compêndio de todos os Santos. Essa foi a razão, por que ordenou a Providência Divina que concorressem e se ajuntassem neste grande exemplar de tanta diversidade de estados, de exercícios, de fortunas. Nasceu fidalgo, foi cortesão, foi soldado, foi mendigo, foi peregrino, foi perseguido, foi preso, foi estudante, foi graduado, foi escritor, foi religioso, foi pregador, foi súdito, foi prelado, foi legislador, foi mestre de espírito, e até pecador foi em sua mocidade; depois arrependido, penitente e Santo. Para quê? Para que todos achem tudo em Santo Inácio: Omnibus omnia factus sum [Fiz-me tudo para todos, 1 Cor 9:22]. O fidalgo achará em Santo Inácio uma ideia da verdadeira nobreza: o cortesão, os primores da verdadeira polícia: o soldado, os timbres do verdadeiro valor. O pobre achará em Santo Inácio, que o não desejar é a mais certa riqueza: o peregrino, que todo mundo é pátria: o perseguido, que a perseguição é o caráter dos escolhidos: o preso, que a verdadeira liberdade é a inocência. O estudante achará em Santo Inácio o cuidado sem negligência: o letrado, a ciência sem ambição: o pregador, a verdade sem respeito: o escritor, a utilidade sem afeite. O religioso achará em Santo Inácio a perfeição mais alta: o súdito a obediência mais cega: o prelado a prudência mais advertida: o legislador as leis mais justas. O Mestre de espírito achará em Santo Inácio muito que aprender, muito que exercitar, muito que ensinar, e muito para onde crescer. Finalmente, o pecador (por mais metido que se veja no mundo e nos enganos de suas vaidades) achará em Santo Inácio o verdadeiro norte de sua salvação: achará o exemplo mais raro da conversão e mudança de vida: achará o espelho mais vivo da resoluta e constante penitência: e achará o motivo mais eficaz da confiança em Deus, e na sua Misericórdia, para pretender, para conseguir, para perseverar, e para subir e chegar ao mais alto cume da Santidade e Graça com a qual se mede a Glória.