Terceira das Conversas com Estudantes sobre Alguns Ideais de Vida. De William James. Nova York, 1899 d.C.
Em minha última conversa, “Sobre uma Certa Cegueira”, tentei despertar em vocês o sentimento do quanto a vida é encharcada e emaranhada em valores e significados que não conseguimos compreender em razão de nosso ponto de vista externo e insensível. Os significados estão lá para os outros, mas não para nós. Há mais do que o mero interesse de uma especulação curiosa ao se compreender isso. Há uma importância prática absolutamente tremenda. Gostaria de convencê-los disso com a mesma força de sentimento que eu experimento. É a base de toda a nossa tolerância, social, religiosa e política. O esquecimento disso está na raiz de todo equívoco estúpido e sanguinário que os dominadores cometem em relação aos povos a eles submetidos. A primeira coisa a se aprender no relacionamento com os outros é a não interferência na sua própria concepção de uma vida feliz, desde que esta concepção não pretenda interferir através de meios violentos na nossa. Ninguém tem uma idéia de todos os ideais. Ninguém deveria sentir-se apto a julgá-los todos de antemão. A pretensão a dogmatizar sobre eles em cada um de nós é a raiz da maior parte das injustiças e crueldades humanas, e o traço do caráter humano mais apto a provocar as lágrimas dos anjos.
Todo João vê em sua própria Maria um charme e perfeição a cujos encantamentos nós, espectadores estúpidos, somos frios como pedras. E quem tem a visão superior da verdade absoluta, ele ou nós? Qual penetra mais profundamente na natureza da existência de Maria? Será ele, em seu excesso, nesta questão um maníaco? ou nós é que somos defeituosos, sendo vítimas de uma anestesia patológica com relação à importância mágica de Maria? Certamente o último; certamente para João as verdades profundas são reveladas; certamente as pobres palpitaçõezinhas vitais de Maria estão entre as maravilhas da criação, são dignas deste interesse empático; e é uma pena e uma vergonha que o resto de nós não possa sentir o mesmo que João. Pois João vê Maria concretamente, e nós não. Ele luta por uma união com a sua vida interior, adivinhando seus sentimentos, antecipando seus desejos, compreendendo seus limites tão virilmente quanto possível, e, ainda assim, inadequadamente também; pois também ele é afligido por uma certa cegueira, até mesmo aqui. Ao passo que nós, broncos mortiços que somos, sequer buscamos tais coisas, mas nos contentamos com que aquela porção do eterno fato chamada Maria seja para nós como se não fosse. Maria, que conhece a sua vida interior, sabe que o modo como João fala dela – com tanta importância – é o sério e verdadeiro; e ela responde à verdade nele olhando-o com seriedade e verdade também. Que a antiga cegueira jamais os envolva novamente com suas nuvens! Onde estaríamos todos nós, se não houvesse ninguém desejoso de nos compreender como realmente somos ou pronto a retribuir a nossa compreensão com o seu reconhecimento? Deveríamos, todos nós, compreendermos uns aos outros deste modo intenso, patético e importante.
Se você diz que isso é absurdo, e que não podemos amar todas as pessoas ao mesmo tempo, eu sugeriria a você que, na verdade, certas pessoas têm uma enorme capacidade para a amizade e para se deleitar com a vida de outras pessoas; e que tais pessoas sabem mais da verdade do que se o seu coração não fosse tão grande. O vício do sentimento ordinário de Joões e Marias não é sua intensidade, mas suas exclusões e ciúmes. Ponha-os porta afora, e você verá que este ideal que ofereço aos seus olhos, ainda que seja impraticável hoje, não contém nada de intrinsecamente absurdo.
Temos inquestionavelmente um paredão de nuvens de cegueira ancestral pesando sobre nós, só transitoriamente rasgado aqui e acolá por revelações espasmódicas da verdade. É vão esperarmos que tal estado de coisas se altere muito. Nossos segredos interiores devem permanecer a parte mais impenetrável para os outros, para seres tão essencialmente práticos como nós, necessariamente curtos de visão. Mas, se não somos capazes de obter muito entendimento positivo uns dos outros, acaso não podemos ao menos usar o senso de nossa própria cegueira para nos fazermos mais cautos quanto a nos perdermos por lugares obscuros? Não podemos ao menos escapar de algumas daquelas abomináveis e ancestrais intolerâncias, crueldades, e perversões positivas da verdade?
Para o restante desta hora, eu lhes convido a procurar comigo algum princípio capaz de fazer a nossa tolerância menos caótica. E, tal como comecei minha palestra anterior com uma reminiscência pessoal, peço agora a sua indulgência para um pedacinho similar de egocentrismo.
Alguns verões atrás, passei uma agradável semana na famosa [comunidade] Assembly Grounds nas margens do Lago Chautauqua. No momento em que se entra naquele sacro recinto, sente-se imediatamente uma atmosfera de sucesso. Sobriedade e indústria, inteligência e bondade, ordem e idealidade, prosperidade e alegria, preenchem o ar. É um piquenique sério e bem pensado em uma escala gigantesca. Eis aqui uma cidade com milhares de habitantes, maravilhosamente implantada na floresta e saneada, e equipada com meios aptos a satisfazerem todos os desejos do homem, dos menores e necessários aos maiores e supérfluos. Há uma universidade de primeira classe a pleno vapor. Um magnífico coro musical de setecentas vozes, com o auditório ao ar livre possivelmente mais perfeito do mundo. Há todo tipo de exercício atlético, do iatismo, remo, natação, ciclismo ao futebol e outros esportes mais marciais que o ginásio oferece. Há jardins da infância e escolas exemplares. Há serviços religiosos e clubes para as diversas seitas. Há fontes de água com gás que jorram perpetuamente, e palestras públicas de homens importantes diariamente. Há o melhor da companhia, e, ainda assim, nenhum esforço. Não há doenças zimóticas, pobreza, embriaguez, crime, nem polícia. Há cultura, gentileza, preços honestos, igualdade; há os melhores frutos de tudo aquilo pelo qual a humanidade lutou e sangrou por séculos sob o nome de civilização. Há, em poucas palavras, um gosto antecipado daquilo que a sociedade humana deveria ser, se tudo fosse banhado de luz, e não houvesse sofrimento nem cantos obscuros.
Fui, por curiosidade, para passar um dia. Fiquei uma semana, tomado de encantamento pelo charme e facilidade de tudo, pelo paraíso da classe-média, sem um só pecado, sem uma vítima, sem um borrão, sem uma lágrima.
E, ainda assim, qual não foi minha surpresa, quando, ao emergir novamente no mundo obscuro e perverso, peguei-me a mim mesmo dizendo, bastante inesperada e involuntariamente: “Ufa! Que alívio! Finalmente algo primordial e selvagem, ainda que seja tão horrível quanto um massacre armênio, para restabelecer o equilíbrio. Esta ordem é domesticada demais, esta cultura é de segunda-categoria demais; esta bondade não inspira nada. Este drama humano sem qualquer vilão ou aflição; esta comunidade tão refinada que sorvete e água com gás são a sua oferta suprema para o animal selvagem no homem; esta cidade fermentando nas margens tépido e ensolaradas de um lago; esta inofensividade atroz de todas as coisas – eu não posso suportar tudo isso. Vamos tentar a sorte de novo na grande selva do mundo exterior com todos os seus pecados e sofrimentos. Há as alturas e profundezas, os precipícios e os ideais íngremes, os vislumbres do terror e do infinito; e há cem vezes mais esperança e socorro do que neste volume morto e quintessência de toda mediocridade”.
Tal foi o repentino giro de 180 graus realizado para mim por minha própria fantasia desenfreada! Perante os meus olhos fora aberta a concretização – em versão miniatura, como uma amostra grátis – de todos os ideais pelos quais a nossa civilização tem lutado: segurança, inteligência, humanidade e ordem; e eis que rebenta a reação hostil instintiva, não do homem natural, mas de um homem assim chamado culto, contra uma tal Utopia. Parecia, assim, haver uma contradição e um paradoxo em algum lugar, os quais eu, como professor plenamente remunerado, tinha o dever de desembaraçar e explicar, se fosse capaz.
Então meditei. E, antes de mais nada, perguntei a mim mesmo o que poderia ser essa coisa que tanto faltava a essa cidade sabática, e cuja falta mantinha um homem perpetuamente aquém de um contentamento de ordem superior. E logo me dei conta de que era o elemento que dá ao perverso mundo exterior todo o seu estilo moral, sua expressividade e seu caráter pitoresco – o elemento de precipitação, por assim dizer; de força e exaustão, intensidade e perigo. O que excita e interessa o observador da vida, o que os romances e as estátuas celebram e os severos monumentos civis nos lembram, é a eterna batalha dos poderes da luz contra os das trevas; com o heroísmo, reduzido à sua pura sorte, e, ainda assim, sempre e de novo arrancando a vitória das mandíbulas da morte. Mas neste indescritível Chautauqua não se via a possibilidade da morte em parte alguma, e nenhum ponto do compasso visível onde o perigo pudesse aparecer. O ideal era tão completamente vitorioso que nenhum sinal de qualquer batalha precedente permanecera, e o local permanecia tranquilo em seu curso. Mas o que nossas emoções humanas parecem pedir é a visão de uma luta em ação. No momento em que os frutos estão sendo simplesmente comidos, as coisas se tornam ignóbeis. Suor e esforço, a natureza humana tensionada ao seu limite e no pelourinho, e, ainda assim, atravessando sempre viva, e dando as costas ao seu sucesso para partir em busca de outro ainda mais raro e árduo – este é o tipo de coisa cuja presença nos inspira, e cuja realidade parece ser aquela que sugerem e à qual nos transportam todas as formas superiores de literatura e de belas artes. Em Chautauqua não havia pelourinhos, sequer no museu histórico local; e nenhum suor, exceto, talvez, a leve umidade nas sobrancelhas de alguma palestrante ou nas faces de algum jogador de futebol.
Tal ausência generalizada de natureza humana in extremis parecia, então, uma explicação suficiente para a insipidez e falta de ardor de Chautauqua.
Mas não seria esse um paradoxo bem calculado para desalentar um coração? Parece, com efeito, pensei eu, que os idealistas românticos com o seu pessimismo sobre a nossa civilização estavam, no fim das contas, perfeitamente certos. Um irremediável achatamento está invadindo o mundo. Burguesia e mediocridade, sociedades paroquiais e convenções acadêmicas, estão tomando o lugar das antigas altitudes e profundezas e do chiaroscuro romântico. E, para viver a vida humana em sua intensidade selvagem, deveremos no futuro nos afastar mais e mais do real, esquecê-lo, se for possível, nas páginas de romancistas ou poetas. O mundo inteiro, delicioso e pecaminoso como pode parecer por um instante para quem acaba de escapar do recinto da Chautauqua Assembly, está, não obstante, obedecendo a cada dia com mais exatidão aqueles ideais que certamente farão dele, no fim, uma mera Chautauqua Assembly em escala monumental. Was im Gesang soll leben mus sim Leben untergehn [o que há de viver na música deve cair na vida]. Agora mesmo, em nosso próprio país, a retidão, a equidade e o compromisso para com cada minúscula benesse, estão engolindo como uma multidão todas as outras qualidades. Os heroísmos mais elevados e os velhos e raros sabores estão declinando no arco de nossas vidas.
Com tais pensamentos em minha mente, acelerava em meu trem rumo a Buffalo, quando, próximo àquela cidade, a visão de um operário fazendo não sei o que na vertiginosa beirada da construção de ferro de um arranha-céu chocou-me bruscamente contra a realidade. E então percebi, num estalo de luz, que estive me aprofundando em pura cegueira ancestral, e observando a vida com os olhos de um expectador remoto. Ansioso por heroísmo e pelo espetáculo da natureza humana no pelourinho, jamais tinha notado as imensas pradarias de heroísmo à minha volta, fora incapaz de vê-lo presente e vivo. Só podia pensar nele como morto ou embalsamado, rotulado e bem vestido, como nas páginas de um romance. E, ainda assim, lá estava ele bem diante dos meus olhos na vida diária das classes trabalhadoras. Não somente em combates estridentes e marchas desesperadas há heroísmo a ser encontrado, mas em toda ponte ferroviária e prédio à prova de fogo que estão sendo erguidos agora mesmo. Em trens de carga, no deque dos navios, em pastos e minas, em balsas e serrarias, entre os bombeiros e os policiais, a exigência de coragem é incessante; e o suprimento nunca falta. Lá, todos os dias do ano em algum lugar, há natureza humana in extremis para você. E onde uma foice, um machado, uma picareta, ou uma pá é erguida, você a tem suando e sofrendo e com isso seus poderes de perseverança paciente no limite do suplício por horas a fio de tensão.
Ao despertar para toda essa vida não idealizada e heróica ao meu redor, eu senti como se escamas caíssem de meus olhos; uma onda de simpatia maior do que qualquer coisa que havia sentido antes para com a vida comum do homem comum começou a preencher a minha alma. Era como se a virtude com mãos calosas e pele suja fosse a única virtude genuína e vital o suficiente para se levar em conta. Qualquer outra virtude posa; nenhuma é tão absolutamente inconsciente e simples, e sem pretensões em relação à decoração ou ao reconhecimento quanto essa. Estes são os nossos soldados, pensei, são nossos alicerces, os pais mesmos da nossa vida.
Há muitos anos em Viena, experimentei um sentimento similar de assombro e reverência ao observar as camponesas, vindas do campo para fazerem seus negócios numa feira daquele dia. Bruxas velhas eram muitas delas, secas e marrons e enrugadas, com suas bandanas e anáguas, suas meias grossas de lã em seus tornozelos ossudos, capengando pelas ruelas cintilantes, não olhando nem à direita nem à esquerda, dobradas sobre o dever, sem invejar nada, humildes de coração, remotas; – e, ainda assim, no fundo, quando se pensa nisso, suportando toda a trama de esplendores e corrupções daquela cidade em seus laboriosos ombros. Pois onde estaria ela sem aquele trabalho incessante, não recompensado? E assim foi conosco: não aos nossos generais e poetas, pensei, mas, antes, aos operários italianos e húngaros no metrô deveríamos erguer os monumentos de gratidão e reverência de uma cidade como Boston.
Se algum de vocês leu Tolstoi, verá que passei por uma corrente de sentimento similar à sua, com seu desgosto por tudo aquilo convencionalmente que passa por distinto, e sua deificação exclusiva da bravura, da paciência, generosidade e singeleza do homem natural inconsciente.
Onde está o nosso Tolstoi agora, pensei, para trazer à tona toda essa verdade aos nossos seios americanos, preencher-nos com uma inspiração mais viva, e nos desmamar daquela cultura literária espúria do romantismo da qual a nossa pérfida cultura – como se auto-denomina – se nutre? A divindade nos envolve por todos os lados, e a cultura é pacata demais para sequer suspeitar do fato. Poderia um Howells ou um Kipling serem alistados para essa missão? ou eles mesmos ainda estão demasiadamente mergulhados na cegueira ancestral e não suficientemente humana para que alegria e o sentido interior da existência dos trabalhadores lhes seja revelada? Devemos acaso esperar por alguém que tenha nascido, se alimentado e que viva como um operário ele mesmo, mas que, pela graças dos Céus, encontre além disso uma voz literária?
E assim permaneci por toda a jornada, com a sensação de uma visão alargada, e com aquilo que seria justo chamar de um crescimento da inspiração religiosa na vida. Aos olhos de Deus as diferenças da posição social, do intelecto, da cultura, da limpeza, das roupas que diversos homens exibem, além de todas as outras raridades e exceções nas quais eles tão surpreendentemente fixas seu orgulho, devem ser tão minúsculas a ponto de quase desaparecer; e tudo o que deveria restar é o fato de que aqui estamos, uma multidão incontável de vasos de vida, cada um de nós dobrado sobre dificuldades peculiares, contra as quais devemos severamente lutar usando seja qual for a força e a bondade que formos capazes de juntar. O exercício da coragem, paciência e gentileza deve ser a porção significante da coisa toda; e as distinções de posição só podem ser um modo de diversificar a superfície fenomênica sobre a qual estas virtudes subterrâneas manifestam seus efeitos. Nesta dimensão, a vida humana mais profunda está por toda parte, é eterna. E, se os atributos humanos, quaisquer que sejam, existem somente em indivíduos particulares, devem pertencer aos meros adornos e decorações no plano da superfície.
Assim as vidas dos homens se nivelam tanto pelo alto quanto por baixo – pelo alto em seu sentido interior comum, por baixo em sua glória e manifestação exterior. E mais uma vez, contudo, é preciso confessar, esta inspiração niveladora tende a ser igualmente obscurecida; e, sempre, a cegueira ancestral retorna e nos envolve, de modo que acabamos mais uma vez por pensar que a criação não serve a outro propósito senão desenvolver situações notáveis e distinções e méritos convencionais. E assim, sempre, um novo nivelador na forma de um profeta religioso tem de surgir – o Buda, o Cristo, ou algum São Francisco, algum Rousseau ou Tolstoi – para dissipar a cegueira. E, todavia, pouco a pouco, há algum ganho estável; pois o mundo se torna mais e mais humano, e a religião da democracia tende a um crescimento permanente.
Esta, dizia eu, tornou-se por um tempo a minha convicção, e me deu grande alegria. Expus a coisa na forma de uma reminiscência pessoal, a fim de que pudesse levá-los a ela de forma mais direta e completa, poupando-nos algum tempo. Mas agora vou usar resto dele para discuti-la de um modo mais impessoal.
A filosofia niveladora de Tolstoi começou muito antes de suas crises de melancolia comemoradas no maravilhoso documento por ele chamado de Minha confissão, que abriu caminho às suas obras mais especificamente religiosas. Em sua obra-prima Guerra e Paz – sem dúvida o maior dos romances humanos – o papel do herói espiritual é conferido a um pobre soldadinho chamado Karataieff, tão solícito, tão jovial, e tão devoto que, apesar de sua ignorância e imundície, a sua simples visão abre as portas dos céus, que haviam sido fechadas ao espírito do personagem principal do livro; e, por seu exemplo, Tolstoi evidentemente quer trazer para o leitor Deus ao mundo mais uma vez. O pobre Karataieff é capturado como prisioneiro dos franceses; e, quando a febre e os obstáculos esgotam suas energias para a marcha, é trancafiado como o foram outros prisioneiros na famosa retirada de Moscou. A última visão que temos dele é a sua pequena figura apoiando-se contra uma bétula branca, aguardando pelo fim sem uma queixa sequer.
“Quanto mais”, escreve Tolstoi em Minha confissão, “quanto mais eu examinei a vida deste povo trabalhador, mais eu me persuadi de que ele realmente têm fé, e extrai dela e só dela o sentido e a possibilidade da vida… Ao contrário daqueles da nossa própria classe, que protestam contra o destino e se indignam cada dia mais por seu rigor, estas pessoas sofrem doenças e infortúnios sem revolta, sem oposição, e com uma confiança firme e tranqüila de que tudo tem de ser tal como é, não poderia ser de outro modo, e que está bem tal como está… Quanto mais vivemos por nosso intelecto, menos entendemos o sentido da vida. Vemos somente uma piada cruel no sofrimento e na morte, enquanto estas pessoas vivem, sofrem e aproximam-se da morte com tranquilidade, e no mais das vezes com alegria… Há imensas multidões delas, felizes com a felicidade mais perfeita, embora privadas daquilo que para nós é o único bem da vida. Estas que compreendem o sentido da vida, e portanto sabem como viver e morrer, devem ser contados não por duas, três, dez, mas por centenas, milhares, milhões. Elas trabalham em silêncio, suportam privações e dores, vida e morte, e através de tudo isso vêem o bem sem ver a vaidade. Eu só posso amar estas pessoas. Quanto mais entrava em suas vidas, mais as amava; e mais se tornou possível para mim viver, também. Até que me dei conta não só de que a vida de nossa sociedade, dos cultos e ricos, me desgostava – mais do que isso, perdeu aos meus olhos qualquer coisa que pudesse se parecer com um sentido. Todas as nossas ações, nossas deliberações, nossas ciências, nossas artes, tudo se mostrou a mim com um novo significado. Entendi que tais coisas poderiam parecer charmosos passatempos, mas que não é possível encontrar nelas qualquer profundidade, enquanto a vida do povo honesto e trabalhador, da multidão de seres humanos que realmente contribuem para existência, se revelou a mim em sua verdadeira luz. Compreendi que lá estava realmente a verdadeira vida, que o sentido que a vida recebe lá é a verdade; e aceitei-o”.
De um modo similar Stevenson apela à nossa piedade para com a virtude arcana da humanidade.
“Que coisa maravilhosa”, escreve, “é este Homem! Que surpreendentes seus atributos! Pobre alma, aqui por tão pouco, debatendo-se entre tantas aflições, sob um cerco selvagem, em um declive selvagem, irremediavelmente condenado a rezar pela vida de seus companheiros – deveríamos tê-lo condenado, se fosse uma só peça com seu destino e um ser puramente bárbaro?… [Contudo,] não importa para onde olhemos, sob qual clima observemos, sejam quais forem as profundezas da ignorância, ou qual moralidade equívoca pese sobre si; em navios no mar, um homem habituado às dificuldades e prazeres vis, tendo por sua esperança mais luminosa a lamparina de uma taverna, e uma rameira espalhafatosa que se vende a si mesma para roubá-lo, pode ser, não obstante tudo isso, simples, inocente, vívido, doce como uma criança, constante na labuta, valente para submergir pelos outros;… nos barracos das cidades, movendo-se entre milhões de empregados mecânicos, sem esperança de mudança no futuro, com um arremedo de prazer no presente, e, ainda assim, verdadeiro para com suas virtudes, honesto até onde suas luzes alcançam, gentil com seus próximos, tentado, talvez em vão, pelo boteco resplandecente… frequentemente retribuindo o desprezo do mundo com serviço, frequentemente permanecendo firme sobre um escrúpulo;… por toda parte uma virtude celebrada ou afetada, por toda parte alguma decência de pensamento e coragem, por toda parte a insígnia da bondade ineficaz de um homem – ah! se pudesse lhe mostrar isso! Se pudesse mostrar a você estes homens e mulheres espalhados por todo mundo, em cada etapa da história, sob todo abuso do erro, sob toda circunstância do fracasso, sem esperança, sem ajuda, sem agradecimento, e, mesmo assim lutando obscuramente a batalha perdida da virtude, agarrando-se a algum trapo de honra, a pobre jóia das suas almas”.
Tudo isto é tão verdadeiro quanto esplêndido, e precisamos terrivelmente dos nossos Tolstois e Stevensons para manter nossos sentidos para isto vivos. Contudo, vocês se lembram do irlandês, que, quando perguntado se “não seria um homem tão bom quanto qualquer outro?”, respondeu “Sim; e bem melhor também!” Do mesmo modo, creio, Tolstoi corrige exageradamente nosso preconceito social ao fazer de seu amor pelo camponês algo tão exclusivo e ao endurecer seu coração contra o homem culto da maneira absoluta como faz. Conceda-se que em Chautauqua havia pouco esforço moral, pouco suor ou tensão muscular em vista. Não obstante, podemos ter certeza de que lá no fundo mais fundo da alma daquelas pessoas escondia-se algo do gênero, alguma tensão interior, alguma virtude vital que não faltaria se fosse exigida. E, no fim das contas, a questão retorna, e nos pressiona: será acaso tão certo que o entorno e as circunstâncias da virtude fazem tão pouca diferença na importância do resultado? Será menor a utilidade funcional, o valor para o universo de uma certa quantidade definida de coragem, gentileza e paciência, se aquele que possui tais virtudes está numa situação culta, trabalhando em tarefas de longo alcance, do que se for um joão-ninguém iletrado, rachando lenha e tirando água de um poço, para simplesmente manter-se vivo? A filosofia de Tolstoi, profundamente iluminadora como certamente é, permanece uma abstração falsa. Sabe demais àquele seu pessimismo e niilismo oriental, que declara todo o mundo fenomênico e seus fatos e suas distinções como uma ardilosa fraude.
Que o mundo fenomênico seja uma fraude pura e simples é justamente algo que nosso bom senso ocidental jamais aceitará. Ele admite abertamente que as alegrias e virtudes interiores são a parte essencial nas coisas da vida, mas tem igualmente certeza de que algum papel positivo hão de ter também os figurantes do espetáculo. Se é uma idiotice do romantismo reconhecer o heróico somente quando este vem rotulado e vestido em livros, é realmente tão idiota quanto vê-lo somente nas botas sujas e nas camisas suadas de uns e outros nos campos. Na verdade ele está conosco sob toda forma de disfarce: em Chautauqua; aqui, na sua universidade; nos pastos e nos trens de carga; e na corte imperial do Czar russo. Mas, instintivamente, fazemos uma combinação de duas coisas ao ajuizar a significação total de um ser humano. Sentimos que é algum tipo de produto (se um tal produto pudesse acaso ser calculado) de sua virtude interior e de sua circunstância exterior – nenhuma das duas isoladas, mas sempre conjuntas. Se as diferenças exteriores não tivessem sentido para a vida, por que, com efeito, haveria de existir toda imensa variedade delas? Também elas hão de ser elementos significativos do mundo.
Experimente testar pelos fatos a deificação do trabalhador manual de Tolstoi. Eis o que o Sr. Walter Wyckoff, após trabalhar como um operário sem qualificação na demolição de alguns edifícios de West Point, escreveu da condição espiritual da classe de homens à qual escolheu temporariamente pertencer:
“Os aspectos salientes da nossa condição são bastante simples. Somos homens adultos, e não temos mercadorias. No mercado de trabalho estamos prontos a vender a quem pagar mais nossa mera força muscular por tais e tantas horas por dia. E, vendendo nossa força muscular no mercado aberto por aquilo que ele oferecer, a vendemos sob algumas condições peculiares. É todo o capital que temos. Não temos reservas de subsistência, e não podemos, portanto, negociar um “valor de reserva”. Vendemos sob a necessidade de satisfazer uma fome iminente. Falando de um modo geral, vendemos nosso trabalho ou morremos de fome; e, como a fome é uma questão de horas, e não temos outro modo de satisfazer esta necessidade, devemos aceitar imediatamente aquilo que o mercado oferece por nosso trabalho.
“Nosso empregador compra trabalho em um mercado caro, e certamente arrancará de nós tanto trabalho quanto puder pelo seu preço. O capataz tem essa missão, e ele conhece muito bem o seu negócio. Ele tem inteiro domínio sobre nós. Jamais nos viu antes, e nos dispensará a todos quando os detritos forem varridos. Nesse ínterim, ele deve extrair de nós, se puder, o trabalho físico mais extremo de que nós, individual ou coletivamente, formos capazes. Se ele levar alguns de nós à exaustão, e não formos capazes de continuar o trabalho, não será ele a perder; pois o mercado logo o suprirá com outros para tomar nossos lugares.
“Nós somos homens ignorantes, mas isso vemos muito bem: que vendemos nosso trabalho onde pudermos ganhar mais, e nosso empregador o compra onde puder pagar menos. Ele gastou muito, e deve receber todo o trabalho que puder; e, por um poderoso instinto que nos possui, devemos entregar o menos que pudermos. De um ofício como o nosso todo elemento que constitui a nobreza do trabalho parece ter sido eliminado. Não sentimos qualquer orgulho pessoal pelo progresso, e nenhuma comunidade de interesses com nosso empregador. Não há absolutamente nada daquela alegria da responsabilidade, nada do sentimento de conquista, só a estúpida monotonia da engrenagem, com a expectativa do sinal para abandonarmos o trabalho, e nossos holerites no final.
“E, sendo o que somos, a escória do mercado de trabalho, e não tendo qualquer segurança de um emprego estável, e nenhuma organização entre nós mesmos, devemos esperar trabalhar sob o olhar vigilante de um capataz, e sermos conduzidos, como escravos do ordenado que somos, em nossas tarefas.
“Tudo isso é para nos dizer, com efeito, que nossas vidas são duras, estéreis e sem esperança”.
E estas vidas duras, estéreis, sem esperança, certamente, não são vidas nas quais se quereria permanecer permanentemente. E por que é assim? Será por serem tão sujas? Bem, Nansen se sujou muito mais durante sua expedição polar; e não temos menos consideração por sua vida em razão disso. Seria a insensibilidade? Nossos soldados aprendem a ser imensamente mais insensíveis, e nós os exaltamos aos céus? A pobreza é tida como a beleza que coroa muitas vocações heróicas. Será a escravidão a uma tarefa, a falta de prazeres requintados? Tal escravidão e tal ausência são a própria essência da grande força de caráter, e sempre são contadas ao seu crédito – leia os registros da devoção missionária por todo o globo. Não é nenhuma dessas coisas, portanto, tomadas em si mesmas – nem todas juntas – que fazem tal vida tão indesejável. Um homem deveria, a bem da verdade, viver como um operário não qualificado, e fazer o seu trabalho, e, ainda assim, ser considerado como uma das criaturas mais nobres de Deus. É bastante provável que houvesse algumas pessoas assim entre aquelas que o autor descreve; mas a corrente de suas almas corre subterraneamente; e ele estava mergulhado demais na cegueira ancestral para discerni-la.
Se houve tais indivíduos excepcionalmente morais, no entanto, o que os fez tão diferentes do resto? Só pode ter sido isto: que suas almas trabalharam e perseveraram em obediência a algum ideal interior, enquanto seus camaradas não eram movidos por nada digno desse nome. Estes ideais de outras vidas estão entre aqueles segredos que quase nunca podemos penetrar, embora algo sobre o homem com frequência nos dirá quando estão lá. No caso do próprio Sr. Wyckoff sabemos exatamente qual era o auto-imposto ideal. Em parte ele se enrolou todo, como dizem as crianças, em busca de uma conquista extenuante; mas sobretudo ele queria alargar sua compreensão empática da vida de seu próximo. Por isso o seu suor e labor ganharam um certo significado heróico, conquistando de uma maneira excepcional a nossa estima. Mas é fácil imaginar seus colegas com vários outros ideais. Sem contar esposas e bebês, é possível que um deles tenha sido um convertido ao Exército da Salvação, e tivesse um rouxinol cantando expiação e perdão em seu coração durante todo o tempo de sua labuta. Ou pode ser que houvesse um apóstolo como o próprio Tolstoi, ou seu compatriota Bondaieff, entre eles, voluntariamente abraçando o trabalho como sua missão religiosa. Lealdade de classe era indubitavelmente um ideal de muitos. E quem sabe quanto daquela virilidade superior da pobreza, da qual Phillips Brooks falou de modo penetrante, estava ou não presente entre aqueles homens?
“Uma terra áspera e estéril”, diz Phillips Brooks, “é a pobreza quando se vive nela: uma terra onde com muita frequência sou grato se arrumar uma cereja ou uma raiz para comer. Mas ao viver realmente nela, ao deixar que ela me dê o seu próprio testemunho, ao não desonrá-la a todo momento julgando-a segundo o padrão de outras terras, gradualmente vêm à tona suas qualidades. Ouçam-me!, nenhuma outra terra pode mostrar a geologia moral do mundo tão bem quanto esta, estéril e nua, da pobreza. Veja como as costelas duras… se expõem fortes e sólidas. Nenhuma vida como a da pobreza é tão capaz de nos levar ao coração das coisas e nos ensinar seu significado, é tão capaz de nos fazer sentir a vida e o mundo com todas as almofadas macias rasgadas e jogadas fora… A pobreza faz com que os homens cheguem muito perto uns dos outros, e reconheçam os corações humanos uns dos outros; e a pobreza, mais e melhor do que qualquer outra coisa, exige e grita pela fé em Deus… Eu sei quão superficiais e insensíveis, quão parecidas a uma simples gozação, podem ser as palavras em louvor da pobreza… Mas tenho certeza de que a dignidade e a liberdade de um homem pobre, seu respeito próprio e energia, dependem desse conhecimento cordial de que a sua pobreza é uma verdadeira região e um verdadeiro tipo de vida, com suas próprias características, suas próprias fontes de alegria e revelações de Deus. Que ele resista à falta de contornos que normalmente vem com a pobreza. Que ele insista no respeito à condição na qual vive. Que aprenda a amá-la, de modo que, pouco a pouco, [se] enriquecer, atravessará e porta baixa da velha e familiar pobreza com uma verdadeira pontada de desgosto, e com uma verdadeira honra para com o lar estreito em que viveu por tanto tempo”.
A esterilidade e ignomínia da vida mais usual dos operários consiste no fato de que ela não é movida por nenhuma dessas fontes interiores de ideais. A dor nas costas, as longas horas, são pacientemente suportadas para que? Para um punhado de tabaco, um copo de cerveja, uma xícara de café, uma refeição e uma cama, para começar tudo de novo no dia seguinte e se evadir tanto quanto puder. Eis porque não erguemos monumentos aos operários no metrô, mesmo que eles sejam recrutas, e mesmo que, de um certo modo, nossa cidade esteja baseada sobre seus corações pacientes e seus flancos e ombros perseverantes. E eis porque erguemos monumentos aos nossos soldados, cujas condições exteriores são ainda mais brutais. Os soldados supostamente seguiram um ideal, e os trabalhadores supostamente nenhum.
Vocês vêem, caros amigos, quanto o nosso enredo engrossou; e o quão estranhamente as complexidades desta nossa maravilhosa natureza humana começam a se desenvolver em nossas mãos. Vimos a cegueira e a frieza de uns para com os outros, que é a nossa herança natural; e, apesar delas, fomos levados a reconhecer um sentido interior que o passado mostrou, e que pode estar presente na vida dos outros onde menos esperaríamos encontrá-la. E agora somos levados a dizer que tais sentidos interiores podem ser completos e válidos também para nós, somente quando a alegria, coragem e perseverança interior são acompanhadas de um ideal.
Mas o que exatamente entendemos por um ideal? Será possível oferecermos uma concepção definida desta palavra?
Num certo sentido sim. Um ideal, por exemplo, deve ser algo intelectualmente concebido, algo do qual não somos inconscientes, se o temos; e deve levar consigo aquele tipo de aspecto, elevado e luminoso que acompanha todos os fatos intelectuais. Em segundo lugar, deve haver novidade em um ideal – novidade, ao menos, para aquele que se sente apoderado pelo ideal. A rotina empapada é incompatível com a idealidade, embora aquilo que é rotina empapada para uma pessoa possa ser uma novidade ideal para outra. Isso mostra que não há nada absolutamente ideal: ideais são relativos às vidas que os assimilam. Manter-se fora da sarjeta não é para nós aqui de modo algum uma parte da consciência, e, ainda assim, para muitos de nossos irmãos é o mais legítimo catalizador de ideais.
Ora, considerados nus e crus, abstrata e imediatamente, vê-se que os ideais são a coisa mais barata da vida. Todos os têm de uma forma ou de outra, pessoais ou gerais, sólidos ou equivocados, baixos ou altos; e os sentimentais, sonhadores, bêbados, vagabundos e versejadores do mais reles valor, sem jamais demonstrarem um grão de esforço, coragem ou perseverança, possivelmente os têm na mais copiosa escala. A educação, cumprindo seu ofício de alargar nossos horizontes e perspectivas, é um meio de multiplicar nossos ideais, de trazer novos à nossa vista. E seu professor da faculdade, com sua camisa engomada e seus óculos, seria, se acaso um punhado de ideais fossem por si só suficientes para fazer uma vida significativa, o homem mais profunda e absolutamente significativo. Tolstoi seria completamente cego ao desprezá-lo como um presunçoso, um pedante e uma paródia; e todas as nossas novas inspirações sobre a divindade do trabalho muscular estariam completamente fora dos trilhos da verdade.
Mas tais consequências como essa, você terá sentido instintivamente, são errôneas. Quanto mais ideais um homem tem, mais desprezível, de um modo geral, você o estima, se a questão para ele termina ali, e se nenhuma das virtudes do homem trabalhador são chamadas à ação em seu favor – se nenhuma coragem é demonstrada, se não atravessa qualquer privação, se não contrai nenhuma cicatriz nem se suja no esforço de realizá-los. É bastante óbvio que algo mais do que a mera posse de ideais é necessária para se fazer uma vida significativa em qualquer sentido que convoque a admiração do espectador. Alegria interior, decerto, ela pode ter, com seus ideais; mas isso é uma questão sentimental privada sua. Para extrair de nós, nós que estamos fora e perseguimos nossos próprios ideais, o tributo de nosso invejoso reconhecimento, deve escorar sua visão ideal com aquilo que os trabalhadores têm, o forro mais duro da virtude viril; deve multiplicar a superfície sentimental pela dimensão de sua vontade ativa, se queremos ter profundidade, se quisermos ter alguma coisa cúbica e sólida na direção do caráter.
O valor da vida humana para propósitos comunicáveis e reconhecíveis publicamente é assim o fruto de um casamento de um pai e uma mãe que, sozinhos, são estéreis. Os ideais tomados por si mesmos não dão nenhuma realidade, as virtudes por si mesmas não dão novidade. E que os orientalistas e pessimistas digam o que quiserem, a coisa de mais profundo – ou, de todo modo, comparativamente mais profundo – valor na vida parece ser este caráter do progresso, ou esta estranha união da realidade com a novidade ideal que a continua de um momento para o outro até o presente. Reconhecer a novidade ideal é a tarefa daquilo que chamamos intelecto. Nem sempre a inteligência das pessoas sabe dizer quais novidades são ideais. Para muitos a coisa ideal sempre será apegar-se ao bem antigo e familiar. Neste caso o caráter, embora não de todo significativo, pode ainda ser pateticamente significativo. Assim, se tivemos de escolher qual é o fator mais essencial do caráter humano, devemos dar os braços a Tolstoi, e escolher aquela simples fidelidade à sua luz ou escuridão da qual qualquer homem sem cultura é capaz.
Mas, com todo este vai e vem de minha parte, temo que minhas conclusões lhes pareçam algo confusas. É como se eu estivesse pegando as coisas para depois abandoná-las. Primeiro falei de Chautauqua, e deixei-a de lado; depois de Tolstoi e do heroísmo do labor comum, e deixei-os de lado; finalmente, falei dos ideais, e pareço quase estar soltando-os também. Mas notem, por favor, em que sentido os estou soltando. É quando pretendem, sozinhos, redimir a vida de sua insignificância. A cultura e o refinamento sozinhos não bastam para fazê-lo. Aspirações ideais são insuficientes, se não combinadas com arrojo e vontade. Mas tampouco o arrojo e a vontade, persistência obstinada e insensibilidade ao perigo bastam, se isoladas. Deve haver algum tipo de fusão, algum tipo de combinação química entre estes princípios, para que irrompa uma vida objetiva e plenamente significativa.
Evidentemente, esta é uma conclusão algo vaga. Mas em uma questão de significância, de valor, como esta, as conclusões nunca podem ser precisas. A resposta da apreciação, do sentimento, é sempre um “mais ou menos”, um equilíbrio arrebatado por simpatia, inspiração e boa vontade. Mas é, de todo modo uma reposta, uma conclusão real. E, em busca dela, parece-me que nossos olhos foram abertos para muitas coisas importantes. Alguns de vocês estão, talvez, mais vividamente despertos do que estavam a uma hora atrás para as profundezas de valor que lhes envolve, escondida em vidas desconhecidas. E quando vocês perguntam quanta simpatia vocês deveriam conceder, embora a quantia seja, certamente, uma questão de ideal de sua própria parte, ainda assim nessa combinação de ideais com virtudes ativas, vocês têm um padrão geral para tomarem a sua decisão. Em todo caso, sua imaginação é estendida. Vocês pressentem no mundo ao seu redor matéria para um pouco mais de humildade de sua própria parte, e tolerância e reverência e amor aos outros; e vocês ganham uma certa alegria interior com a importância aumentada da nossa vida comum. Tal alegria é uma inspiração religiosa e um elemento de saúde espiritual, e vale mais do que imensas porções daquele tipo de informação técnica e acurada que nós professores somos supostamente capazes de compartilhar.
Para lhes mostrar o tipo de coisa que entendo por essas palavras, oferecerei uma breve ilustração prática e então encerrarei.
Sofremos hoje em nosso país por aquilo que se chama a questão trabalhista; e, quando vocês vão para o mundo, todos e cada um de vocês se confronta com as perplexidades daí decorrentes. Utilizo o termo sucinto “questão trabalhista” para cobrir todo tipo de descontentamentos anarquistas e projetos socialistas, e as resistências conservadoras que provocam. Até onde tal conflito é nocivo e lamentável – e penso que o seja só até um certo ponto – a nocividade consiste somente no fato de que uma metade de nossos compatriotas permanece inteiramente cega ao valor e ao significado interior das vidas da outra metade. Eles ignoram as alegrias e as aflições, não conseguem sentir a virtude moral, e não suspeitam da presença de ideais intelectuais. Estão em antagonismo ao longo de toda linha, olhando-se uns aos outros como olhariam um punhado de autômatos gesticulando perigosamente, ou, se chegam a captar a motivação interior, cometendo os mais terríveis erros. Com frequência tudo o que o homem pobre vê no rico é uma ganância covarde por segurança, luxúria, e efeminação, além de uma afetação sem limites. O que ele é, não é um ser humano, mas um livro de bolso, uma conta no banco. E uma ganância semelhante, transformada pelo desapontamento em inveja, é tudo o que os ricos vêem no estado de espírito dos pobres insatisfeitos. E, se o rico começa o seu teatro sentimental sobre o pobre, quantas tolices sem sentido ele diz, compadecendo-se dele justamente por aqueles mesmos deveres e imunidades que, se bem compreendidos, são a condição de suas mais íntimas e características alegrias! Cada um deles, em resumo, ignora o fato de que a felicidade e a infelicidade e o valor são um mistério vital; cada um deles os fixa de modo absoluto em algum aspecto ridículo da situação externa; e todos permanecem fora da visão de todos os outros.
A sociedade, com tudo isso, tem sem dúvida de passar por algum tipo de equilíbrio novo e melhor, e a distribuição da riqueza tem sem dúvida nenhuma de vagarosamente se transformar: tais mudanças sempre ocorreram, e ocorrerão até o fim dos tempos. Mas se, após tudo o que eu disse, algum de vocês espera que elas farão alguma diferença vital e genuína em larga escala, nas vidas de nossos descendentes, você terá perdido o sentido de toda a minha palestra. O sólido sentido da vida é sempre a mesma e eterna coisa: ou seja, o casamento de algum ideal não habitual, porém especial, com alguma fidelidade, coragem e perseverança; com as aflições de algum homem ou mulher. E seja lá qual vida for ou onde quer que ela se dê, sempre haverá ocasião para que esse casamento aconteça.
Fitz-James Stephen escreveu há muitos anos algumas palavras a este respeito mais eloquentes do que qualquer coisa que eu possa dizer: “O [navio] ‘Grande Oriente’ ou algum de seus sucessores”, dizia ele, “desafiará talvez a rolagem do Atlântico, e cruzará os mares sem permitir a seus passageiros que percebam ter deixado a terra firme. A jornada do berço à cova pode ser realizada com uma facilidade similar. O progresso e a ciência talvez permitam a incalculáveis milhões viver e morrer sem uma preocupação, sem uma aflição, sem angústia. Terão uma vida agradável e repleta de conversações sofisticadas. Maravilhar-se-ão com aquilo em que os homens alguma vez acreditaram ao travar batalhas e arrasar cidades e afundar navios e pregar a bandos; e, quando chegarem ao fim de seu percurso, seguirão o seu caminho, e aquele lugar não mais tomará conhecimento deles. Mas parece improvável que eles venham a ter tanta noção do grande oceano sobre o qual navegam, com suas tempestades e naufrágios, suas correntes e icebergs, suas ondas gigantescas e ventos indômitos, quanto aqueles que batalharam contra tudo isso por anos juntos na sua pequena embarcação, que, se não fosse por mais nada, trouxeram aqueles que os navegaram completamente na presença do tempo e da eternidade, de seu criador e de si mesmos, e forçou-os a ter alguma visão definitiva de suas relações para com eles e entre si.”
Neste sentido sólido e tridimensional, por assim dizer, estão certos aqueles filósofos que afirmam que o mundo é uma coisa fixa sem progresso, sem uma história real. As condições mutáveis da história tocam somente e superfície do show. Os equilíbrios alterados e redistribuições só diversificam as nossas oportunidades e abrem chances para nós de novos ideais. Mas, com cada novo ideal que vem à vida, a chance de uma vida baseada em algum velho ideal irá se esvair; e o sujeito precisaria ser um calculador presunçoso se viesse a dizer com confiança que a soma total de significância é positivamente e absolutamente maior em qualquer época do que em qualquer outra do mundo.
Falo de maneira geral, eu sei, e omitindo a consideração de certas qualificações nas quais eu mesmo acredito. Mas só se pode assinalar um ponto em uma palestra, e eu ficarei contente se eu tiver trazido meu ponto para casa até vocês nesta noite ainda que num grau leve. Há compensações: e não há mudanças externas da condição na vida que possam impedir o rouxinol de seu sentido eterno de cantar em todos os tipos de corações diferentes de homens. Este é o fato principal a se lembrar. Se pudéssemos não só admiti-lo com nossos lábios, mas real e verdadeiramente acreditar nisso, quanto as nossas insistências convulsivas, quanto as nossas antipatias e temores uns pelos outros, não se suavizariam! Se o pobre e o rico pudessem olhar um para o outro deste modo, sub specie aeternitatis, quão mais gentis não se tornariam as suas disputas! quanta tolerância e bom humor, quanta vontade de viver e deixar viver, viriam ao mundo!