De Annana, o Escriba. Egito, 1225 a.C.
Em 1852 Miss D’Orbiney, uma inglesa em viagem pela Itália, adquiriu um papiro carcomido e amarelado coberto de misteriosos caracteres. De retorno, submeteu-o à inspeção do superintendente da coleção egípcia de Paris, o Visconde de Rougé, que imediatamente reconheceu o valor da descoberta – apesar de todos os museus de Europa terem seus rolos de papiros, nenhum continha uma narrativa de tipo romanesco ou novelesco. Esta foi escrita para fins de recreação e formação, ad usum Delphini, no caso para o príncipe Seti Mernephtah, filho do Faraó Ramsés Miamum da 19a Dinastia, e pôde ser datada com alguma precisão por volta do ano 1225 a.C., de modo que por um certo tempo – até que alguns tabletes da Mesopotâmia começassem a vir à luz – ela ficou conhecida como “A mais velha história do mundo.” O fim do papiro – que hoje pode ser visto no Museu Britânico – traz sobre ela a seguinte nota: “Considerada bastante boa para ser associada com os nomes do escriba do Faraó, Kagabu, e do escriba Horu e do escriba Meremapu. Foi composta pelo escriba Annana, dono deste rolo. Que o Deus Thot livre da destruição todas a obra contidas aqui.”
I. Um adultério incestuoso
Era uma vez dois irmãos, filhos da mesma mãe e do mesmo pai. Anepu era o nome do mais velho, Batau o do mais novo. Anepu tinha casa e mulher; mas seu irmão menor vivia com ele como uma espécie de dependente, e fazia suas roupas e ia para o campo apascentar seu gado. Ele era aquele que cuidava do plantio e da colheita; fazia todos os tipos de trabalho nas lavouras. Realmente, seu irmão mais novo era um homem de valor. Não havia ninguém como ele em toda aquela terra. Sim, tinha a força de um deus.
Muito tempo passou, e certo dia o irmão mais novo estava pastoreando o gado como fazia todos os dias, e, como fazia todas as noites, ele voltou à casa, carregando todos os tipos de vegetais da lavoura, leite, lenha, e todas as coisas úteis dos campos, e ele entregou ao seu irmão mais velho, que estava sentado junto à sua mulher. E ele bebeu e comeu e saiu para se recolher em seu estábulo junto ao seu gado.
Quando veio a alvorada e um novo dia despontou, ele preparou a comida, a cozinhou, e serviu a seu irmão. E este lhe deu pão para os campos. E ele guiou seu gado para alimentá-los nos pastos. Ele avançava com os animais, e eles lhe diziam: “O pasto em tal e tal lugar é bom.” Ele entendia tudo o que diziam e levava-os ao lugar com boa erva como eles queriam. Assim, o gado de que cuidava foi ficando muito, muito bom. E de tempos em tempos dobrava sua prole.
Era tempo do plantio, e seu irmão mais velho lhe disse: “Prepare uma junta de bois para a lavra, pois [a época das inundações passou e] os campos ressurgiram, e nós teremos muito trabalho arando pela manhã.” Assim ele falou. Então o irmão mais novo fez todas as coisas que o irmão mais velho lhe pedira.
Veio a aurora, e um novo dia despontou, eles foram aos campos com suas sementes, e se entregaram a aragem, e seus corações estavam muito, muito felizes com o seu trabalho logo no início da lavra.
Alguns dias se passaram, eles estavam nos campos quando as sementes acabaram. Então o irmão mais velho disse ao mais novo: “Volte à nossa aldeia e traga mais sementes.” Ele foi e encontrou a mulher do seu irmão mais velho sentada penteando os cabelos. Ele disse a ela: “Levante-se e me dê algumas sementes, pois meu irmão me espera. Não demore!” Então ela disse: “Vá ao celeiro e pegue o quanto quiser. Não me faça sair com as tranças por fazer.” Então o garoto foi e apanhou um grande cesto, pois queria carregar muitas sementes. Ele o encheu de trigo e cevada e saiu.
Ao vê-lo a mulher lhe disse: “Quanto você está carregando nos ombros?” E ele respondeu: “Três sacas de trigo, duas sacas de cevada, cinco ao todo, é o que levo nos ombros”. Então ela disse: “Como você é forte! Todos os dias noto o seu vigor!” E ela queria conhecê-lo como uma mulher conhece um homem.
Então ele se ergueu e o abraçou e disse: “Venha, vamos nos deitar por uma hora juntos! Isso lhe fará bem, porque eu costurarei belas roupas pra você!” Então o rapaz se enfureceu como um leopardo com aquela sugestão indecente, e ela ficou apavoradíssima. E ele a confrontou, dizendo: “Ouça, você é como uma mãe para mim, e seu marido é com um pai para mim! Porque, sendo mais velho do que eu, ele me criou. Como você pôde me propor este crime? Nunca mais me diga isso! E eu não direi nada a ninguém, não deixarei escapar nenhuma palavra da minha boca pra nenhuma pessoa!” E ele então ergueu seu fardo, e foi aos campos. E chegando ao irmão, se entregaram de novo aos trabalhos.
Quando entardeceu, o irmão mais velho o deixou para retornar à casa. E o irmão mais novo foi apascentar seu gado, e se guarnecer com todo tipo de coisa dos campos, e começou a recolher o gado para que fosse dormir no seu estábulo na aldeia.
Mas a mulher do seu irmão mais velho estava com medo em razão da tentativa que fizera. Então, pegou um pouco de gordura e graxa para dissimular que fora surrada, planejando dizer ao seu marido: “Foi o seu irmão mais novo que me violentou!” E seu marido, como todos os dias, chegou em casa no fim de tarde, e encontrou a sua mulher deitada, terrivelmente combalida. Ela não levou água para lavar as suas mãos, e a casa estava na penumbra, e ela ficava ali vomitando. Então seu marido disse: “Quem esteve aqui com você?” E ela respondeu: “Ninguém esteve comigo exceto o seu irmão. Mas quando ele veio pegar as sementes ele me encontrou aqui sentada, sozinha, e me disse: ‘Venha, vamos passar uma hora deitados juntos! Enfeite-se!’ Ele me falou assim. Mas eu não queria ouvi-lo: ‘Acaso não sou sua mãe? Pois o seu irmão mais velho é como um pai para você!’ Eu disse isso a ele. Mas ele ficou com medo, e me espancou, para que eu não contasse nada a você. Agora, se você deixar que ela viva, eu me matarei! Por favor, quando ele chegar, não o deixe falar, porque, se eu o acusar desta proposta obscena, ele tentará me agredir de novo!”
O irmão mais velho se enfureceu como um leopardo, e afiou sua lança, e a empunhou firmemente. Então se escondeu atrás da porta do seu estábulo para matar seu irmão quando ele chegasse à noite para recolher o gado.
Quando o sol estava se pondo, ele se guarneceu com todas os vegetais do campo, como fazia todos os dias, e voltou. Quando a primeira vaca entrou no estábulo, ela disse ao seu pastor: “Seu irmão mais velho está aqui esperando por você, com uma lança nas mãos para matá-lo! Fuja!” Ele entendeu o que a primeira vaca disse. E a segunda entrou e disse a mesma coisa. Então ele olhou por baixo da porta do estábulo, e viu os pés de seu irmão mais velho, esperando para uma emboscada, de lança em punho. Imediatamente ele deitou por terra seu fardo, e começou a correr para escapar. E seu irmão mais velho disparou atrás dele com a lança.
Então o irmão mais novo invocou o Re-Har-akhti [o deus do sol], dizendo: “Ó meu bom senhor, és aquele que julga e separa os justos dos perversos!” O Re logo ouviu todas as suas súplicas, e o Re descarregou uma imensa torrente de água entre ele e seu irmão mais velho, e estava plena de crocodilos. Assim, um ficou de um lado e o outro do outro. E o irmão mais velho deu dois socos na mão por não conseguir matá-lo. Então o irmão mais novo o chamou do outro lado, dizendo: “Espere aqui até o amanhecer. Quando o disco do sol despontar, na sua presença eu e você seremos julgados, e ele revelará quem é o perverso e quem é o injusto. Pois eu nunca lhe fiz mal algum e nunca mais estarei com você – eu irei ao Vale do Cédro!”
Então veio a aurora e um novo dia despontou, o Re-Har-akhti se ergueu, e um viu o outro. E o irmão mais novo se dirigiu ao mais velho, dizendo: “Por que você veio me matar traiçoeiramente, sem sequer ouvir o que eu tinha a dizer? Eu ainda sou seu irmão mais novo, e você é como um pai para mim, e sua mulher é como uma mãe para mim! Não é assim? Quando você me mandou pegar mais sementes, sua mulher me disse: ‘Venha, vamos nos deitar por uma hora juntos!’ Mas essa estória chegou a você distorcida!” Então ele contou tudo o que acontecera entre ele e a mulher. E depois invocou o Re-Har-akhti, e disse: “Você quis me matar traiçoeiramente, me apontou sua lança pela palavra de uma puta imunda!” E tomou um facão, e decepou seu próprio membro, e o lançou na água e um peixe o engoliu. E ele desfaleceu e desabou. O coração de seu irmão mais velho estava muito, muito agoniado, e ele ficou lá se derramando em prantos, pois não podia cruzar o rio para acudir seu irmão mais novo por causa dos crocodilos.
E seu irmão mais novo lhe gritou: “Você está tramando um crime, quando devia haver só bem na sua alma. Mas eu vou lhe dizer o que você deve fazer. Vá para casa. Guarde o seu gado, porque eu não morarei mais com você; vou para o Vale dos Cedros. E quando você vier me procurar, deve fazer o que vou lhe dizer. Saiba que é preciso que eu me separe da minha alma e que eu a deponha na flor mais alta dos cedros. E quando o cedro for cortado, ela cairá no chão. Quando você vier buscá-la, ficará sete dias procurando a minha alma, e antes disso não a encontrará. Depois a colocará num vaso com água fria. Desta maneira voltarei à vida e responderei a todas as suas perguntas, para lhe ensinar o que deve fazer de mim… Arranje também uma garrafa com cevada fermentada, cubra-a com piche. Não perca tempo.”
Então ele partiu para o Vale dos Cedros, e seu irmão mais velho voltou para casa. Logo que chegou, matou a mulher, lançou seu cadáver aos cães, e sentou-se para chorar por seu irmão mais novo.
II. O primeiro renascimento, ou: Uma deusa vem à luz
Depois de muitos dias o irmão mais novo chegou ao Vale dos Cedros. Estava só. Ele passou o dia caçando os bichos daquela terra, e à noitinha voltou ao vale para repousar debaixo do cedro em cuja flor mais alta jazia a sua alma.
Passados muitos dias ele construiu para si uma cabana no Vale dos Cedros, e a preencheu com muitas boas coisas. Quando estava para sair da cabana, deu com os nove deuses, que tinham vindo satisfazer as necessidades de toda aquela terra. E os deuses falaram uns com os outros e lhe disseram: “Ó Batau, novilho dos deuses, porque estás tu assim sozinho, porque desertaste da tua terra? Foi por causa da mulher de Anepu, teu irmão mais velho? Saibas que aquela mulher está morta. Volta para casa de teu irmão; ele te explicará tudo.” E todos eles sentiram o coração apertado por causa da sorte do rapaz.
Então falou o deus solar Re-Har-akhti a Chnum: “Arranja uma mulher para Batau, para que ele não viva sozinho.” E Chnum fez uma mulher, e entregou a ele, e era a mais bela de todas as mulheres do mundo inteiro – era divina! E os sete [espíritos] vieram vê-la, e disseram numa só voz: “Ela terá uma morte violenta.” Ele a amou com todas as forças de sua alma, e a recolheu em sua casa. E ele passava os dias a caçar os animais daquela terra, e depois levava a sua caça aos seus pés. E ele dizia a ela: “O Mar há de vir e de levá-la. Eu não posso livrar você dele, porque a minha alma jaz no cimo das flores do cedro. Se alguém a encontrasse, eu teria de lutar por ela.” E ele lhe abriu todo o seu coração.
Passados muitos dias, Batau foi à caça, como fazia todos os dias. E sua mulher saiu para passear sob os cedros que estavam ao pé de sua casa, quando, de repente o Mar a viu. E cresceu para cima dela. Ela fugiu dele com toda a força e aos solavancos se meteu dentro de casa. Mas o Mar gritou ao Cedro: “Ah! como eu a amo!” Então o Cedro deu a ele um anel de cabelo da jovem esposa de Batau. E o Mar o levou para o Egito; e o guardou no lugar onde as lavadeiras da casa do Faraó enxaguavam as roupas. E a fragrância do anel de cabelo comunicou-se à roupa do Faraó. Então as lavadeiras do Faraó começaram a discutir, dizendo: “A roupa do Faraó está com o aroma do óleo de unção.” E todos os dias, por causa disso, as lavadeiras brigavam.
Elas não entendiam porque estava acontecendo isso. Mas o chefe das lavadeiras do Faraó veio até o Mar, porque estava enfastiado com todas aquelas brigas sobre a mesma coisa todos os dias. E foi para a praia, onde o anel de cabelo que boiava no mar. [Ao vê-lo,] se abaixou, e o apanhou. Notou que ele tinha um aroma delicadíssimo, e o levou ao Faraó. Imediatamente chamaram os sábios escribas do Faraó. E eles lhe disseram: “Este anel veio de uma filha do deus sol, e ela é divina. Toda a terra deve lhe prestar homenagem. Por isso, manda mensageiros a todas as terras para trazê-la, mas o mensageiro que for ao Vale dos Cedros deve ir acompanhado de muita gente, para que possa trazê-la.” E o Rei disse: “Tudo isso que dizeis é muito bom!” E eles partiram.
Passados muitos dias, os emissários que tinham ido às diferentes terras voltaram para trazer notícias ao Rei, mas não veio a delegação que tinha ido ao Vale dos Cedros, porque Batau os matara, deixando apenas um só, para contar ao Rei o que se passou. O Rei então enviou muita gente, muitos guerreiros a pé e a cavalo, para que a trouxessem.
Então eles levaram com eles a mulher. E ela levou todas as espécies de vestidos. E logo que chegaram à terra do Egito todos se regozijaram por causa dela. O Rei logo a amou apaixonadamente. E celebrou a sua maravilhosa beleza. E pediram a ela que contasse a história de seu marido. Então ela disse ao Rei: “Manda decepar o cedro para que ele morra.” Logo partiram homens com machados para decepar o cedro, e chegaram ao seu pé, e cortaram ao meio a flor na qual estava a alma de Batau. Ela caiu no chão e ele morreu imediatamente.
Quando veio a alvorada e um novo dia despontou, retalharam todo o cedro.
III. O derradeiro nascimento
Enquanto isso, Anepu, o irmão mais velho de Batau, estava em sua casa. Ele lavou as mãos e tomou um vaso com cevada fermentada, que tapou com piche, e um outro com vinho, que tapou com argila. E apanhou seu cajado, vestiu seus calçados, seu manto e seu bornal, e partiu para o Vale dos Cedros. E chegando à cabana de seu irmão mais novo, encontrou-o estirado sobre uma esteira. Estava morto. Ao ver isso, começou a chorar. Então saiu para procurar a alma de seu irmão mais no local onde estava o cedro sob o qual ele costumava se deitar ao cair da tarde.
Ele a buscou por três anos sem a encontrar. E quando chegou o quarto ano, a sua alma suspirou por retornar ao Egito, e disse: “Partirei amanhã de manhãzinha.” Essa era a sua intenção.
Quando veio a alvorada e um novo dia despontou, ele foi ao cedro, e ainda passou mais um dia inteiro à procura da alma. Ao voltar para casa, no anoitecer, relançou os olhos à sua volta pela última vez para ver se a encontrava. Notou um fruto, [o colheu,] e enquanto voltava com ele para a cabana, percebeu que ali estava a alma de seu irmão mais novo. Então tomou o vaso com água fria, pôs [o fruto] lá dentro, e se sentou, como fazia todos os dias. Logo que anoiteceu a alma absorveu a água, e Batau começou a se mexer com todos os seus membros, e abriu os olho para olhar para seu irmão. Mas o seu coração não tinha movimento. E Anepu, seu irmão mais velho, tomou o vaso de água fria, onde estava a alma do irmão, deu a ele de beber, e eis que a alma se inseriu em seu antigo lar. Então tudo voltou ao que era antes. Eles se abraçaram. E conversaram. E Batau disse a seu irmão mais velho: “Irmão, eu me transformarei num novilho sagrado com todos os sinais sagrados. Ninguém saberá o mistério. E você montará nas minhas costas. Logo que o sol nascer, iremos aonde está minha mulher. Diga-me se quer me levar até lá; porque naturalmente será recebido com muita celebração. E se me levar ao Faraó, receberá muita prata e muito ouro, porque eu serei muito valioso. E sobre mim choverão aclamações de alegria de toda a terra.”
Quando veio a alvorada e um novo dia despontou, Batau tomou a forma que tinha descrito a seu irmão. E Anepu, seu irmão mais velho, montou sobre as suas costas. Quando chegaram ao seu destino, informaram o Rei que, logo que o viu, ficou louco de alegria e ofereceu em sua honra uma grande festa, maior do que tudo o que se pode contar. E por causa dele correu uma alegria doida por toda a terra. E trouxeram prata e ouro a seu irmão mais velho, que habitava na sua aldeia, e deram-lhe muitos criados e muitas outras coisas, e o Faraó o estimou muito, mais do que a qualquer outro homem da terra.
Passados muitos dias o novilho foi para o santuário e ficou exatamente no lugar onde estava a sua bela mulher. Então ele disse a ela: “Olhe, olhe aqui, ainda estou vivo!” Ela disse: “Quem é você?” E ele respondeu: “Sou Batau; por Deus! foi você que me matou quando ensinou ao Faraó onde eu estava e lhe disse para deceparem o cedro. Olhe para mim: por Deus! Eu ainda estou vivo, só que estou sob a forma dum novilho.” Ao ouvir o marido a sua linda mulher se apavorou. Ela deixou o santuário, e foi se sentar ao lado do Rei. E foi muito bem tratada pelo Rei. Então ela lhe disse: “Jure-me, por Deus, que fará tudo o que eu lhe pedir.” Ele prometeu fazer tudo o que ela pedisse, e então ela acrescentou: “Quero comer o fígado desse novilho, porque você não precisa dele.” Assim ela falou. Ele ficou atônito com o seu pedido. A alma do Faraó sofria horrivelmente.
Quando veio a alvorada e um novo dia despontou, fizeram logo uma grande festa para oferecer sacrifícios ao novilho. Então um dos principais criados do rei recebeu ordens de matar o novilho. E aconteceu que quando estavam para matá-lo o povo estava ao seu redor. E logo que lhe deram uma pancada no pescoço caíram dois pingos de sangue no lugar onde estavam os umbrais do palácio do Rei; um caiu de um lado do portão do Faraó, e o outro do outro lado. E surgiram deles duas lindas magnólias. E cada uma delas enraizada independentemente da outra. Então foram dizer ao Rei: “Duas lindas magnólias, para a ventura do Rei, surgiram esta noite junto aos grandes portões do palácio real e há uma grande alegria por causa disso em toda a nossa terra.”
Passados muitos dias, o Rei se adornou com o seu colar de lapis-lazuli e pôs no pescoço uma bela grinalda de flores. E montou num carro dourado. Chegando ao palácio, reparou nas magnólias. E a linda mulher do Faraó seguia em outro carro logo atrás dele. Então o Rei se pôs debaixo de uma magnólias [e ela de outra]. Então uma voz falou à mulher: “Ah! pérfida! Eu sou Batau; eu ainda estou vivo, eu me transformei! Você ensinou ao Faraó onde eu estava, para que me matassem; eu era o novilho, e você me levou à morte.”
Passados alguns dias. A linda mulher estava nas boas graças do rei, e falou-lhe assim: “Jure-me que fará o que eu disser.” Então ele prometeu fazer tudo que ela quisesse. E ela disse: “Mande cortar as duas magnólias. Que belas tábuas não arrancarão delas!” Tudo o que ela pedia era feito, e passados alguns dias, o Rei mandou vir esplêndidos servos para cortar as magnólias. A bela rainha estava lá assistindo ao espetáculo. Então uma farpa saltou da madeira e veio se cravar nos lábios daquela maravihosa mulher.
Passado mais um tempo, eis que ela concebeu um filho e vieram felicitar o Rei. “Ganhas-te um filho!” Ele veio à luz, e deram-lhe uma ama, e mulheres para cuidarem dele; e foi grande a alegria por toda a terra. E ofereceram-lhe um festival, e lhe deram um nome. O Rei o amou desde logo com muito amor; e o designou como príncipe da Etiópia.
Passado muito e muito tempo, o Rei o fez Vice-rei de todo o país.
Passado mais muito e muito tempo, quanto ele já tinha sido Vice-rei por vários anos, o Rei morreu, e a alma do Faraó foi para o céu.
E o outro disse: “Vou convocar os mais poderosos e mais ilustres da corte real; quero lhes dar a conhecer toda a estória. O que aconteceu entre mim e a Rainha.” [Era Batau.] E trouxeram-lhe sua mulher, e ele disse diante deles o que ela era e eles pronunciaram a sua sentença. Depois trouxeram-lhe seu irmão mais velho, que ele elevou a Vice-rei de todos os seus domínios. Ele reinou por trinta anos como rei do Egito.
Quando acabou de viver esses trinta anos, seu irmão subiu ao trono, no mesmo dia do funeral.