Das Pequenas Tragédias de Alexander Púchkin. Moscou, 1830 d.C.
Tradução de Rafael Frate
Cena I
Salieri
Todos dizem: não há justiça neste mundo,
Mas justiça não há também no céu. Para mim
Isso é tão claro quanto uma simples escala.
Desde meu nascimento tenho amor pela arte.
Ainda criança quando em nossa velha igreja
O órgão soava até a mais sublime altura,
Eu ouvia e ouvia sem cessar, e doces,
Livres lágrimas não podiam se conter.
Muito cedo eu deixei as brincadeiras bestas;
Depois, qualquer ciência que não fosse a música
Tornou-se insuportável. Altivo e teimoso
Eu recusei a tudo e me entreguei somente
À música. Difíceis meus primeiros passos.
Maçante minha primeira trilha. Mas venci
Afinal as agruras e estabeleci
O meu ofício como um pedestal à arte.
Tornei-me um artesão. Dotei estes meus dedos
Da mais obediente e direta fluência,
O ouvido de certeza e total confiança.
Eu dissecava a música feito um cadáver.
Acreditava na álgebra das harmonias.
Ali eu já ousava, versado nas ciências,
A me entregar ao gozo dos sonhos criadores.
Comecei a compor, mas em segredo, quieto,
Sem ter a audácia ainda de pensar na glória.
Não raro ao me sentar na silenciosa cela,
Por dois, três dias sem dormir ou comer nada
Além de enlevo e lágrimas de inspiração,
Queimava eu meu trabalho e assistia, frio,
Como o meu pensamento e os sons de mim nascidos
Ardendo dissipavam-se em tênue fumaça.
Mas o que estou dizendo? Quando o grande Glück
Surgiu e revelou a nós novos segredos,
Segredos tão profundos e tão cativantes,
Pois eu não larguei tudo o que antes conhecia
E não fui com alegria atrás trilhar seus passos,
Obediente, como alguém que errou o caminho
E é corrigido do outro lado por quem vem?
Com dedicado esforço e firme persistência,
Eu atingi, enfim, o ilimitado grau
Mais avançado da arte. Não tardou a glória
A me sorrir. Eu estava em plena consonância
Com os corações do público pelas minhas obras.
Eu estava tão feliz! Eu me deliciava
Com meu trabalho, sorte e glória. Mas também
Com o trabalho e o sucesso de meus bons amigos,
Companheiros queridos da divina arte.
Não! Nunca conheci um só sinal de inveja,
Nunca, jamais, nem quando Piccini roubou
A atenção do feroz público parisiense,
Nem mesmo quando ouvi pela primeira vez
As notas de abertura da linda Ifigênia.
Quem poderia dizer que o orgulhoso Salieri
Iria então tornar-se um sórdido invejoso,
Serpente pisoteada viva pelo povo,
Lambendo areia e pó, totalmente impotente?
Ninguém! E agora, eu mesmo admito, nada mais
Sou que um ser invejoso. Eu ardo em pura inveja,
Invejo como um louco. Ó céus onde está
A justiça do mundo quando um dom sagrado,
O dom do imortal gênio não é recompensa
Do verdadeiro amor, da abnegação,
Do trabalho, do empenho vindo da oração
Para iluminar a mente de um doido varrido
De um moleque vadio e sem juízo, ó Mozart…
Mozart
Ahá, você me viu, pois eu queria pegar
Você com uma surpresa que trouxe comigo.
Salieri
Você está aqui? Faz tempo?
Mozart
………………………………. Cheguei agorinha
Trouxe uma coisa que queria lhe mostrar,
Pois logo que passei em frente a uma taverna,
Ouvi um violino. Não, meu caro Salieri,
Coisa mais engraçada você nunca ouviu
Nessa sua vida: um velho cego na taverna
Arranhava Voi che Sapete: maravilha!
Ah, eu não aguentei, trouxe aqui o violinista
Para você se entreter com uma arte tão bela.
Entre, toque para nós uma qualquer do Mozart.
(toca)
Salieri
E você ri?
Mozart
…………….Salieri, meu querido amigo,
Como você não ri de uma cena assim?
Salieri
…………………………………………………..Não.
Não é engraçado quando um pintor de paredes
Abjeto profana a Virgem de Rafael.
Não é engraçado quando um bufo desprezível
Desonra com paródias o nome de Dante.
Fora velho!
Mozart
………………Espere um pouco, tome aqui
Beba à minha saúde. Bem, Salieri, agora
Você não está disposto. É melhor eu voltar
Em outra ocasião.
Salieri
………………………O que você me trouxe?
Mozart
Ah, só uma ninharia. Ultimamente à noite
Tenho sido afligido pela minha insônia
E me vieram à mente duas, três ideias.
Hoje as pus no papel. Queria de você
Sua opinião sincera, mas parece, agora
Você não tem vontade de me ouvir.
Salieri
………………………………………………….Ah, Mozart,
Mas quando é que eu não ia ter tal vontade? Sente-se
Sou todo ouvidos.
Mozart
………………………..Certo, imagine, vejamos…
Imagine que eu, um pouquinho mais jovem,
Apaixonado, mas não muito, só de leve,
Que estou com uma lindinha, ou um amigo, que
Seja você. Me sinto alegre. De repente
Uma visão de morte e treva ou algo assim.
Muito bem, ouça: (toca)
Salieri
……………………….E você vinha até mim
E pôde ainda parar em uma taverna só
Para ouvir um violinista cego, Santo Deus.
Você, Mozart, você não é digno de si.
Mozart
Que tal, ela está boa?
Salieri
……………………………..Que profundidade!
E que ousadia, que perfeita simetria!
Você, Mozart, é um deus sem ter ciência disso.
Mas eu sei, eu.
Mozart
……………………Ah, sério? Pode ser talvez.
Mas essa divindade agora está com fome.
Salieri
Escute, vamos almoçar então nós dois
Na taverna Leão Dourado.
Mozart
……………………………………Com prazer.
Fico contente. Só deixe eu passar em casa
Para avisar a mulher que hoje não vou ficar
Para o almoço. (sai)
Salieri
……………………Sim, estou no aguardo, não demore.
Não! Não posso me opor ao meu destino por
Mais tempo! Sei que fui escolhido para detê-lo
Caso contrário todos nós vamos morrer,
Todos nós, sacerdotes, serviçais, da música
E não apenas eu com essa glória surda.
De que adianta Mozart continuar vivendo
E ainda a alturas novas ousar alcançar?
Acaso alçará ele com isso a Arte? Não.
Ela outra vez cairá tão logo ele sumir,
E ele não deixará para nós nenhum herdeiro.
De que adianta tudo isso? Como um querubim
Ele nos trouxe algumas músicas do céu,
Para despertar em nós, rebentos da poeira,
Um desejo sem asas e depois partir.
Voe embora então! Quanto mais cedo melhor.
Aqui trago veneno. O último presente
De minha Isora. Faz dezoito anos que
Trago-o comigo e muitas vezes pareceu-me
A vida uma ferida insuportável. Muitas
Vezes sentei com um inimigo distraído
Mas nunca dei ouvidos a nenhum sussurro
Da tentação, ainda que eu não tenha medo,
Ainda que eu retenha profundos rancores,
Ainda que eu pouco ame a vida. Posterguei.
Quando a sede da morte vinha me assolar,
‘por que morrer’, pensava eu, ‘talvez a vida
Me presenteie com algum dom inesperado,
Talvez a mim visite um arrebatamento
E uma noite operosa em plena inspiração.
Talvez um novo Haydn venha criar novas
Maravilhas em que eu encontrarei deleite.’
Quando eu banqueteava com alguém que odiava,
Talvez, pensava eu, encontre um inimigo
Ainda pior, talvez ofensa ainda mais
Perniciosa caia sobre mim dos céus.
Desse modo não gaste o presente de Isora’.
Pois eu estava certo. Finalmente achei
Meu inimigo, e o novo Haydn me tomou
Agora totalmente de um divino enlevo.
Chegou a hora! Dom profético do amor,
Verta-se hoje no cálice das amizades!
Cena II
Salieri
Você parece estar abatido.
Mozart
…………………………………Eu? Não…
Salieri
Você está certo, Mozart, de que não tem nada?
O almoço muito bom, o vinho glorioso,
E você taciturno e carrancudo.
Mozart
…………………………………………..Bem,
É que meu Réquiem tem me perturbado.
Salieri
………………………………………………………..Ah,
Você está então compondo um Réquiem. Já faz tempo?
Mozart
Faz umas três semanas, mas um fato estranho…
Eu não lhe disse, não é?
Salieri
Não.
Mozart
Escute isso então.
Três semanas atrás cheguei bem tarde em casa
E me disseram que lá havia procurado
Por mim uma pessoa. Por que não sei, mas pela
Noite inteira pensei, quem poderia ser?
O que queria de mim? No dia seguinte o mesmo
Veio e mais uma vez não me encontrou em casa.
No terceiro dia eu brincava com meu filho
No andar de cima quando me chamaram. Fui
À porta e vi um homem inteiro de preto,
Que se curvando com decoro encomendou
Um Réquiem e sumiu. Na mesma hora sentei
E pus-me a escrever. E desde então não veio
Mais meu homem de preto. E eu fiquei feliz.
Seria mesmo uma pena me separar desse
Trabalho, uma vez que eu já quase o terminei,
Meu Réquiem, mas enquanto isso eu…
Salieri
O que foi?
Mozart
Eu fico envergonhado em dizer isso.
Salieri
O quê?
Mozart
Que dia e noite não me dá sossego o meu
Homem de preto, atrás de mim a todo canto,
Como uma sombra me persegue e, mesmo agora,
Parece que ele é um terceiro aqui conosco.
Salieri
Mas que bobagem, que medo infantil é esse?
Areje os pensamentos vazios. Beaumarchais
Sempre dizia: ‘escute, meu irmão Salieri,
Sempre que os pensamentos negros o atacarem
Estoure uma garrafa do melhor champanhe,
Ou comece a tocar logo as Bodas de Fígaro.
Mozart
É mesmo, Beaumarchais, era seu camarada.
Você até compôs para ele Tararê.
Mas que coisa mais linda, ali tem um motivo
Que eu sempre cantarolo quando estou feliz.
Lá lá lá lá. Ah, é verdade, Salieri,
Que uma vez Beaumarchais envenenou alguém?
Salieri
Duvido. O homem era jovial demais
Para tal ofício.
Mozart
Tem razão, ele era um gênio
Como você, e eu. E gênio com maldade
São duas coisas que não se misturam, certo?
Salieri
Você acha? (joga o veneno) Então beba.
Mozart
………………………………………À sua saúde,
Meu amigo querido, à franca relação
Que existe entre nós dois, Mozart e Salieri,
Os mais devotos filhos da harmonia. (bebe)
Salieri
………………………………………………….Espere,
Espere, espere não! Você bebeu sem mim?
Mozart
Fiquei bem satisfeito. (vai ao piano) Ouça, Salieri,
Eis o meu Réquiem. (toca) Você está chorando?
Salieri
…………………………………………………………Estas
Lágrimas… é a primeira vez que eu as derramo,
E, doce e doloroso, é como se eu cumprisse
Um fardo, como a faca me amputando um membro
Que já não vive, amigo Mozart, estas lágrimas…
Não dê atenção a elas. Continue, apresse-se
A preencher ainda com seus sons minha alma.
Mozart
Ah, se todos sentissem assim o poder
Da harmonia, mas não, assim não poderia
Nem existir o mundo; ninguém mais iria
Se preocupar com as coisas baixas dessa vida.
Todos se entregariam à mais livre arte.
Nós poucos escolhidos, felizes vadios,
Nós desprezamos todos interesses sórdidos,
Sacerdotes de apenas uma maravilha.
Não é verdade? Mas agora não me sinto
Bem, sinto algo pesado. Vou dormir um pouco.
Adeus. (sai)
Salieri
……………………Até mais tarde. Você dormirá
Por muito tempo, Mozart. Mas e se ele está
Certo e eu não sou um gênio? Gênio com maldade
São duas coisas que não se misturam. Não.
E Bounarotti? Ou isso é apenas uma lenda
Do povo sem juízo e estulto e não foi
Um assassino quem criou o Vaticano?
Finis.
Ilustração: Detalhe do Jardim das Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch.