Nômades, bárbaros, piratas – A “Ilíada” como ela é

Do Primeiro Livro da Guerra do Peloponeso de Tucídides. Atenas, séc. V a.C.

Tucídides, um ateniense, escreveu a história da guerra travada pelos espartanos e pelos atenienses uns contra os outros. Ele iniciou a tarefa logo no começo da guerra, na crença de que ela seria grande e célebre sobre todas as guerras anteriores, inferindo isto do fato de que ambos os poderes estavam então em sua plena potência, prontos para a batalha todos os dias, e vendo que o resto da raça helênica tomava partido de um ou outro Estado, alguns de imediato, enquanto outros o planejavam fazer. Pois esta foi a convulsão que mais agitou os helenos em todos os tempos, estendendo-se também a alguns dos bárbaros, e mesmo, se poderia dizer, para uma parte da humanidade. De fato, em relação aos acontecimentos da época imediatamente precedente e daquelas ainda mais antigos, era impossível conseguir informações claras devido ao lapso de tempo; mas, forçando as minhas investigações ao extremo, a partir de evidências que julgo confiáveis, creio que estas épocas não foram realmente grandes, tanto no que diz respeito à guerra quanto em relação a outros particulares.

Pois é claro que aquilo que hoje se chama Hellas [ou Grécia] não era antigamente uma terra com moradas fixas, mas que as migrações eram frequentes, com cada tribo deixando imediatamente a sua terra tão logo era forçada a fazê-lo por qualquer povo mais numeroso. Pois não havia tráfego mercantil, e os povos, fosse na terra ou no mar, não se misturavam uns aos outros sem medo, e cada um deles explorava a sua própria terra somente até o ponto de obterem a sua subsistência, não tendo qualquer excedente de riqueza ou plantações sofisticadas, uma vez que não sabiam ao certo, especialmente pelo fato de que não tinham muralhas, quando algum invasor viria e os despojaria. E assim, avaliando que podiam obter em qualquer parte a subsistência necessária para as suas necessidades diárias, era fácil para eles mudarem de lugar, e por essa razão não eram poderosos, nem em relação à magnitude de suas cidades, nem em relação aos recursos materiais de um modo geral.

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Nossa vulnerabilidade nos velhos tempos é além disso majoritariamente demonstrada, creio eu, pela seguinte circunstância: que antes da guerra de Troia, a Grécia, ao que parece, não se congregou em torno a nenhum empreendimento em comum. De fato, parece-me que como um todo ela sequer tinha o seu nome comum – Hellas –, e que antes do tempo de Heleno, filho de Deucalion, este título sequer existia, e que as várias tribos, em especial a pelasgiana, davam seus próprios nomes aos seus respectivos distritos; mas quando Heleno e seus filhos fizeram-se fortes em Phthiotis e foram instados a ajudar as outras cidades, os clãs doravante passaram cada vez mais, em razão deste intercurso, a serem chamados “helenos”, embora ainda fosse preciso decorrer um longo tempo até que o nome prevalecesse entre todos. A melhor evidência disso é dada por Homero; pois, ainda que a sua geração fosse muito posterior mesmo em relação à guerra de Troia, em nenhum lugar ele se vale deste nome para designar todas as tribos, ou de fato para designar a qualquer uma delas, exceto a dos seguidores de Aquiles de Phthiotis, que foram de fato os primeiros helenos, mas antes, em seus poemas, designa a todos com os nomes de “dânaos” ou “argivos” ou “aqueus”. E ele não estava tampouco familiarizado com o termo “bárbaros”, pela razão, creio eu, que os helenos de seu tempo ainda não haviam se apartado [dos outros povos] a ponto de adquirir um nome comum que os diferenciasse por contraste. Seja como for, aqueles que viriam a receber o nome de helenos, conjuntamente ou sucessivamente, cidade por cidade, fosse pelo fato de falarem todos a mesma língua, fosse por formarem mais tarde um corpo político, não se congregaram em nenhum empreendimento antes da guerra de Troia, em razão da fraqueza e da falta de comunicação uns com os outros. E mesmo para essa expedição eles só se uniram quando passaram a fazer um uso considerável do mar.

O rei Minos [de Creta] foi o primeiro de todos aqueles conhecidos pela tradição a erguer uma esquadra naval. Ele se fez o soberano de uma grande parte daquele que hoje chamamos Mar Helênico, e se tornou o senhor do arquipélago das Ciclades e o primeiro colonizador de muitas de suas ilhas, expulsando os cários e estabelecendo seus próprios filhos como governantes. A pirataria, também, ele naturalmente tentou erradicar dos mares, até onde pode, desejoso de que seus rendimentos chegassem mais prontamente.

É necessário explicar que nos tempos primitivos os helenos e os bárbaros, tanto da costa quanto das ilhas, foram tentados, à medida que a comunicação pelo mar se tornava mais comum, a se tornarem piratas sob o comando de seus homens mais poderosos, cujas motivações eram a sua própria cupidez e o suporte aos seus seguidores mais fracos. Eles se precipitavam contra as cidades desprotegidas por muralhas, meras conglomerações de vilarejos, e as saqueavam, fazendo dessa a sua principal fonte de renda. Pois nessa época esse tipo de ocupação ainda não era associado à desgraça, mas até mesmo lhe creditavam alguma glória. Uma ilustração disso é fornecida pela honra que alguns habitantes do continente ainda conferem a um saqueador, assim como pelas palavras dos poetas de antanho, que invariavelmente perguntavam a todos aqueles marujos que punham os pés na terra se eram piratas, do que podemos inferir que aqueles que eram interrogados jamais ignoraram tal ocupação, nem se ofendiam com aqueles preocupados em obter a resposta. A mesma rapina prevaleceu também por terra. E mesmo hoje, muitos helenos ainda seguem o velho costume, os locrianos de Ozólia, por exemplo, assim como os etolianos e os acarnanianos, e outros povos do continente. E o costume de portar armas ainda se mantém entre esses continentais como um resquício das velhas práticas de pirataria.

De fato, todos os helenos costumavam andar armados, já que suas moradas eram desprotegidas e a comunicação entre eles era precária; com efeito, portar armas no seu dia-a-dia era coisa tão corriqueira entre eles quanto entre os bárbaros. E o fato de que as pessoas nessas partes de Hellas ainda hoje vivam segundo os velhos costumes sugere um tempo em que essa maneira de viver era comum a todos. Os atenienses estiveram entre os primeiros a botar de lado suas armas e, adotando um estilo de vida menos periclitante, a mudar para costumes mais luxuosos. De fato, devido a esse gosto pelo requinte, foi só muito recentemente que os anciãos das classes mais abastadas deixaram de vestir túnicas de linho fino, e de trançar seus cabelos com broches de gafanhotos de ouro, uma moda que se disseminou entre seus parentes na Iônia e prevaleceu durante muito tempo entre os anciãos por lá. Por outro lado, um estilo modesto de vestimenta, mais em conformidade com as ideias contemporâneas, foi primeiro adotado pelos espartanos, sendo que os ricos fizeram o seu melhor para adaptar o seu estilo de vida ao do povo. Eles também foram os primeiros a lutarem nus, despindo-se publicamente e untando-se a si mesmos com óleo em seus exercícios ginásticos. Antigamente, mesmo nos jogos olímpicos, os atletas disputavam cingidos com um cinturão; e não faz muitos anos que esta prática acabou. Ainda hoje, entre alguns bárbaros, especialmente na Ásia, quando os prêmios pelo pugilismo e pela luta corpo a corpo são conferidos, é costume que os combatentes se vistam com cinturões. E há muitos outros pontos nos quais diversas semelhanças podem ser apontadas entre a vida do mundo helênico primitivo e a do mundo bárbaro de hoje.

Em relação às suas cidades, um pouco mais tarde, numa época de crescente facilidade de navegação e de um maior acúmulo de capital, vemos que o litoral se tornou um espaço repleto de cidades muralhadas, e os istmos foram ocupados em razão do comércio e da defesa contra os vizinhos. Mas as velhas cidades, em razão da pirataria generalizada, foram construídas longe do mar, tanto nas ilhas quanto no continente, e ainda permanecem em suas antigas localizações. Pois os piratas costumavam pilhar uns aos outros; de fato assaltavam todas as populações costeiras, fossem elas de marinheiros ou não.

Os povos das ilhas eram ainda mais assíduos na pirataria. Estes incluíam os cários bem como os fenícios, por quem a maior parte das ilhas foi colonizada, como se prova pelo seguinte fato. Durante a purificação de Delos pelos atenienses na guerra todas as sepulturas das ilhas foram exumadas e descobriu-se que mais da metade dos corpos era de cários: eles foram identificados pelas armas enterradas com eles, e pelo método do sepultamento, o mesmo que os cários ainda seguem. Mas tão logo o rei Minos formou sua esquadra naval, a comunicação pelo mar se tornou mais fácil, e ele colonizou a maior parte das ilhas, enxotando assim os criminosos. A população da costa começou então a se empenhar mais assiduamente na acumulação de riqueza, e sua vida tornou-se mais sedentária; algumas até começaram a construir para si muralhas com a força de seus recursos recém adquiridos. Pois, por amor ao ganho, os mais fracos serviram de bom grado aos mais fortes, e esses, com mais recursos, submeteram as cidades menores ao seu jugo. E foi só mais tarde, quando já há algum tempo haviam consolidado este estado de coisas, que eles partiram numa expedição contra Troia.

O que permitiu a Agamemnon erguer seu exército foi mais, na minha opinião, a sua superioridade de força do que os juramentos dos helenos ao rei Tindareus, que supostamente os obrigava a segui-lo. De fato, o relato dado pelos povos do Peloponeso que receberam a tradição mais segura é o seguinte. Primeiro de tudo o rei Pelops, aportando com um vasto montante junto a uma população empobrecida na Ásia, adquiriu um tal poder que, mesmo sendo ele um estrangeiro, acabaria por conferir àquele povo o seu nome; e este poder a Fortuna quis que prosperasse nas mãos de seus descendentes. Pois quando Euristeus partiu para a expedição que o levaria à morte pelos heráclidas na Ática, ele conferiu a Atreus, o irmão de sua mãe que deixara sua terra paterna em razão da morte de Crisipo, o governo de Micenas e de seus outros domínios. À medida que o tempo passou sem o retorno de Euristeus, Atreus aquiesceu aos anseios dos micenos que temiam os heráclidas – além do fato de que seu poder parecia considerável e de que ele não negligenciou o cortejo do favor popular – e assim se apoderou definitivamente do cetro de Micenas e dos demais domínios de Euristeus. E dessa forma o poder dos descendentes de Pelops veio a se tornar maior do que o dos descendentes de Perseus.

Tudo isso Agamemnon recebeu por herança. Ele também tinha uma esquadra naval muito mais poderosa do que a de seus contemporâneos, de modo que, na minha opinião, o temor foi um elemento tão forte quando o amor na formação da confederação. O poderio de sua esquadra é evidenciado pelo fato de que o seu contingente era o maior de todos, e o dos arcadianos foi fornecido por ele; ao menos é isto o que diz Homero, se podemos tomar seu testemunho por fidedigno. Além disso, em seu relato da transmissão do cetro, ele o chama “Rei de muitas ilhas e de toda Argos”Ora, o domínio de Agamemnon era originariamente continental; e ele não poderia ter sido o soberano de nenhuma ilha exceto as adjacentes (e estas não eram muitas), a não ser que possuísse uma frota.

E desta expedição podemos inferir o caráter das primeiras expedições. Pois bem, Micenas pode ter sido um lugar pequeno, e muitas das cidades daquela época podem parecer hoje relativamente insignificantes, mas nenhum observador acurado se sentiria justificado para rejeitar as estimativas dadas pelos poetas e pela tradição quanto à magnitude do exército. Pois eu suponho que se a terra da Lacedemônia se tornasse desolada, e os templos e as fundações dos edifícios públicos fossem abandonados, isso, com o passar dos anos, provocaria uma forte disposição na posteridade a se recusar a aceitar a sua fama como o verdadeiro expoente de seu poder. E, ainda assim, eles ocupam hoje duas quintas partes do Peloponeso e lideram o todo, sem falar dos seus inúmeros aliados em outras partes. Contudo, uma vez que a cidade [de Esparta] não é construída de forma compacta nem adornada com templos magníficos e edifícios públicos, mas composta por um conglomerado de vilarejos segundo a velha tradição de Hellas, haveria uma impressão de inadequação. Ao passo que se Atenas viesse a sofrer o mesmo infortúnio, suponho que qualquer conclusão inferida pelas aparências apresentadas aos olhos levaria a estimar o seu poder como duas vezes maior do que efetivamente é. Não temos, portanto, o direito de sermos céticos, nem de nos contentarmos com a mera inspeção de uma cidade no presente em prejuízo da avaliação de seu poder no passado; mas podemos concluir com segurança que o exército em questão superou tudo o que havia até então, por menor que fosse em relação aos contingentes de hoje, se também aqui podemos aceitar o testemunho dos poemas de Homero, segundo o qual, descontadas as exagerações às quais um poeta se sente licenciado, podemos ver que estavam longe de igualar os nossos.

Ele os representou como uma esquadra de duzentas naves; sendo a tripulação de um navio Beócio de cento e vinte homens, e a dos barcos de Filoctetes, cinquenta. A partir disso, creio eu, ele quis apresentar o contingente máximo e o mínimo: de todo modo, ele não especifica o montante de quaisquer outros navios em seu catálogo. Que todos os homens eram remadores, tanto quanto soldados, vemos pelo relato do navio de Filoctetes, no qual todos aqueles que estão nos remos são também arqueiros. Ora, é pouco provável que um excedente muito maior de recrutas, excetuados os reis e os oficiais de alta patente, tenha navegado com a expedição; especialmente porque tinham de cruzar o mar aberto com munições de guerra em navios que, além de tudo, não tinham um convés, mas eram equipados segundo o velho costume pirata. Assim, se computamos a média entre os navios maiores e os menores, o número daqueles que navegaram não parece muito grande, considerando que eles representavam toda a força conjugada de Hellas.

E isso se deveu não tanto a escassez de homens quanto de dinheiro. A dificuldade de subsistência fazia com que os invasores reduzissem os números dos exércitos a um ponto no qual eles pudessem viver nos campos durante a prossecução da guerra. Mesmo após a vitória que obtiveram na sua chegada – e uma vitória há de ter acontecido, do contrário as fortificações do acampamento naval jamais teriam sido erguidas –, não há indicação de que toda a sua força tenha sido empregada; ao contrário, eles parecem ter se voltado à agricultura na península e também à pirataria, por falta de suprimentos. Foi isso o que realmente permitiu aos troianos manter o campo por dez anos contra os invasores, uma vez que a dispersão destes fazia com que aqueles fossem sempre capazes de se igualar aos destacamentos helênicos deixados na frente de batalha. Se estes tivessem trazido consigo suprimentos em abundância, e tivessem perseverado na guerra sem se dispersar na pirataria e na agricultura, eles teriam batido facilmente os troianos no campo de batalha, uma vez que teriam um contingente suficiente com todas as divisões em serviço. Em resumo, se eles tivessem se concentrado no cerco, a captura de Troia lhes teria custado menos tempo e menos tribulações. Mas assim como a falta de dinheiro se revelou o ponto fraco das expedições primitivas, assim também nesta, ainda que seja mais célebre que suas antecessoras, os fatos mostram que ela foi em verdade muito inferior à fama que lhe foi consagrada através da influência dos poetas.