Da “Introdução” à Vida dos Mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitetos de Giorgio Vasari. Florença, 1568 d.C.
Uma vez que o desenho, o pai das nossas três artes – arquitetura, escultura e pintura –, procedendo do intelecto, extrai de muitas coisas um juízo universal, uma espécie de forma ou ideia de todas as coisas da natureza, a qual é singularíssima nas suas medidas, segue-se que não somente dos corpos humanos e dos animais, mas também das plantas e dos edifícios, das esculturas e das pinturas, ele conhece as proporções que o todo guarda com as partes, e as que guardam as partes entre si e com o todo em conjunto; e uma vez que desta cognição nasce uma certa concepção ou juízo, e que se forma na mente aquela coisa que, exprimida depois com as mãos, se chama desenho, pode-se concluir que o desenho outra coisa não é que uma aparente expressão e declaração do conceito que se tem na alma, ou daquilo que outras pessoas imaginaram em suas mentes e produziram em ideia. E daqui porventura nasce aquele provérbio dos gregos “Da unha um leão”, quando um certo homem magnânimo, vendo esculpida num bloco uma única unha de um leão, compreendeu com o intelecto, através daquela medida e daquela forma, cada uma das partes do animal e depois o todo em conjunto, como se estivesse ali presente ante seus olhos.
Há quem creia que o pai do desenho e das artes foi o acaso, e que a experiência e o uso, como uma babá e um pedagogo, o criaram com a ajuda da cognição e da fala; mas eu creio que com mais justiça se possa dizer que na verdade o acaso proporcionou a ocasião para algo que, ele sim, pode ser chamado o pai do desenho. Mas seja lá como for, este desenho precisa, a fim de extrair a invenção de uma coisa qualquer do juízo, de que a mão seja, mediante o estudo e o exercício de muitos anos, expedita e apta a desenhar e exprimir bem qualquer coisa que a natureza tenha criado, seja com bico de pena, com estilete, com carvão, com lápis ou com qualquer outra coisa; porque, quando o intelecto manda para fora os conceitos purificados e avaliados, isto faz com que aquelas mãos que exercitaram por muitos anos o desenho conheçam, a um só tempo, a perfeição e a excelência das artes e o saber do artífice. E porque alguns escultores por vezes não têm muita prática nas linhas e contornos, não sabendo desenhar no papel, eles o substituem, com bela proporção e medida, manufaturando com terra ou cera modelos de homens, animais e outras coisas em relevo, e assim fazem o mesmo que faz aquele que desenha perfeitamente no papel ou em outros planos.
Os homens que praticam estas artes denominaram, ou melhor, classificaram o desenho em vários modos e segundo a qualidade dos desenhos que se fazem. Aqueles que são traçados ligeiramente e sugeridos com leveza pela pluma ou outro instrumento, chamam-no esboço. Aqueles, depois, que acentuam as linhas principais dos contornos chamam-no perfil, contorno ou delineamento.
De todos eles, o perfil ou seja lá como o queiram chamar, serve tanto à arquitetura e à escultura quanto à pintura, mas maximamente à arquitetura; isto porque os desenhos desta arte são compostos somente por linhas, as quais outra coisa não são, no que diz respeito ao arquiteto, que o princípio e o fim de sua arte, já que o resto, como as maquetes de madeira feitas a partir das ditas linhas, nada mais é que a obra de marceneiros e pedreiros.
Já à escultura serve o desenho com todos os contornos, porque de várias perspectivas se vale o escultor quando quer desenhar aquela parte que lhe parece melhor ou que pretende modelar por todos os lados, seja na cera seja na terra seja no mármore seja na madeira seja em outra matéria.
Na pintura os delineamentos são úteis de diversos modos, mas particularmente no contornar cada figura, porque quando elas são bem desenhadas e feitas justas, com proporção, as sombras com que depois serão acrescidas, e também a luz, se encarregam de que os delineamentos da figura desenhada tenham um grandíssimo relevo, chegando assim à bondade e à perfeição plenas.
E de tudo isso vem que quem quer que entenda e maneje bem as técnicas do traçado, será em cada uma destas artes, através da prática e do juízo, excelentíssimo. Quem, portanto, quer aprender bem a exprimir desenhando as concepções da alma e qualquer coisa que se queira, saiba que, após ter treinado suficientemente a mão, deve se tornar mais inteligente nas artes exercitando-se em materializar no papel figuras de relevo, sejam elas de mármore sejam de pedra sejam ainda daquele gesso formado sobre corpos vivos, bem como sobre qualquer bela estátua antiga, ou então relevos de modelos feitos de terra, tanto nus quanto com panos jogados sobre eles como se fossem tecidos e roupas; isto porque todas estas coisas, sendo imóveis e sem sentimento, são muito úteis, estando paradas, para quem quer desenhar, coisa que não acontece com as coisas vivas, que se movem. Posteriormente, quando tiver exercitado e assegurado a mão desenhado coisas desse tipo, comece a desenhar coisas naturais, e com elas faça, com todo labor e diligência possíveis, uma prática boa e segura; isto porque as coisas que vêm do natural são verdadeiramente aquelas que honram a quem nelas se exercita à exaustão, já que têm em si, além de uma certa graça e vivacidade, aquele tanto de simples, fácil e doce que é próprio da natureza e que só das suas coisas, e não das coisas da arte – que jamais será suficiente – se aprende com perfeição. E tenhas como firme que a prática que se faz com o estudo de muitos anos desenhando, como se disse acima, é a verdadeira luz do desenho e aquilo que faz os artistas excelentíssimos.
E assim, tendo raciocinado suficientemente sobre o desenho, poderemos entender o que é a pintura.