Dos momentos finais de O Aleph, conto de Jorge Luis Borges publicado na revista Sur. Buenos Ayres, 1945 d.C.
Ao visitar todos os anos a família da falecida Beatriz Elena Viterbo, uma paixão de juventude, Borges conhece seu primo, Carlos Argentino Daneri, um poetastro presunçoso que nutre a ambição de compor um épico que descreverá cada lugar do mundo com minúcias excruciantes. Passado um tempo, o excêntrico Carlos convida Borges a revisitar o velho casarão da família, agora prestes a ser desapropriado para que a confeitaria vizinha amplie seus negócios. Agitadíssimo ante perspectiva da demolição, Daneri confidencia seu segredo: quando criança ele descobriu no porão um Aleph, “um dos pontos do espaço que contém todos os pontos”, e ele o está usando para escrever seu poema. Mesmo convencido de estar lidando com um lunático, Borges aquiesce ao seus rituais, toma uma dose de conhaque vagabundo e deixa-se conduzir pelo poeta, que lhe promete: “Desce; muito em breve poderás entabular um diálogo com todas as imagens de Beatriz.”
Cumpri com seus ridículos requisitos; no fim se foi. Fechou cautelosamente a armadilha; a escuridão, em que pese uma fenda que depois distingui, pareceu-me total. Subitamente compreendi meu perigo: deixara-me soterrar por um louco, depois de tomar um veneno. As bravatas de Carlos deixavam transparecer o íntimo terror de que eu não visse o prodígio; Carlos, para defender seu delírio, para não saber que estava louco, tinha de me matar. Senti um confuso mal-estar, que tratei de atribuir a rigidez, e não à ação de um narcótico. Fechei os olhos, os abri. Então eu vi o Aleph.
Chego, agora, ao inefável centro do meu relato; começa, aqui, meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartilham; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal abarca? Os místicos, em transe análogo, prodigalizam emblemas: para significar a divindade, um persa fala de um pássaro que de algum modo é todos os pássaros; Alanus de Insulis, de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel, de um anjo de quatro caras que a um só tempo se dirige ao oriente e ao ocidente, ao norte e ao sul. (Não em vão rememoro essas inconcebíveis analogias; alguma relação têm com o Aleph.) Quiçá os deuses não me negariam a descoberta de uma imagem equivalente, porém este relato ficaria contaminado de literatura, de falsidade. Quanto ao resto, o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos deleitáveis ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocuparam o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que viram meus olhos foi simultâneo: o que transcreverei, sucessivo, porque a linguagem é assim. Algo, no entanto, recolherei.
Na parte inferior da escada, à direita, vi uma pequena esfera cintilante, de um fulgor quase intolerável. No início achei que era giratória; logo compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, porém o espaço cósmico estava lá, sem dissimulação de tamanho. Cada coisa (a superfície do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu claramente a via de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a alvorada e a tarde, vi as multidões da América, vi uma teia de aranha prateada no centro de uma pirâmide negra, vi um labirinto quebrado (era Londres), vi intermináveis olhos imediatos escrutando-se em mim como em um espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi em um quintal da rua Soler os mesmos ladrilhos que há trinta anos vi num saguão de uma casa em Fray Bentos, vi ramos, neve, tabaco, adornos de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness a uma mulher que não esquecerei, via a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca em uma vereda, onde antes houve uma árvore, vi uma quinta de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi a um tempo cada letra de cada página (quando pequeno, costumava me maravilhar de que as letras de um volume fechado não se mesclassem e se perdessem no decurso da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi um dormitório sem ninguém, vi em um gabinete de Alkmaar um globo terráqueo entre dois espelhos que o multiplicam sem fim, cavalos de crina encaracolada, em uma praia do Mar Cáspio na alvorada, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha, enviando cartões postais, vi em um mostruário de Mirzapur um convés espanhol, vi as sombras oblíquas de umas samambaias no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, marejadas e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi num baú de escritório (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, incríveis, precisas, que Beatriz havia dirigido a Carlos Argentino, vi um adorado monumento na Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo, vi a circulação de meu sangue escuro, vi o Aleph, desde todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi mil caras e mil vísceras, vi a tua cara, e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjectural, cujo nome os homens usurpam, porém que nenhum homem jamais olhou: o inconcebível universo.
Senti infinita veneração, infinita lástima.