Capítulo I da Segunda Parte (“O Homem chamado Cristo”) de O Homem Eterno de Gilbert Keith Chesterton. Londres, 1925 d.C.
Tradução de Almiro Pisetta para a Editora Mundo Cristão
Este esboço da história humana começou numa caverna: a caverna que a ciência popular associa à história do homem das cavernas; a caverna na qual a investigação prática de fato descobriu desenhos arcaicos de animais. A segunda metade da história humana, que foi como uma nova criação do mundo, também começa numa caverna. Até se constata um detalhe dessa fantasia no fato de animais estarem mais uma vez presentes, pois se deu numa caverna usada pelos montanheses das regiões altas de Belém, que ainda hoje conduzem seu gado para essas grutas e cavernas para o pernoite. Foi num lugar assim que um casal sem teto se refugiou junto com o gado quando as portas da apinhada estalagem haviam sido fechadas na cara deles; e foi num lugar assim, exatamente debaixo dos pés dos passantes, num subterrâneo sob o próprio chão do mundo, que Jesus Cristo nasceu. Mas nessa segunda criação houve algo realmente simbólico nas raízes da rocha primeva ou nos chifres da pré-histórica manada. Deus era também um homem das cavernas e também havia desenhado estranhas formas de criaturas, curiosamente coloridas, sobre a parede do mundo; mas as pinturas feitas por ele ganharam vida.
Um grande volume de lendas e escritos, que sempre aumentam e nunca terão fim, tem repetido e ecoado as mudanças desse paradoxo singular: as mãos que fizeram o sol e as estrelas eram pequenas demais para alcançar as cabeças enormes do gado ao redor. Sobre esse paradoxo, quase poderíamos dizer sobre esse chiste, funda-se toda a literatura de nossa fé. Isso é algo que o crítico científico não consegue ver. A duras penas ele explica a dificuldade que nós, de modo desafiador e quase irônico, sempre exageramos; e brandamente condena como improvável algo que nós loucamente sempre exaltamos como incrível; como algo que seria bom demais para ser verdade, só que é verdade. Uma vez que esse contraste entre a criação cósmica e a pequena infância local foi repetido, reiterado, sublinhado, enfatizado, apreciado, cantado, gritado, bradado, para não dizer urrado, numa centena de milhares de hinos, corais, versos, rituais, pinturas, poemas e sermões populares, pode-se sugerir que não precisamos que um crítico superior nos chame atenção para algo um tanto estranho acerca disso; especialmente se for um crítico do tipo que parece levar muito tempo para entender um chiste, mesmo seu próprio chiste. Mas sobre esse contraste e combinação de ideias há coisa que se pode dizer aqui, uma vez que é relevante para toda a tese deste livro. O tipo de crítico de quem estou falando geralmente se impressiona com a importância da educação na vida e a importância da psicologia na educação. Esse tipo de homem nunca se cansa de nos dizer que as primeiras impressões fixam o caráter pela lei da causação; e ele fica muito nervoso se o sentido visual de uma criança for envenenado pelas cores erradas de uma boneca grotesca, ou se o sistema nervoso dela for abalado por uma estrepitosa cacofonia. No entanto, ele nos julgará muito tacanhos se dissermos que esse é exatamente o motivo pelo qual há de fato uma diferença entre ser criado como cristão e ser criado como judeu, ou muçulmano, ou ateu. A diferença é que todas as crianças católicas aprenderam com pinturas, e até mesmo todas as crianças protestantes aprenderam com histórias, essa incrível combinação de ideias diferentes que formaram uma das primeiras impressões de sua mente. Não é apenas uma diferença teológica. É uma diferença psicológica que sobrevive a qualquer teologia. Ela de fato é, como aquele tipo de cientista gosta de dizer sobre o que quer que seja, incurável. Qualquer agnóstico ou ateu cuja infância conheceu um verdadeiro Natal sempre faz dali por diante, goste ele disso ou não, uma associação mental entre duas ideias que a maior parte da humanidade deve considerar como distantes uma da outra: a ideia de um bebê e a ideia de uma força desconhecida que sustenta as estrelas. Seus instintos e sua imaginação ainda conseguem ligá-las, quando sua razão já não consegue ver a necessidade da ligação; para ele sempre haverá certo sabor de religião envolvendo o simples quadro de uma mãe e seu bebê; alguma sugestão de compaixão e suavização envolvendo a simples menção do terrível nome de Deus. Mas essas duas ideias não estão associadas de modo natural ou necessário. Elas não estariam necessariamente associadas para um antigo grego ou chinês, nem mesmo para Aristóteles ou Confúcio. Não é mais inevitável ligar Deus a um infante do que ligar a gravitação a um gatinho. A associação foi criada em nossa cabeça pelo Natal porque somos cristãos, porque somos cristãos psicológicos mesmo quando não somos cristãos teológicos. Em outras palavras e usando uma expressão muito discutida, a combinação de ideias alterou profundamente a natureza humana. Há realmente uma diferença entre o homem que sabe disso e o homem que não sabe. Talvez não seja uma diferença de valor moral, pois o muçulmano ou o judeu poderiam ser mais dignos de acordo com as luzes deles; mas é um fato evidente envolvendo o cruzamento de duas luzes particulares, a conjunção de dois astros num horóscopo particular. Onipotência e impotência, ou divindade e infância, criam definitivamente uma espécie de epigrama que um milhão de repetições não consegue transformar numa banalidade. Não é nenhum exagero chamá-lo de único. Belém é decididamente um lugar onde os extremos se encontram.
Aqui começa, nem é preciso dizê-lo, outra poderosa influência para a humanização da cristandade. Se o mundo quisesse o que se chama de um aspecto não controverso do cristianismo, provavelmente escolheria o Natal. Todavia, o Natal está obviamente ligado ao que se supõe ser um aspecto controverso (eu jamais consegui, em estágio algum de minhas avaliações, imaginar por quê): o respeito prestado à abençoada Virgem. Na minha infância uma geração mais puritana levantou objeções contra a estátua sobre a minha igreja paroquial representando a Virgem e o Menino. Depois de muita controvérsia, concordaram em tirar a criança. Ter-se-ia até a impressão de que isso era mariolatria ainda mais deturpada, a menos que a mãe fosse considerada menos perigosa quando despojada de uma espécie de arma. Mas a dificuldade prática é também uma parábola. Não se pode cortar da estátua de uma mãe todo o cenário de um recém-nascido. Não se pode deixar um recém-nascido suspenso no ar; na verdade não se pode realmente sequer ter uma estátua de um recém-nascido. Da mesma forma, não se pode manter a ideia de uma criança recém-nascida suspensa no vazio, ou pensar nela sem pensar em sua mãe. Não se pode visitar a criança sem visitar a mãe; não se pode, na vida humana normal, abordar a criança a não ser por intermédio da mãe. Se nós simplesmente quisermos pensar nesse aspecto da vida de Cristo, a outra ideia é uma consequência como é uma consequência na história.
Devemos excluir Cristo do Natal, ou o Natal de Cristo; ou então devemos admitir, mesmo que seja apenas como admitimos num quadro antigo, que aquelas duas cabeças sagradas estão próximas demais para que suas auréolas não se misturem e se sobreponham.
Poderíamos sugerir, usando uma imagem um tanto violenta, que nada havia acontecido naquela concavidade ou fenda nas grandes montanhas cinzentas, a não ser o fato de que todo o universo fora virado do avesso. Quero dizer que todos os olhares de admiração e adoração antes voltados para fora para a maior das realidades voltavam-se agora para dentro na direção da menor das realidades. A própria imagem sugerirá todo aquele coletivo espanto de olhares convergentes que faz tantas coloridas imagens católicas parecer-se com a cauda de um pavão. Mas é verdade em certo sentido que Deus, que fora apenas uma circunferência, era visto como um centro; e o centro é infinitamente pequeno. É verdade que a espiral espiritual de agora em diante funciona para dentro e não mais para fora, e nesse sentido é centrípeta e não centrífuga. A fé se torna, de várias maneiras, uma religião de realidades pequenas. Mas suas tradições na arte, literatura e fábulas populares atestaram de modo mais que suficiente, como já se disse, esse paradoxo particular do ser divino no berço. Talvez não se tenha enfatizado de modo muito claro a importância do ser divino na caverna. De fato, é muito curioso que a tradição não tenha enfatizado a caverna com muita clareza. É um fato conhecido que a cena de Belém tem sido representada em todos os cenários possíveis de tempos e países, de paisagens e arquiteturas; e é igualmente admirável o fato de que os homens a conceberam de modos muito diferentes de acordo com suas diferentes tradições e gostos individuais. Mas, embora todos tenham percebido que se tratava de um estábulo, não muitos perceberam que se tratava de uma caverna. Alguns críticos foram tolos o suficiente para supor que havia alguma contradição entre o estábulo e a caverna; nesse caso, eles não devem saber muito sobre cavernas e estábulos na Palestina. Assim como eles veem diferenças que não existem, nem precisa dizer que não veem diferenças que existem. Quando um crítico muito conhecido diz, por exemplo, que Cristo nascer numa caverna rochosa é como Mitras ter brotado vivo de um rochedo, parece uma paródia baseada em religião comparada. Existe algo que se chama ponto principal de uma história, mesmo que se trate de uma história no sentido de uma mentira. E a ideia de um herói surgindo, como Palas surgiu do cérebro de Zeus, maduro e sem mãe é num sentido óbvio exatamente o oposto da ideia de um deus nascendo como um bebê normal e inteiramente dependente de sua mãe. Qualquer que seja nossa preferência nesse caso, certamente deveríamos perceber que são ideais contrários. É tão insensato ligá-los entre si por ambos conterem uma substância chamada pedra como é insensato identificar o castigo do Dilúvio com o batismo no Jordão por ambos conterem uma substância chamada água. Tanto como mito quanto como mistério, Cristo obviamente foi imaginado como nascido num buraco nas rochas primeiramente porque isso marcava a posição de um excluído e sem teto. Apesar de tudo isso é verdade, como eu já disse, que a caverna não tem sido usada de um modo muito comum ou muito claro como símbolo na mesma proporção que o foram as outras realidades que cercaram o primeiro Natal.
E a razão disso também se refere à própria natureza daquele mundo novo. Foi em certo sentido a dificuldade de uma nova dimensão. Cristo não apenas nasceu pondo-se no mesmo nível do mundo, mas até mesmo abaixo dele. O primeiro ato do drama divino foi representado não apenas num palco que não foi montado num nível acima do espectador, mas sim num palco escuro, fechado e afundado fora do alcance dos olhos; e essa é uma ideia muito difícil de expressar na maioria das modalidades de expressão artística. É a ideia de acontecimentos simultâneos em diferentes níveis de vida. Algo semelhante a isso poderia ter sido tentado na mais antiga arte medieval decorativa. Mas quanto mais os artistas foram aprendendo de realismo e perspectiva, tanto menos podiam pintar simultaneamente os anjos no céu, os pastores nas montanhas e a glória nas trevas sob as montanhas. Talvez isso pudesse ter sido transmitido da melhor forma pelo típico expediente de algumas das guildas medievais, quando se transportava sobre rodas pelas ruas um teatro com três palcos um em cima do outro, com o céu no alto e a terra e o inferno embaixo. Mas no enigma de Belém era o céu que estava embaixo da terra.
Só nisso já havia o toque de uma revelação, a do mundo de cabeça para baixo. Vão seria tentar dizer algo adequado, ou algo novo, acerca da mudança que essa concepção de deidade nascida como um excluído ou até mesmo um fora-da-lei exerceu sobre toda a concepção de lei e de seus deveres para com os pobres e excluídos. É profundamente verdadeiro dizer que depois daquele momento não poderia mais haver escravos. Poderia haver e houve gente carregando esse título legal até a Igreja ficar forte o suficiente para eliminá-lo, mas já não poderia mais existir aquela tranquilidade pagã assentada na mera vantagem estatal de manter um estado servil. Os indivíduos tornaram-se importantes adquirindo um valor que nenhum instrumento pode ter. Um homem já não podia ser um meio para um fim, pelo menos não para o fim de algum outro homem. Todo esse elemento popular e fraterno na história tem sido corretamente ligado pela tradição ao episódio dos pastores, os camponeses que se viram conversando cara a cara com os príncipes dos céus. Mas há outro aspecto do elemento popular que talvez não tenha sido plenamente desenvolvido; e esse é relevante aqui de um modo mais direto.
Homens do povo, como os pastores, homens da tradição popular, haviam sido em todas as partes os criadores das mitologias. Eram eles os que haviam sentido da forma mais direta, com menos controle por parte da filosofia ou dos cultos corruptos da civilização, a necessidade que já consideramos: as imagens que eram aventuras da imaginação; a mitologia que era uma espécie de investigação; os indícios tentadores e provocadores de algo semi-humano na natureza; a significância muda das estações e de lugares especiais. Eles haviam entendido melhor que ninguém que a alma de uma paisagem é uma história e a alma de uma história é uma personalidade. Mas o racionalismo já havia começado a decompor esses tesouros do camponês realmente irracionais embora imaginativos; exatamente como a escravidão sistemática havia privado o camponês de sua casa e seu lar. Em todas essas sociedades camponesas, por toda parte caía uma confusão e um crepúsculo de decepção, na hora em que esses poucos homens descobriram o que buscavam. Em todas as outras partes a Arcádia estava desaparecendo da floresta. Morto estava Pan e os pastores dispersos como ovelhas. E embora ninguém o soubesse, aproximava-se a hora de terminar e cumprir-se tudo; e, embora ninguém o ouvisse, havia um grito distante numa língua desconhecida ecoando pelos altaneiros ermos das montanhas. Os pastores haviam encontrado seu Pastor.
E o que eles encontraram era da mesma espécie daquilo que buscavam. O povo se enganara em muitas coisas; mas não se havia enganado ao acreditar que realidades divinas poderiam ter uma habitação, e que a divindade não precisava desdenhar os limites de tempo e espaço. E os bárbaros que conceberam a mais grosseira fantasia sobre o sol sendo roubado e escondido numa caixa, ou o mito mais desvairado sobre o deus sendo resgatado e seu inimigo enganado com uma pedra, estavam mais próximos do segredo da caverna e sabiam mais sobre a crise do mundo do que todos aqueles do círculo de cidades em volta do Mediterrâneo, que se mostravam satisfeitos com frias abstrações ou generalizações cosmopolitas; do que todos aqueles que estavam tecendo fios cada vez mais adelgaçados de pensamentos extraídos do transcendentalismo de Platão ou do orientalismo de Pitágoras. O lugar que os pastores encontraram não foi uma academia ou uma república abstrata; não foi um lugar de mitos alegorizados ou dissecados ou explicados ou esvaziados. Foi um lugar de sonhos realizados. Desde aquela hora nenhuma outra mitologia foi criada no mundo. Mitologia é busca.
Todos nós sabemos que a apresentação popular dessa história popular, em numerosos dramas sacros e canções natalinas, atribuiu aos pastores a roupagem, a língua e a paisagem de distintas zonas rurais inglesas e europeias. Todos nós sabemos que um dos pastores fala num dialeto de Somerst ou que outro fala em levar as ovelhas de Conway para Clyde. A maioria de nós sabe a esta altura como é verdadeiro esse erro, como é sábio e artístico, como é intensamente cristão e católico esse anacronismo. Mas alguns que viram isso nessas cenas de rusticidade medieval talvez não o tenham observado em outra espécie de poesia, que às vezes se convencionou chamar de artificial em vez de artística. Receio que muitos críticos modernos verão apenas um classicismo esmaecido no fato de homens como Crashaw e Uerrick terem concebido os pastores de Belém sob a forma dos pastores de Virgílio. No entanto, eles estavam profundamente certos: transformando seus dramas de Belém numa écloga latina, eles utilizaram uma das conexões mais importantes na história humana. Virgílio, como já vimos, representa o paganismo mais sadio que havia derrubado o paganismo insensato dos sacrifícios humanos; mas o próprio fato de que até mesmo as virtudes virgilianas e o paganismo sensato eram uma deterioração incurável constitui todo o problema cuja solução está na revelação feita aos pastores. Se o mundo um dia tivesse tido uma oportunidade de cansar-se de ser demoníaco, poderia ter sido curado simplesmente tornando-se sensato. Mas se ele se cansara até mesmo da sensatez, que devia acontecer, a não ser o que de fato aconteceu? Não é falso imaginar o pastor arcádico das éclogas rejubilando-se pelo que aconteceu. Até se reivindicou que uma das éclogas fosse uma profecia do que de fato aconteceu. Mas é tanto no tom quanto na dicção incidental do grande poeta que sentimos a potencial afinidade com o grande evento; e até mesmo em suas elocuções humanas as vozes dos pastores virgilianos mais de uma vez poderiam ter descoberto mais do que a ternura da Itália. … Incipe, parve puer, risu cognoscere matrem… [“Comece, criança, a reconhecer sua mãe com um sorriso”] Eles poderiam ter encontrado naquele lugar estranho tudo o que havia de melhor nas últimas tradições latinas; e algo melhor do que um ídolo de madeira representando para sempre o pilar da família humana; um deus da família. Mas eles e todos os outros mitólogos seriam justificados por rejubilar-se porque o acontecimento havia cumprido não apenas o misticismo, mas também o materialismo da mitologia. A mitologia teve muitos pecados; mas não andara errada sendo carnal como a Encarnação. Com algo da antiga voz que supostamente devia ter ecoado por todos os túmulos, ela podia gritar novamente: “Nós Assim os antigos pastores poderiam ter dançado, e seus pés poderiam ter sido belos sobre as montanhas, alegrando-se eles mais que os filósofos. Mas os filósofos também ouviram.
Embora antiga, soa ainda estranha a história de como eles vieram de terras do Oriente, coroados com a majestade de reis e vestindo algo do mistério dos mágicos. A verdade da tradição sabiamente os lembra quase como quantidades desconhecidas, tão misteriosas como seus misteriosos e melodiosos nomes: Melquior, Gaspar e Baltazar. Mas veio com eles todo aquele mundo de sabedoria que havia observado as estrelas na Caldeia e o sol na Pérsia; e não estaremos errados vendo neles a mesma curiosidade que move todos os sábios. Eles representariam o mesmo ideal humano se seus nomes de fato fossem Confúcio ou Pitágoras ou Platão. Eles eram daqueles que buscavam não a história, mas sim a verdade das coisas; e sendo que sua sede de verdade era em si mesma sede de Deus, eles também tiveram sua recompensa. Mas até mesmo para entendermos essa recompensa, precisamos entender que tanto para a filosofia quanto para a mitologia essa recompensa foi o complemento do que estava incompleto.
Homens tão sábios sem dúvida teriam vindo, como esses homens eruditos de fato vieram, para obter pessoalmente a confirmação de muitas coisas verdadeiras em sua própria tradição e saber que estavam certos em seus raciocínios. Confúcio teria constatado uma nova fundação para a família na própria inversão da Sagrada Família; Buda teria observado uma nova renúncia, de estrelas em vez de jóias, de divindade em vez de realeza. Esses sábios ainda teriam o direito de dizer, ou melhor, um novo direito de dizer que havia verdade em seus antigos ensinamentos. Mas, no fim das contas, esses homens sábios teriam vindo para aprender. Eles teriam vindo para completar suas concepções com algo que ainda não haviam concebido; até mesmo para equilibrar seu universo imperfeito com algo que eles outrora poderiam ter contestado. Buda teria vindo de seu paraíso impessoal para adorar uma pessoa. Confúcio teria vindo de seus templos do culto dos antepassados para cultuar uma criança.
Precisamos captar desde o início esse caráter do novo cosmo: ele era mais amplo que o velho cosmo. Nesse sentido a cristandade é mais ampla que a criação, aquela criação de antes de Cristo. Incluía coisas que antes não estavam lá e incluía também as que já estavam. Essa ideia incidentalmente está bem ilustrada neste exemplo de piedade chinesa, mas seria verdadeira em relação a outras virtudes ou crenças pagãs: ninguém duvida de que um respeito razoável pelos pais faz parte de um evangelho em que o próprio Deus se sujeitou na infância a pais terrenos. Mas o outro sentido segundo o qual os pais estavam sujeitos a ele introduz uma ideia que não é confucionista. O infante Cristo não é como o infante Confúcio; nosso misticismo o concebe com uma infância imortal. Não sei o que Confúcio teria feito com o Bambino, se ele surgisse vivo em seus braços como surgiu nos braços de São Francisco. Mas isso é verdadeiro em relação a todas as outras religiões e filosofias: é o desafio da Igreja. A Igreja contém o que o mundo não contém.
A própria vida não provê como faz para todos os aspectos da vida. O fato é que todos os outros sistemas individuais são estreitos e insuficientes comparados com este; isso não é ostentação retórica; é um fato real e um dilema real. Onde está o Santo Menino entre os estoicos e os adoradores de ancestrais? Onde está a Nossa Senhora dos muçulmanos, uma mulher que não foi feita para homem algum e foi colocada acima dos anjos? Onde está o são Miguel dos monges de Buda, cavaleiro e corneteiro, preservando para todos os soldados a honra da espada? Que poderia fazer santo Tomás de Aquino com a mitologia do bramanismo, ele que descreveu toda a ciência e racionalidade e até mesmo o racionalismo do cristianismo? No entanto, mesmo se compararmos Tomás de Aquino com Aristóteles, no outro extremo da razão, teremos a mesma sensação de algo acrescentado. Tomás de Aquino conseguiu entender as partes mais lógicas de Aristóteles; não se sabe se Aristóteles conseguiria entender as partes mais místicas de Tomás de Aquino. Mesmo em pontos em que não podemos dizer que o cristão é maior, somos forçados a dizer que ele é mais amplo. Mas é o que acontece seja qual for a filosofia, ou a heresia, ou o movimento moderno enfocado. Como se sairia o trovador Francisco de Assis entre os calvinistas, ou, indo além, entre os utilitaristas da Escola de Manchester? No entanto, homens como Bossuet e Pascal poderiam ser tão severos e lógicos quanto qualquer calvinista ou utilitarista. Como se sairia santa Joana d’Arc, uma mulher incitando homens à luta com a espada, entres os quacres, ou os doukhabors ou a seita pacifista tolstoiana? No entanto, grande número de santos católicos passou a vida pregando a paz e impedindo guerras. O mesmo acontece com as tentativas modernas de sincretismo. Elas jamais conseguem criar algo mais amplo do que o Credo sem excluir alguma coisa. Não quero dizer excluir alguma coisa divina, mas alguma coisa humana: a bandeira, ou a estalagem, ou a história da batalha do rapaz; ou a cerca viva na extremidade do campo. Os teosofistas constroem um panteão; mas é apenas um panteão para panteístas. Eles postulam um Parlamento de Religiões como a reunião de todos os povos; mas é apenas uma reunião de pedantes. No entanto, exatamente um panteão desses foi estabelecido dois mil anos antes junto ao litoral do Mediterrâneo; e os cristãos foram convidados a expor a imagem de Jesus lado a lado com as imagens de Júpiter, Mitra, Osíris, Átis ou Amon. Foi a recusa dos cristãos que marcou a virada na história. Se os cristãos houvessem aceitado, eles e o mundo inteiro teriam com certeza, usando uma metáfora grotesca mas exata, acabado no caldeirão. Todos teriam sido reduzidos a um líquido morno naquela enorme panela de corrupção cosmopolita em que todos os outros mitos e mistérios já se estavam misturando. Foi uma fuga terrível e assustadora. Ninguém entende a natureza da Igreja ou o tom reverberante do credo proveniente da antiguidade; quem não percebe que todo o mundo outrora quase morreu devido a sua tolerância e à fraternidade de todas as religiões.
Aqui é importante sublinhar a ideia de que os reis magos, que representam o misticismo e a filosofia, são realmente concebidos como pessoas que buscam o novo e encontram até mesmo o inesperado. Aquela sensação de crise que ainda emociona na história do Natal, e até em cada celebração dessa data, acentua a ideia de busca e descoberta. A descoberta é, nesse caso, realmente uma descoberta científica. Para as outras figuras místicas desse drama sacro, para o anjo e a mãe, os pastores e os soldados de Herodes, pode haver aspectos mais simples e mais sobrenaturais, mais elementares ou mais emotivos. Mas os sábios do Oriente devem buscar a sabedoria; e para eles deve haver uma luz também no intelecto. E esta é a luz: o credo católico é católico e nada mais é católico. A filosofia da Igreja é universal! A filosofia dos filósofos não é universal. Se Platão e Pitágoras tivessem sido envolvidos por um instante pela luz que saiu daquela pequena caverna, teriam sabido que sua própria luz não era universal. Não há nenhuma certeza, de fato, de que eles já não o soubessem. A filosofia também, assim como a mitologia, parecia-se muito com uma busca. É a percepção dessa verdade que atribui sua tradicional majestade e mistério às figuras dos três reis: a descoberta de que a religião é mais ampla do que a filosofia e de que esta é a mais ampla de todas as religiões, encerrada nesse espaço exíguo. Os magos estavam contemplando o estranho pentagrama com o triângulo humano invertido; e eles nunca chegaram à conclusão de seus cálculos. Ali está o paradoxo desse grupo na caverna: embora nossas emoções acerca dele sejam de uma simplicidade infantil, nossos pensamentos sobre ele podem ramificar-se criando uma complexidade infinita. E jamais poderemos atingir o fim nem mesmo de nossas ideias acerca da criança que era um pai e da mãe que era uma criança.
Poderíamos nos contentar perfeitamente dizendo que a mitologia viera com os pastores e a filosofia com os filósofos; e que só lhes restava se acertarem entre si sobre o reconhecimento da religião. Mas havia um terceiro elemento que não deve ser ignorado, um elemento que a religião sempre se recusa a ignorar, em qualquer celebração ou reconciliação. Estava presente nas cenas primárias do drama aquele Inimigo que havia corrompido as lendas com a luxúria e congelado as teorias transformando-as em ateísmo, mas que reagiu ao desafio direto com algo daquele método mais direto que observamos no culto consciente prestado aos demônios. Na descrição desse culto satânico, da voraz aversão pela inocência mostrada nas obras de sua bruxaria e do mais desumano de seus sacrifícios humanos, falei menos de sua penetração indireta e secreta no paganismo mais sadio; da saturação da imaginação mitológica com sexo; da ascensão do orgulho imperial transformado em insanidade. Mas ambas as influências, a direta e a indireta, fazem-se sentir no drama de Belém. Um soberano sob o regime de suserania romana, provavelmente equipado e cercado com o ornato e a ordem romana, embora ele mesmo tivesse sangue oriental, pelo que parece sentiu naquela hora vibrar dentro de si mesmo o espírito de coisas estranhas. Todos nós conhecemos a história de como Herodes, alarmado por rumores sobre um misterioso rival, lembrou-se do gesto desvairado dos caprichosos déspotas da Ásia e ordenou o massacre de suspeitos da nova geração do povo comum. Todos conhecem a história; mas nem todos talvez tenham notado seu lugar na história das estranhas religiões dos homens. Nem todos perceberam a importância até mesmo de seu próprio contraste com as colunas de Corinto e a calçada romana daquele mundo conquistado e superficialmente civilizado. Só mesmo um vidente, à medida que o propósito em seu negro espírito começou a mostrar-se e a brilhar nos olhos do idumeu Herodes, poderia talvez ter visto algo semelhante a um enorme fantasma cinzento olhando por sobre os ombros; poderia ter visto atrás dele, enchendo a cúpula da noite e pairando no ar pela última vez ao longo da história, aquele vasto e terrível rosto que era o Moloque dos cartagineses; aguardando seu último tributo de um monarca das raças de Sem. Os demônios também, naquele festival natalino, celebraram à sua maneira.
Se não entendermos a presença daquele inimigo, deixaremos de entender não apenas o ponto principal do cristianismo, mas até mesmo do Natal. O Natal para nós da cristandade tornou-se uma realidade, e em certo sentido uma realidade simples. Mas como todas as verdades dessa tradição, ela é em outro sentido uma realidade muito complexa. Sua nota única é a percussão simultânea de muitas notas: de humildade, de alegria, de gratidão, de místico temor, mas também de vigilância e de drama. Não é apenas uma ocasião para os pacíficos, como também não é apenas dos foliões; não é apenas uma conferência de paz hindu, como também não é apenas uma festa de inverno escandinava. Nela há também algo de desafiador: algo que faz os abruptos sinos da meia-noite soarem como grandes canhões de uma batalha que acaba de ser vencida. Toda essa coisa indescritível que chamamos de atmosfera do Natal simplesmente paira no ar como uma prolongada fragrância ou um vapor que vai desaparecendo da exultante explosão daquela hora única nas montanhas da Judeia aproximadamente dois mil anos atrás. Mas o sabor é ainda inconfundível, e trata-se de algo demasiado sutil ou demasiado solitário para ser abarcado pelo nosso emprego da palavra paz. Pela própria natureza da história o exultar na caverna foi o exultar numa fortaleza, ou num antro de proscritos; entendendo-se a situação adequadamente, não é uma leviandade dizer que eles estavam exultando num abrigo de trincheira. Não é apenas verdade que aquele aposento subterrâneo era um esconderijo contra os inimigos, e que os inimigos já estavam vasculhando a pedregosa planície que se estendia acima deles como um céu. Não é apenas verdade que os próprios cascos dos cavalos de Herodes poderiam naquele sentido ter passado como um trovão por sobre a submersa cabeça de Cristo. É também verdade que naquela imagem existe a verdadeira ideia de um posto avançado, de uma perfuração na rocha e de uma entrada no território inimigo. Há nessa divindade enterrada uma ideia de minar o mundo; de sacudir as torres e os palácios desde suas bases; exatamente como Herodes, o grande rei, sentiu aquele terremoto sob seus pés e oscilou com seu oscilante palácio.
Esse talvez seja o mais poderoso dos mistérios da caverna. Já se vê que, embora se diga que os homens procuraram o inferno debaixo da terra, nesse caso é antes o céu que está debaixo dela. E segue-se daí que nessa estranha história existe a ideia de uma revolução no céu. Esse é o paradoxo de toda essa situação: desse momento em diante a realidade mais alta só pode atuar de baixo para cima. A realeza só pode voltar ao que é seu mediante uma espécie de rebelião. De fato a Igreja desde o seu início, e especialmente no seu início, não foi tanto um principado quanto uma revolução contra o príncipe do mundo. Essa ideia de que o mundo havia sido conquistado pelo grande usurpador, e estava em sua posse, tem sido muito deplorada ou ridicularizada por aqueles otimistas que identificam o iluminismo com o sossego. Mas ela foi responsável por toda a emoção do desafio e do belo risco que fez a boa-nova parecer realmente boa e ao mesmo tempo nova. Foi de fato contra uma enorme usurpação inconsciente que essa ideia fez uma revolução, no início uma revolução muito obscura. O Olimpo ainda ocupava o céu como uma nuvem parada, moldada de acordo com muitas poderosas formas; a filosofia ainda ocupava os assentos mais altos e até mesmo os tronos de reis, quando Cristo nasceu na caverna e o cristianismo surgiu nas catacumbas.
Nos dois casos podemos observar o mesmo paradoxo da revolução: o sentimento de algo desprezado e de algo temido. A caverna, sob um aspecto, é apenas um buraco ou um canto para o qual são varridos como lixo os excluídos; no entanto, sob outro aspecto, é um esconderijo de algo precioso que os tiranos estão procurando como um tesouro. Em certo sentido eles estão ali porque o dono da estalagem nem sequer se lembraria deles e, em outro, porque o rei jamais pôde esquecer-se deles. Já observamos que esse paradoxo apareceu também no tratamento dispensado à Igreja primitiva. Ela era importante, embora ainda fosse insignificante, e com certeza enquanto ainda era impotente. Ela era importante somente porque era intolerável; e nesse sentido é correto dizer que era intolerável porque era intolerante. Houve ressentimentos contra a igreja porque, à sua maneira silenciosa e quase secreta, ela havia declarado guerra. Ela saíra do chão para aniquilar o paganismo no céu e na terra. Ela não tentou destruir todas aquelas criações de ouro e mármore; mas contemplou um mundo sem isso. Ousou olhar através disso tudo como se o ouro e o mármore fossem vidro. Aqueles que acusaram os cristãos de atear fogo em Roma foram caluniadores, mas estavam no mínimo mais próximos da natureza do cristianismo que aqueles entre os modernos que nos dizem terem sido os cristãos uma espécie de sociedade ética, de gente que se deixava martirizar de forma lânguida por mostrar aos homens suas obrigações para com o próximo, gente detestada de um modo brando por sua humildade e compaixão.
Herodes, portanto, teve seu lugar no drama sacro de Belém porque constituiu a ameaça à igreja militante e a exibe desde o início sofrendo perseguição e lutando pela própria vida. Para aqueles que pensam que isso é uma dissonância, é uma dissonância que soa simultaneamente com os sinos de Natal. Para aqueles que acham que a ideia das cruzadas é uma ideia que estraga a ideia da cruz, nós só podemos dizer que para eles a ideia da cruz está estragada; a ideia da cruz foi literalmente estragada no berço. Não é relevante argumentar com eles aqui sobre a ética abstrata de lutar; o que se quer neste ponto é simplesmente recapitular a combinação de ideias que compõe a ideia cristã e católica, e observar que todas essas ideias já estão cristalizadas na primeira história do Natal. Há três coisas distintas e comumente contrastadas que apesar de tudo são uma coisa só; mas essa é a única coisa que pode fazer delas uma só. A primeira coisa é o instinto humano por um céu que deverá ser tão literal e quase tão local como uma casa. É a ideia perseguida por todos os poetas e todos os pagãos criadores de mitos: que um lugar particular deve ser o santuário do deus ou a morada dos bem-aventurados; que o país das fadas é um país; ou que o retorno do espírito deve ser a ressurreição do corpo. Não raciocino aqui acerca da recusa do racionalismo de satisfazer essa necessidade. Eu só digo que se os racionalistas se recusam a satisfazê-lo, os pagãos não serão satisfeitos. Isso está presente na história de Belém e Jerusalém como está presente na história de Delos e Delfos; e como não esta presente em todo o universo de Lucrécio ou todo o universo de Herbert Spencer. A segunda coisa é uma filosofia mais ampla do que outras filosofias; mais ampla que a de Lucrécio e infinitamente mais ampla do que a de Herbert Spencer. Ela olha para o mundo através de uma centena de janelas quando o antigo estoico ou o moderno agnóstico olha através de uma apenas. Ela vê a vida com milhares de olhos pertencentes a milhares de tipos diferentes de pessoas, onde o outro é apenas o ponto de vista individual de um estoico ou um agnóstico. Ela tem algo para todos os estados de espírito do homem, encontra trabalho para todos os tipos de homens, entende segredos de psicologia, tem consciência das profundezas do mal, é capaz de distinguir entre maravilhas reais e irreais e exceções miraculosas, exercita-se no discernimento envolvendo casos difíceis, tudo com a multiplicidade, sutileza e imaginação acerca das variedades da vida que fica muito além das triviais ou joviais banalidades da mais antiga ou moderna filosofia moral. Numa palavra, nela há mais coisas: ela encontra mais coisas na existência sobre as quais refletir; ela obtém mais coisas da vida. Grande parte desse material acerca de nossa multifacetada vida foi acrescentado desde o tempo de santo Tomás de Aquino. Mas santo Tomás de Aquino sozinho ter-se-ia sentido limitado no mundo de Confúcio ou de Comte. E a terceira coisa é esta: embora seja local o bastante para a poesia e mais ampla do que qualquer filosofia, ela é também um desafio e um combate. Conquanto seja deliberadamente alargada para abraçar todos os aspectos da verdade, ela está fortemente preparada para o combate contra todas as modalidades de erro. Ela induz todos os tipos de gente a lutar por ela, consegue todos os tipos de armas para usar na luta, amplia seu conhecimento das coisas pelas quais e contra as quais luta com todas as artes da curiosidade ou compaixão: mas ela nunca se esquece de que está lutando. Ela proclama a paz na terra e nunca se esquece de por que houve uma guerra no céu.
Essa é a trindade de verdades simbolizadas aqui pelos três tipos nas antigas histórias do Natal: os pastores, os reis e o outro rei que declarou guerra contra as crianças. Não é simplesmente verdadeiro dizer que outras religiões e filosofias são, sob esses aspectos, suas rivais. Não é verdadeiro dizer que alguma delas reúna essas características; não é verdadeiro dizer que alguma delas pretenda reuni-las. O budismo pode professar ser igualmente místico; mas não professa ser igualmente militar. O islamismo professa ser igualmente militar; mas não professa ser igualmente metafísico e sutil. O confucionismo pode professar que satisfaz a necessidade que têm os filósofos de ordem e razão; mas não professa satisfazer a necessidade que os místicos têm do milagre, do sacramento e da consagração de coisas concretas. Há muitas evidências dessa presença de um espírito ao mesmo tempo universal e único. Uma delas servirá neste ponto, aquela que é o assunto deste capítulo: nenhuma outra história, nenhuma lenda pagã, ou anedota filosófica, ou evento histórico de fato nos afeta com aquela impressão peculiar e até pungente produzida em nós pela palavra Belém. Nenhum outro nascimento de um deus, nenhuma outra infância de um sábio nos parece ser o Natal nem algo parecido com o Natal. Ou é demasiado frio ou demasiado frívolo, ou demasiado formal e clássico, ou demasiado simples e selvagem, ou demasiado oculto e complicado. Ninguém dentre nós, sejam quais forem nossas opiniões, jamais iria buscar uma cena dessas com a sensação de estar indo para casa. Poderíamos admirá-la por ela ser poética, ou por ser filosófica, ou por muitas outras coisas isoladas; mas não por ela ser o que é. A verdade é que há um caráter muito peculiar e individual envolvendo o fascínio que essa história exerce sobre a natureza humana; em sua substância psicológica ela não é nada parecida com uma lenda ou com a biografia de um grande homem. No exato sentido comum, ela não dirige nossa mente para a grandeza: para aquelas amplificações e exageros de seres humanos transformados em deuses e heróis, mesmo pelas espécies mais sadias de veneração dos heróis. Ela não opera exatamente para fora, com intrepidez, visando as maravilhas que se podem encontrar nos confins da terra. Ela é antes algo que nos surpreende pelas costas, desde a parte oculta e pessoal de nosso ser; como aquilo que às vezes nos pega desprevenidos na emoção de pequenos objetos ou nas atitudes piedosas de gente pobre. É mais propriamente como se alguém tivesse descoberto um quarto interno no recesso mais íntimo de sua própria casa, de cuja existência nunca se suspeitara, e houvesse visto uma luz provindo lá de dentro. É como se alguém houvesse encontrado algo no fundo de seu coração que o cooptasse para o bem. Não é algo feito daquilo que o mundo chamaria de materiais resistentes; ou melhor, é algo feito de materiais cuja resistência reside naquela leveza alada com que eles nos tocam de leve e vão embora. É tudo aquilo dentro de nós que não passa de uma breve ternura e que ali se torna eterno; tudo aquilo não significa mais que um enternecimento momentâneo que de alguma estranha maneira se transforma em fortalecimento e repouso; é a palavra perdida e o discurso interrompido que se tornam positivos e são suspensos intactos, à medida que os estranhos reis desaparecem num país distante e nas montanhas já não se ouvem os pés dos pastores; e permanecem apenas a noite e a caverna com pregas sobre pregas cobrindo algo mais humano que a humanidade.
Ilustração: Ícone da Natividade de Jesus, de Andrei Rublev. Catedral da Anunciação de Moscou, 1405 d.C.