Extratos do discurso de Fiodor Dostoievski na inauguração do monumento a Alexander Púchkin em Moscou, 1880 d.C.
“Púchkin é um fenômeno extraordinário e talvez a mais singular manifestação do espírito russo” observou Gogol. E eu acrescentaria: ele é um fenômeno profético. De fato, no seu aparecimento há algo inquestionavelmente profético para todos nós russos. Púchkin surge exatamente na aurora de nossa verdadeira consciência, pois se passaria todo um século após as reformas de Pedro o Grande até que nossa consciência fosse despertada em nós. O advento de Púchkin, como uma luz guia, ajudou imensamente a iluminar a estrada escura à nossa frente. E nesse sentido Púchkin é profético, apontando para o futuro.
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Uma ideia poderosa, profunda e puramente russa claramente se manifesta a si mesma em Aleko, o herói de Os Ciganos. A ideia encontra uma expressão ainda mais plena em Eugene Onegin, no qual Aleko aparece de novo, já não mais nas vestes de um disfarce fantástico mas assumindo uma forma completamente compreensível. Em Aleko o gênio de Púchkin captou e delineou magistralmente um tipo especificamente russo: o errante infeliz, desenraizado, cortado de seu próprio povo, um estranho em sua terra nativa. . . . Uma coisa é essencial: o russo errante deve conquistar a felicidade para toda a humanidade a fim de encontrar paz. . . . Esse tipo, eu repito, surgiu exatamente um século após as reformas de Pedro o Grande, reformas que desenraizaram e cortaram a parte educada da nossa sociedade do povo, da sua força.
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Aleko, evidentemente, não sabe como exprimir sua angústia exceto de um modo abstrato: ele anseia pela natureza, ele se queixa da sociedade, ele tem aspirações universais, ele lamenta a verdade, que de alguma forma desapareceu, que, por mais que se esforce, não consegue encontrar. Em tudo isso há um toque de Rousseau. O que exatamente esta verdade é, onde e de que forma ela emergirá, e quando exatamente ela desapareceu, isso, naturalmente, ele não sabe dizer; mas ele sofre profundamente. Este homem fantástico e impaciente tem sede de salvação e crê que a encontrará em fenômenos externos, e que é assim que deve ser. “A verdade”, diz ele, “está fora de mim, talvez no exterior, por exemplo, na Europa, onde sistemas políticos estão firmemente entrincheirados e a sociedade há muito tempo estabeleceu tradições.” Ele jamais entenderá que a verdade é encontrada dentro de nós. E como poderia? Em seu próprio país ele é um estrangeiro. Ele esqueceu como trabalhar, ele não tem cultura, ele foi educado como uma colegial enclausurada, ele cumpriu estranhos e inexplicáveis deveres definidos por sua posição particular no serviço público.
O tipo de Aleko é desenraizado, cortado, como uma folha de grama lançada ao vento. . . . É compreensível que uma “mulher primitiva” viesse a lhe dar esperanças de escapar à sua angústia, e assim, tola mas apaixonadamente, acreditando que Zemphira lhe oferece salvação, ele se lança aos seus pés. “Esta,” diz ele, “talvez seja a saída. Talvez eu encontre a felicidade aqui, no seio da natureza, muito longe da sociedade, entre as pessoas que não possuem nem civilização nem leis!” E o que acontece? A primeira vez que ele colide com a natureza primitiva nestas pessoas, ele não consegue se controlar e mancha as suas mãos com sangue. Este infeliz sonhador não só não se encaixa na harmonia universal como não se encaixa sequer nos ciganos, e assim eles o expulsam – mas sem qualquer desejo de vingança, sem qualquer malícia.
. . . Já na resposta russa à “questão fatal” é sugerido: “Humilhe-se a si mesmo, ó homem de orgulho, e acima de tudo esmague o seu orgulho. Humilhe-se a si mesmo e acima de tudo devote-se a um trabalho honesto no solo nativo.” Esta resposta está de acordo com o senso da verdade e com a sabedoria do povo. “A verdade não está fora de você, mas dentro. Você deve olhar para dentro para encontrar a si mesmo, e então contemplará a verdade. Esta verdade não pode ser encontrada nas coisas materiais; ela não está fora de você, não em algum país estrangeiro, mas antes nos seus esforços honestos de ganhar controle sobre si mesmo. Conquiste-se a si mesmo, subjugue-se, e você se tornará livre, mais livre do que jamais sonhou, e você começará uma grande obra e você fará os outros livres e você verá a felicidade, sua vida será plena e finalmente você entenderá seu povo e a sagrada verdade dele. Você não encontrará a harmonia universal entre os ciganos, você não a encontrará em nenhum lugar se não for digno dela. Você não deve ser rancoroso, orgulhoso e intransigente; você deve entender que a vida tem um custo.” Esta resposta está sugerida no poema de Púchkin Os Ciganos. É expressa ainda mais claramente em Eugene Onegin.
. . . No começo do poema [Onegin] ainda é um almofadinha e um homem mundano. Ele viveu demasiado pouco para ter se desiludido completamente com a vida. Não obstante, ele é visitado pelo “nobre e secreto demônio do tédio.”
. . . Mais adiante, quando vagará desesperadamente por sua terra nativa e no exterior, ele, um homem indisputavelmente inteligente, indisputavelmente sincero, se sentirá ainda mais alienado de si mesmo em estranhos arredores. É verdade que ele ama a Rússia, sua terra nativa, mas ele não confia nela. Naturalmente ele ouviu falar dos ideais russos nativos, mas ele não acredita neles. . . . Ele mata [seu amigo] Lensky [num duelo] porque está sofrendo de spleen; talvez ele anseie por um ideal universal. Isso é tão russo que é bem verossímil.
Tatiana é completamente diferente. Ela é um tipo resoluto, firmemente enraizada em seu solo nativo. Ela é mais profunda do que Onegin e, claro, mais sábia. Graças aos seus nobres instintos, ela sente o que a verdade é e onde ela está, como fica claro na última cena do poema. Talvez tivesse sido melhor se Púchkin tivesse chamado seu poema “Tatiana” ao invés de “Onegin”, porque inquestionavelmente ela é o verdadeiro herói. Ela é um tipo positivo, não um negativo. Ela encarna a beleza positiva; ela é a apoteose da mulher russa. O poeta a escolhe para expressar a verdadeira ideia do poema na famosa cena na qual ela encontra Onegin pela última vez. Poder-se-ia mesmo dizer que não há outra mulher na literatura russa que seja um tipo tão positivo e possua tanta beleza, exceto, talvez, Liza, a heroína de Turgueniev em Um Ninho de Nobres. Porque Onegin está acostumado a olhar as pessoas do alto de seu nariz empinado, ele não se interessa por Tatiana quando ele a encontra pela primeira vez no campo. Ela é tão modesta, tão inocente, tão tímida na sua companhia. Ele é incapaz de vislumbrar sua plenitude, sua perfeição; talvez ele realmente a tome por uma espécie de “embrião moral” [segundo a expressão de Belinski]. Ela é um embrião – depois de sua carta para Onegin!
Se há um embrião moral no poema, então é sem dúvida o próprio Onegin. Ele é totalmente incapaz de apreciar Tatiana. Pode alguém como ele entender alguma coisa da alma humana? Ele é uma pessoa abstrata, um incansável sonhador. Ele tampouco aprecia Tatiana mais tarde, em Petersburgo, quando ela se tornou uma grande dame. Embora ele diga a ela que aspira banhar a sua alma em todo seu amor, isso são meras palavras. Tatiana passa pela vida de Onegin sem ser reconhecida ou apreciada por ele. É aqui que está a tragédia do seu amor.
. . . Tatiana permanece exatamente a mesma pessoa; ela permanece exatamente do jeito que era antes no campo. A vida na alta sociedade não a corrompeu. Ao contrário, ela está deprimida pelo glamour da vida de Petersburgo, sufocada por ele. Ela sofre profundamente. Ela detesta ser uma grande dame, e quem quer que a julgue diferente não entende o que Púchkin quis dizer. Lembre do que ela diz a Onegin quando eles se encontram pela última vez:
Tatiana pronuncia essas palavras como uma mulher Russa, e é por isso que ela é a apoteose da feminilidade. Ela articula a verdade do poema. Ah não, não direi uma única palavra sobre suas convicções religiosas, sobre suas ideias acerca da santidade do casamento. Não, não entrarei nisso em absoluto. Por que ela se recusa a partir com Onegin, apesar do fato de que lhe disse: “Eu te amo”? Será porque sendo uma mulher russa (em oposição à mulher mediterrânea ou francesa) ela não é capaz de um passo tão ousado, de romper os seus grilhões, de sacrificar sua fortuna, status, e virtude? Não, a mulher russa é obstinada. A mulher russa perseguirá obstinadamente aquilo no qual acredita, e Tatiana é a demonstração disso. Mas ela foi “votada a ser mulher de outro e permanecerá fiel por toda a sua vida.” Fiel a quem e a quê? A quais obrigações? Fiel a um velho general, que não pode absolutamente amar porque ama Onegin, com quem casou simplesmente porque sua mãe aos prantos tramou para que o fizesse. . . . Sim, fiel a esse general, seu marido, um homem honesto que a ama, a respeita, e sente orgulho dela. . . . É verdade que ela casou com ele por desespero, mas agora é seu marido, e, se ela o traísse, ela traria vergonha sobre ele e o mataria.
Será possível a alguém construir sua felicidade sobre a infelicidade de outro? A felicidade é mais do que simplesmente gozar os frutos do amor; a felicidade depende de uma harmonia espiritual superior. . . . Imagine-se erguendo o edifício do destino humano com o fim último de fazer o homem feliz, de lhe dar paz e descanso. E então imagine que a fim de fazer isso você deve atormentar um único ser humano – alguém que não é uma pessoa particularmente digna. . . . Tudo o que você tem a fazer é atormentar este único homem, e você poderá erguer seu edifício sobre suas lágrimas! Sob tais condições, você consentiria em ser o arquiteto? Eis a questão. . . . A alma puramente russa a resolve da seguinte maneira: “Mesmo que sozinha eu seja despojada de minha felicidade, mesmo que minha infelicidade seja infinitamente maior do que a infelicidade desse velho, mesmo que ninguém, nem mesmo este velho, jamais saiba do meu sacrifício e jamais o aprecie, eu não quero a minha felicidade às custas de outro!” Aqui está a tragédia, e está completa. A linha não pode ser cruzada. É tarde demais, e assim Tatiana manda Onegin embora. Alguém poderá dizer: “Mas Onegin está triste também. Embora ela salve um homem ela arruína o outro!” Permita-me sugerir que esta é uma questão completamente diferente, talvez a mais importante em todo o poema.
. . . Mesmo que Tatiana viesse a ser livre, mesmo que seu marido morresse e ela se tornasse uma viúva, mesmo assim ela não partiria com Onegin. É preciso entender o verdadeiro caráter de Onegin! Ela o vê por aquilo que ele é: um eterno errante que subitamente encontra uma mulher que outrora desdenhou em um cenário novo e glamoroso onde ela é inalcançável. Sim, tudo parece estar no lugar. A alta sociedade agora se curva ante a menina que certa vez ele desprezou. A alta sociedade permanece a suprema autoridade para Onegin apesar de suas aspirações universais, e é por isso que, estonteado, ele se lança a seus pés. “Eis aqui meu ideal,” ele exclama. “Eis aqui a minha salvação, um meio de escapar ao ennui. Eu não consegui ver na época, mas a felicidade estava tão próxima, tão possível.” E assim como Aleko foi atraído por Zemphira, assim Oneguin é atraído por Tatiana, buscando nessa fantasia nova e caprichosa uma solução para todos os seus problemas. Certamente Tatiana se deu conta. Certamente viu através dele há muito tempo.
. . . Dessa forma, em Eugene Onegin, nesse poema imortal que ainda está para ser ultrapassado, Púchkin revelou-se um grande escritor nacional, maior que qualquer outro antes dele. Incisiva e perspicazmente ele captou a essência mesma do nosso ser. Ele delineou o russo errante como um tipo. Com a sensibilidade nata de um gênio, ele intuiu o errante, adivinhou seu destino histórico e seu enorme significado para o nosso futuro. Ante ele Púchkin posicionou um tipo de positiva e indisputável beleza na pessoa da mulher russa.
. . . Em cada uma das obras de Púchkin sentimos fé no caráter russo, fé no poder espiritual da Rússia, e onde há fé, há esperança, grande esperança para cada um e todo russo.
. . . Todos os tesouros, todas as intuições que nosso grande poeta deixou como legado indicaram o caminho para os nossos futuros escritores, para os futuros trabalhadores da mesma vinha. Podemos dizer com certeza absoluta que se não fosse por Púchkin, os talentosos escritores que surgiram depois dele jamais surgiriam. Ao menos estes escritores não teriam manifestado tal poder, tal claridade – não obstante o quão talentosos fossem. Contudo, não é só uma questão de poesia e literatura. Não fosse por Púchkin, nossa fé na singularidade de nosso caráter russo, nossa confiança em nossos próprios poderes, nossa crença na futura missão da Rússia em relação à família das nações europeias não seria tão forte, tão inabalável.
. . . Posso dizer com absoluta certeza que jamais houve outro poeta como Púchkin, que jamais houve outro poeta que possuiu tamanha empatia, cuja capacidade de resposta foi tão universal. E não é uma simples capacidade de resposta per se. É a maravilhosa profundidade dessa empatia, é a habilidade de Púchkin de reencarnar seu próprio espírito no espírito de outros povos e fazê-lo de um modo tão perfeito que parece milagroso. Nenhum outro poeta em todo mundo foi capaz de fazer isso. Só Púchkin tem essa habilidade, e por essa razão ele é um fenômeno único e profético. . . . De onde nasce a força do caráter nacional russo se não da ambição pela universalidade e pela fraternidade de todo gênero humano? Tão logo Púchkin se tornou um poeta plenamente nacional, tão logo ele consolidou um vínculo indissolúvel com o povo russo, ele imediatamente intuiu o seu grande destino. Nesse sentido ele é um visionário e um profeta.
. . . Tomamos sobre nós mesmos os gênios de outras nações, não num espírito de inimizade (como parece que deveria ter sido o caso) mas num espírito de amor e amizade. Aceitamos a todos, sem fazer distinções. Nós reconciliamos indistintamente diferenças e contradições, e fazendo-o mostramos nossa determinação e inclinação a nos juntarmos com todas as nações da grande raça ariana e formar uma união de toda humanidade. Sim, indubitavelmente, os russos foram eleitos para um destino pan-europeu, universal. Talvez se tornar um verdadeiro russo, se tornar um russo completo, signifique simplesmente (em última análise, e eu enfatizo) se tornar irmão de todos os homens, se tornar um homem universal.
. . . A Europa e o destino de toda a raça ariana são tão caros ao verdadeiro russo quanto a própria Rússia, e o destino de toda a sua própria terra, porque o destino da Rússia é a universalidade, conquistada não pela espada mas pelo poder da fraternidade e de nossa aspiração fraterna à reunião de todos os homens. . . . Mais adiante, eu realmente creio nisso, nós – não nós, evidentemente, mas os futuros russos – irão todos, até o último homem, entender que ser um verdadeiro russo significa reconciliar de uma vez por todas cada uma das contradições da Europa, mostrar aos europeus como escapar ao seu ennui na alma russa totalizante, envolver todos os nossos próximos no espírito do amor fraterno, e enfim, talvez, pronunciar radicalmente a última Palavra que trará a grande harmonia universal e o amor fraterno a todas as nações de acordo com os ensinamentos de Cristo e do Evangelho! . . . Acaso falo de glória econômica ou da glória da espada ou da glória da ciência? Não, eu me refiro somente à fraternidade dos homens e ao coração russo destinado talvez a trazer à tona a fraternidade total de toda a humanidade. Eu vejo os sinais nesta nossa história, em nossos talentosos indivíduos, no gênio artístico de Púchkin. Nossa terra pode ser miserável, mas [como diz Tiutchev] “Cristo atravessou essa terra miserável nas vestes de um escravo e a abençoou.”
E há alguma razão para que a palavra final de Cristo não deva ser encarnada em nós? Não nasceu ele mesmo numa manjedoura? Para repetir: ao menos podemos apontar para Púchkin, para aquela qualidade universal e totalizante de seu gênio. Afinal, a alma de Púchkin era capaz de envolver gênios estrangeiros como se fossem seus. Em sua obra poética ele revelou o anseio do espírito russo pela universalidade, um traço que aponta para o nosso futuro. Se nossas ideias parecem fantásticas, ao menos há em Púchkin uma base para a fantasia. Se ele tivesse vivido mais, talvez ele viesse a descobrir grandes, imortais imagens da alma russa mais inteligíveis aos nossos irmãos europeus. . . . Mas Deus quis diferente. Púchkin morreu no pico de seu desenvolvimento. Inquestionavelmente ele levou consigo para seu túmulo um grande segredo. Cabe a nós desvendar esse segredo sem a sua ajuda.