Ou ainda: Maria, a mãe que devorou a carne e o sangue do filho – Um passeio dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse pela Terra Santa
Cinco cenas do assédio a Jerusalém durante a chamada Grande Rebelião ou Primeira Guerra Judaico-Romana. Extraídas da Guerra dos Judeus de Titus Flavius Josephus. Roma, 75 d.C.
No ano 66 d.C., após décadas de tensão, uma série de protestos e rebeliões contra a taxação dos romanos eclodem na Judeia. O governador romano Gessius Florus retalia com um saque ao Grande Templo em Jerusalém e a prisão de vários líderes rebeldes. A revolta estoura e logo o rei pró-Roma Agripa IIo junto com os oficiais romanos são obrigados a fugir de Jerusalém. Josephus, nascido Yosef ben Matityahu de uma casta sacerdotal e real em Jerusalém, combate à frente de tropas judaicas na Galileia até a sua rendição no assédio de Jotapata, em 67, quando é escravizado pelo comandante das legiões romanas, Vespasiano, servindo-lhe como intérprete e tradutor. Após três anos de conflito, Vespasiano é convocado à Cidade Eterna para assumir o cetro imperial, e aponta o seu imediato e filho, Titus, para esmagar a rebelião, ao mesmo tempo em que concede a alforria e a cidadania romana a Yosef, que assume o nome da família do Imperador, Flavius, e passa a servir a Titus como negociador junto aos judeus. Em 70, os romanos conseguem encurralar os últimos sediciosos na cidade de Jerusalém.
I. A GUERRA
ou: Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados, e os que promovem a paz, porque serão chamados Filhos de Deus.
(Do Livro V, Capítulo 1)
Naquele tempo havia três facções subversivas na cidade, cada uma contrária às outras duas. Eleazar e seu grupo, que mantiveram as primícias sagradas [do Templo], arremetiam com seu furor ensandecido contra João. Os sectários de João saqueavam o populacho, e atacavam com ferocidade a Simão. Este Simão usava o suprimento de provisões da cidade para combater as outras facções. Quando era atacado pelos dois lados, João se defendia num e noutro front: ele rechaçava aqueles que subiam da cidade com uma saraivada de flechas do alto dos pórticos, enquanto avançava com suas máquinas de guerra contra aqueles que disparavam seus dardos do alto do Templo. E se em algum momento era aliviado pelos adversários que o pressionavam do alto, quando bêbados e cansados cessavam sua ofensiva – coisa que era frequente –, ele se lançava com mais firmeza, empenhando um número maior de homens contra os partidários de Simão. Cada vez que ele os caçava num bairro da cidade, ele incendiava as casas cheias de grãos e provisões diversas. Quando ele se retirava, Simão, por sua vez, contra-atacava e fazia o mesmo: assim; foi como se estes chefes tivessem dizimado propositadamente em favor dos romanos os recursos que a cidade havia preparado em vista do cerco, cortando desta forma os nervos de sua própria força. Logo todos os arredores do Templo foram incendiados, e esta devastação fez da cidade como que uma terra de ninguém para as batalhas de uma guerra civil. Quase todos os grãos, que teriam sido suficientes para resistir ao cerco por muitos anos, foram entregues às chamas. Foi portanto a fome que levou os judeus à perdição: e não teria sido assim se eles não tivessem eles mesmos preparado esta desgraça.
Enquanto os sediciosos e suas tropas atacavam por todas as partes da cidade, o povo entre eles era como um grande corpo dilacerado. Os velhos e as mulheres eram oprimidos em tanta aflição por suas calamidades domésticas, que eles torciam pelos romanos, e esperavam ardentemente a guerra no exterior que os libertaria de suas misérias internas. Os cidadãos honestos estavam apavorados, paralisados pelo terror, pois não viam nenhuma possibilidade de se reunir em assembleia e mudar o curso dos acontecimentos, nem qualquer esperança de paz ou de fuga para aqueles sensatos que as desejavam. Todas as saídas, com efeito, estavam bloqueadas por guardas, e os líderes dos criminosos, embora divididos entre si, consideravam inimigos comuns aqueles que aventavam um pacto de paz junto aos romanos ou que eram suspeitos de se inclinar à deserção, e os executavam. Eles não entravam em acordo senão nisto: degolar os cidadãos inocentes que seriam dignos de serem salvos. Dia e noite os combatentes urravam, ininterruptamente; mas ainda mais assustadores eram os gemidos que o temor arrancava àqueles que choravam. As misérias traziam constantes motivos para lamentações, e os cidadãos, calando a sua angústia, eram torturados pelos prantos que eram obrigados a sufocar. Os vivos já não prestavam atenção nos seus próximos: ninguém mais se preocupava em dar sepultura aos mortos. A causa desta dupla apatia foi o desespero de cada um daqueles que, não pertencendo às facções rebeldes, haviam consumido todas as suas forças, tendo por certo que seriam muito em breve aniquilados. Quanto aos próprios sediciosos, seguiam travando batalhas entre si, pisoteando cadáveres à medida que se acumulavam em pilhas uns sobre os outros, e estes corpos dilacerados, exalando um odor infecto, excitavam a selvageria.
II. A FOME
ou: Bem aventurados os mansos, porque herdarão a terra, e os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus.
A situação era de miséria, um espetáculo que traria com justa razão lágrimas aos nossos olhos, vendo como os homens se comportavam em relação à sua comida, os mais poderosos acumulando-a em abundância, e os fracos gemendo pela carestia. A fome triunfa sobre todos os sentimentos e não há nada que suprima com mais facilidade o escrúpulo. As mulheres, as crianças, e, coisa triste entre todas, as mães arrancavam os alimentos da boca de um esposo, de um pai, de um filho e, quando as pessoas mais queridas pereciam nos seus braços, não tinham vergonha de lhes tomar até as migalhas que lhes garantiriam um resto de vida. Mas elas não podiam esconder sequer refeições desse tipo: por toda parte os facciosos vigiavam mesmo as rapinas. Cada vez que viam uma casa fechada, suspeitavam que os habitantes comiam alguma coisa e logo arrombavam a porta e se precipitavam, arrancando quase que das suas gargantas os pedaços de comida. Eles espancavam os velhos quando estes se agarravam apertados à sua porção; arrastavam pelos cabelos as mulheres que, fechadas em casa, tentavam esconder seus pedaços. Nenhuma comiseração pela velhice nem pela infância; eles penduravam por seus braços as crianças agarradas com suas bocas aos nacos que tinham arranjado, e as chacoalhavam e as arremessavam no chão. E eram mais barbaramente cruéis com as pessoas que, prevendo seu ataque, engoliam às pressas os restos que estava para ser saqueado: era como se eles sofressem uma grande injustiça a ser severamente punida. Eles elaboraram terríveis métodos de tortura para descobrir onde as pessoas escondiam comida, metiam grãos de ervilhaca nos canais das partes baixas dos desgraçados, e enfiavam estacas afiadas até as entranhas. E assim impunham suplícios, cujo relato arrepiaria qualquer um, só para descobrir um resto de pão ou um punhadinho de farinha escamoteado.
III. A MORTE
ou: Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus, e os misericordiosos, porque alcançarão a misericórdia.
[Do lado de fora] Titus enviou um destacamento da cavalaria com ordens de armar emboscadas para aqueles que saíssem pelas ravinas para catar comida. Alguns deles eram de fato guerrilheiros, não satisfeitos com o que haviam acumulado pela rapina; mas a maior parte era de homens pobres, impedidos de desertar pela preocupação com seus familiares; pois não tinham a esperança de escapar, junto com suas mulheres e filhos, à vigilância dos sediciosos; nem podiam suportar a ideia de deixar sua família para trás, por sua conta e risco, para ser massacrada pelos criminosos. A fome lhes dava coragem para suas incursões além muros: mas a sorte que os esperava, quando conseguiam se furtar aos guardas, era cair na mão dos inimigos. Pegos de surpresa, a necessidade os forçava a se defender; mas depois de terem resistido, julgavam inútil suplicar por sua vida. Açoitados e submetidos, antes do suplício final, aos tratamentos mais cruéis, eles eram crucificados pelos romanos em frente à muralha. Aos olhos de Titus, é verdade, estes tratamentos atrozes, infligidos a cada dia a quinhentos prisioneiros e por vezes ainda mais, pareciam dignos de piedade; mas julgou pouco seguro libertar pessoas que haviam sido rendidas à força, e ele estimava que estabelecer uma guarda sobre um tão grande número lhe tomaria soldados demais na condição de meros carcereiros. Assim com muita frequência ele não pôs nenhum freio ao suplício da cruz, esperando talvez que os judeus, ante aquele espetáculo, se abatessem e se rendessem por medo de serem condenados a um tratamento igualmente cruel caso não capitulassem. Os soldados com toda ira e rancor que haviam acumulado pelos judeus, crucificavam os prisioneiros, por zombaria, de diversos modos, e a multidão das vítimas era tão grande que faltava espaço para as cruzes, e cruzes para os corpos.
IV. A CONQUISTA DA CIDADE DE DEUS
ou: O Reino dos Céus sofre violência, e violentos se apoderam dele (Mateus, Capítulo 11, Versículo 12)
Após sete meses de combates cruentos os romanos dominam a muralha exterior e a intermediária, e finalmente atacam a Torre Antônia, na muralha interna, o último posto de defesa da cidade. Depois de uma série de manobras desastradas dos sediciosos, a muralha desmorona inesperadamente durante a noite. Pela manhã, os romanos descobrem que os revoltosos haviam construído de improviso uma quarta muralha.
(Do Livro VI, Capítulo 1)
Então Titus, ponderando que a esperança e os discursos são o melhor tonificante para o furor dos combatentes, que as exortações e as promessas fazem com frequência esquecer os perigos, por vezes mesmo desprezar a morte, reuniu os seus soldados mais valentes e assim provou a coragem deles: “Camaradas,” disse, “exortar a uma ação que não comporta perigo imediato, é coisa inglória para aqueles a quem é dirigida tal exortação e pouco honrosa para aquele que a dirige. Somente os desafios verdadeiramente arriscados reclamam uma exortação, pois quanto aos outros, convém que sejam enfrentados espontaneamente. Assim devo confessar que concordo com todos que escalar esta muralha será difícil, mas aos homens de virtude se exige acima de tudo o combate às dificuldades; que uma morte gloriosa é bela, e que a nobreza da ação não há de restar sem recompensa para aqueles que se arriscarem na linha de frente; eis algo que quero vos garantir. O que deve ser para vós estimulante, e que talvez desencorajasse a outros, é a resiliência demonstrada pelos judeus e sua constância em meio aos reveses; pois será vergonhoso se nós, romanos, soldados que em tempos de paz fomos instruídos na arte da guerra e que em tempos de guerra cultivamos o hábito da vitória, formos inferiores aos judeus tanto na força do braço quanto na da alma, e isso quando a vitória está ao nosso alcance, quando temos manifestamente o favor de Deus. Pois nossas agruras se devem somente à insanidade desesperada dos judeus, ao passo que as misérias deles crescem em razão da nossa virtude e da assistência divina. Pois a sedição, a fome, o cerco, estas muralhas que acabam de desmoronar sem a ajuda de nossas máquinas, que mais tudo isso testemunha senão a cólera divina contra os judeus e a proteção que Deus nos dá? Assim, se nos deixarmos vencer por aqueles inferiores a nós, e se, acima de tudo, trairmos a aliança divina, eis algo que será indigno de nós. Para os judeus, a derrota não é uma vergonha, pois eles já estão habituados à servidão; e não obstante para escapar dela desafiam a morte, e se lançam contra nós, não na esperança de nos vencer, mas só para dar provas de sua coragem. Que desgraça será para nós, romanos, senhores de quase toda a terra e do mar, para vós, a quem não vencer já é um opróbrio, se não arriscarmos um único ataque contra os inimigos, se restarmos ociosos, com armas e braços tão poderosos, esperando que a fome e a Fortuna concluam por nós o nosso trabalho, quando um golpe de audácia, sem grandes perdas, pode nos assegurar um sucesso total! (…) Quanto a mim, abstenho-me agora de louvar a morte no campo de honra e a imortalidade daqueles ceifados em meio à fúria da guerra; desejo somente para aqueles que pensam diversamente que morram de alguma doença no conforto e na paz, eles cujas almas estão condenadas ao sepulcro ao mesmo tempo que os corpos. Pois qual homem de valor ignora o destino das almas que o ferro separa da carne no campo de batalha? O éter, o mais puro dos elementos, as acolhe e lhes dá um lugar entre as estrelas; elas se mostram à sua posteridade como bons espíritos e heróis benevolentes; mas as almas que são consumidas em corpos destemperados e doentios e ao mesmo tempo que eles, ainda que sejam isentas de nódoas e máculas, são aniquiladas na noite subterrânea, dissolvidas no nada, mergulhadas num profundo oblívio; suas vidas, seus corpos, e sua memória encontram um fim comum. Se portanto a morte é inelutável para todos os homens, o ferro é um algoz mais adequado e menos cruel que a doença. (…) Quanto àquele que for o primeiro, eu terei vergonha se não fizer dele um homem invejável, sobrecarregando-o de honras; o sobrevivente comandará dali em diante àqueles que hoje são seus iguais, e aqueles que morrerem tentando serão recompensados no túmulo com o prêmio divino reservado à coragem.”
V. A PESTE
ou: Bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados, e os puros de coração, porque verão a Deus.
Alguns dias depois, embora a última muralha continue de pé, os romanos dominam e demolem a Torre Antônia, e tentam negociar a rendição enviando Josephus para fazer uma exortação aos Judeus. Os sicários porém endurecem sua resistência e elaboram o estratagema de simular retiradas de edifícios estratégicos, para atrair as tropas inimigas e trancafiá-las e então incendiar o local, exterminando assim muitos soldados romanos no fogo.
(Do Livro VI, Capítulo 3)
Enquanto isso a população da cidade era consumida pela fome: incontáveis foram aqueles que sucumbiram; as misérias que os acometeram são indizíveis, pois, em cada casa, bastava despontar uma sombra de comida para se desencadear uma guerra; as pessoas mais estreitamente unidas lutavam entre si, arrancando uns dos outros os mais míseros restos para sobreviver. Os próprios moribundos eram suspeitos e enquanto agonizavam os delinquentes os vasculhavam, desconfiados de que algum dos pobres desgraçados fingisse morrer para escamotear uns pedaços de comida. E os famintos em desespero, como cães raivosos, vagavam e cambaleavam; eles iam se batendo de porta em porta como bêbados, e, premidos pelo agonia, se precipitavam duas ou três vezes por hora na mesma casa. A necessidade lhes fazia meter entre os dentes todo tipo de coisas, eles as catavam e se resignavam a mastigar aquilo que os mais sórdidos animais sequer tocam; por fim, começaram a devorar seus cintos e sandálias; e o próprio couro de seus escudos eles arrancavam e mascavam (…).
Havia uma certa mulher, das tribos além do Jordão, chamada Maria, filha de Eleazar, da aldeia de Betsabá, que significa “a casa do Hissopo”. Ela era eminente por sua família e suas riquezas, e se refugiara em Jerusalém com o resto da multidão, e estava com eles sitiada naquele momento. Os tiranos já haviam confiscado a maior parte do tesouro que ela havia trazido da Perea para dentro da cidade: o resto de seus bens e o pouco de alimento que conseguira salvar, foram saqueados durante as incursões quotidianas dos sicários. Profundamente indignada, esta pobre mulher deflagrava injúrias e imprecações, irritando ainda mais os delinquentes. Mas como ninguém decidia lhe matar num gesto de ira ou piedade, como o pouco de comida que arranjava acabava sempre nas mãos de outros, e como de resto já não se encontrava mais nada em parte alguma e a fome cavava cada vez mais fundo nas suas entranhas e medulas, então, inflamada pela cólera e ainda mais pela fome, dando ouvidos tanto ao seu ódio quanto à sua ânsia, ela afrontou a natureza e tomando o filho que mamava em seu peito, disse: “Ah, menino infeliz, para que hei de te preservar no meio desta guerra. Para a fome, para a sedição? Junto aos romanos, se nossa vida for poupada, só nos espera a escravidão; mas antes a fome impedirá a escravidão, e os rebeldes são mais cruéis do que ambos os males. Vem, então, ser meu alimento: sê ao mesmo tempo a fúria vingadora que há de desabar sobre os facciosos e, aos olhos de toda a humanidade, o herói da única desgraça que ainda faltava aos miseráveis judeus.” Então ela matou seu filho, depois o assou e comeu metade de seu corpo, deixando o resto recoberto. Logo chegaram os sediciosos, e, sentindo o cheiro abominável daquela carne, ameaçaram degolá-la se ela não revelasse onde escondera a refeição que havia preparado. Ela respondeu que lhes havia reservado uma bela porção e descobriu ante seus olhos os restos do seu filho. Imediatamente eles ficaram paralisados, aturdidos de horror e assombro. “Aí está, disse ela, meu próprio filho, aí está a minha obra. Comei, eu o comi eu mesma. Não havereis de ser mais fracos que uma mulher, nem mais condoídos que uma mãe. Mas se sois piedosos e recusais minha vítima, eu provei o sacrifício por vós, deixai-me o resto!” Ante estas palavras, os sediciosos saíram trêmulos, acovardados nesta única circunstância, abandonando, não sem alguma hesitação, as sobras daquela refeição para a mãe. A história desta ação horrenda logo se espalhou por toda a cidade, e cada um, imaginando-a, tinha calafrios como se a tivesse cometido ele mesmo. Então houve, junto àquela gente devorada pela fome, um anseio pela morte: eles invejavam seus mortos e os julgavam felizes por terem partido sem jamais ter ouvido ou visto tais misérias.