As Ideologias do Mal – Memórias de um polaco na cátedra de Pedro

De Memória e Identidade. Papa São João Paulo II, 1993 d.C.

Excertos cedidos pela Editora Objetiva.

Em 1993 o Papa João Paulo II (nascido Karol Józef Wojtyła), com 73 anos de vida e 15 de pontificado, recebeu no Palácio Apostólico de Castel Gandolfo dois filósofos poloneses, os professores Józef Tischner e Krysztof Michalski, para um colóquio voltado à análise filosófica e histórica das duas ditaduras que marcaram o século XX: o nazismo e o comunismo. As conversas então gravadas foram transcritas e depois aditadas pelo próprio Papa.   

Ideologias do Mal

 Capítulo 2. Da seção “O limite imposto ao mal”.

Qual foi a origem [daquilo que Vossa Santidade chama] ideologias do mal? Quais são as raízes do nazismo e do comunismo? Como se chegou à sua queda?

As questões postas possuem um significado filosófico e teológico profundo. É preciso reconstruir a “filosofia do mal” na sua dimensão europeia (e não só!); e uma tal reconstrução leva-nos para além das ideologias, impelindo-nos a adentrar no mundo da fé para analisar o mistério de Deus e da criação, particularmente o mistério do homem. Tais são os mistérios que procurei expor, nos primeiros anos do meu ministério como Sucessor de Pedro, com as encíclicas Redemptor Hominis, Dives in Misericordia e Dominum et Vivificantem — um tríptico que reflete o mistério trinitário de Deus. Tudo o que está contido na encíclica Redemptor Hominis tinha-o trazido comigo da Polônia; de igual modo posso dizer que as reflexões incluídas na Dives in Misericordia são fruto da minha experiência pastoral na Polônia, de modo particular em Cracóvia. Na verdade, é nessa cidade que se encontra o túmulo de Santa Faustina Kowalska, à qual Cristo concedeu ser uma iluminada intérprete dessa verdade da Divina Misericórdia; verdade esta que suscitou nela uma vida mística extraordinariamente rica. Não obstante ela fosse pessoa simples e sem instrução, todos os que se debruçam sobre o Diário das suas revelações ficam maravilhados com a profundidade da experiência mística que lá encontram.

Falo disto porque as revelações da Irmã Faustina Sobre o mistério da Divina Misericórdia deram-se no período que antecede a Segunda Guerra Mundial, o mesmo em que nasceram e se desenvolveram as ideologias do mal em questão: o nazismo e o comunismo. A Irmã Faustina torna-se uma pregoeira da única verdade capaz de contrabalançar o mal daquelas ideologias: a verdade de Cristo misericordioso, ou seja, que Deus é Misericórdia. Por isso, quando fui chamado à Sé de Pedro, senti urgente necessidade de transmitir as experiências que tinha vivido no meu país natal, mas que pertencem ao tesouro da Igreja universal.

Por sua vez, a encíclica Dominum et Vivificantem, sobre o Espírito Santo, teve a sua gestação em Roma; e, portanto, maturou um pouco mais tarde. Cresceu na meditação do Evangelho de São João sobre tudo o que Jesus dissera durante a Última Ceia: foi precisamente naquelas últimas horas da sua vida mortal que Ele nos deu a revelação talvez mais completa do Espírito Santo. Entre as palavras então pronunciadas por Jesus, encontra-se uma afirmação de grande significado para o nosso problema: o Espírito Santo “convencerá o mundo do pecado” (Jo 16, 8). Procurei aprofundar estas palavras e isso levou-me às primeiras páginas do livro do Gênesis, mais concretamente ao acontecimento denominado “pecado original”. Com extraordinária perspicácia, Santo Agostinho caracterizou a natureza deste pecado como sendo “amor sui usque ad contemptum Dei — amor de si mesmo até ao desprezo de Deus”, foi precisamente este amor sui que impeliu os nossos pais à primeira rebelião e, a seguir, provocou a progressiva extensão do pecado a toda a história do homem. A isto aludem as palavras do livro do Gênesis: “Sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal” (Gn 4, 5), isto é, serão vocês mesmos a decidir o que é bem e o que é mal.

Ora precisamente esta dimensão originária do pecado não podia encontrar o correlativo contrapeso senão o “amor Dei usque ad contemptum sui — amor de Deus até ao desprezo de si mesmo”. Entramos assim em contato com o mistério da redenção do homem, cuja abordagem só é possível tendo o Espírito Santo por guia. Na Verdade, é Ele que nos dá a capacidade de penetrar nas profundezas do mysterium Crucis e ao mesmo tempo de nos debruçarmos sobre o abismo do mal, cujo artífice e simultaneamente vítima resulta ser o homem, desde o princípio da sua história. A isto mesmo se refere a frase “convencer o mundo do pecado”, o objetivo de tal “convencimento” não é a condenação do mundo: se, em virtude do Espírito Santo, a Igreja chama o mal pelo nome, fá-lo apenas para indicar que há possibilidades de vencê-lo, abrindo-se às várias dimensões desse amor Dei usque tal contemptum sui, que é fruto precisamente da misericórdia. Em Jesus Cristo, Deus inclina-Se sobre o homem e estende-lhe a mão para levantá-lo, ajudando-o a retomar o caminho com nova força; o homem, sozinho, não é capaz de voltar a pôr-se de pé, precisa da ajuda do Espírito Santo. Se rejeitasse esta ajuda, cometeria um pecado de “blasfêmia contra o Espírito Santo” — assim denominado por Cristo, que o declarou também sem remissão (cf. Mt 12, 31). Irremissível por quê? Porque exclui no homem o próprio desejo do perdão; o homem rejeita o amor e a misericórdia de Deus, porque ele próprio se considera Deus, pensa que é capaz de bastar-se a si mesmo.

Fiz uma breve alusão às três encíclicas, porque me parecem ser uma apropriada interpretação de todo o magistério do Concílio Vaticano II e também das complexas situações deste momento histórico que nos foi concedido viver.

No decurso dos anos, foi-se formando em mim a convicção de que as ideologias do mal estão profundamente arraigadas na história do pensamento filosófico europeu. Vale a pena referir aqui alguns fatos relacionados com a história da Europa e, particularmente, com a cultura nela predominante. Quando foi publicada a encíclica sobre o Espírito Santo, alguns ambientes no Ocidente reagiram negativamente, e de forma bastante enérgica. De onde provinha tal reação? Das mesmas fontes, de onde, mais de duzentos anos antes, tinha brotado o chamado Iluminismo europeu — especialmente o Iluminismo francês, mas sem excluir o inglês, o alemão, o espanhol e o italiano; no caso da Polônia, o Iluminismo percorria uma estrada à parte. Quanto à Rússia, é diferente: parece que ela não experimentou o abalo iluminista; a crise da tradição cristã chegou lá por outro caminho, explodindo mais tarde, no início do século XX, e com uma violência ainda maior na revolução marxista, radicalmente ateia.

A fim de ilustrar melhor este fenômeno, é preciso remontar ao período anterior ao Iluminismo, sobretudo à evolução operada no pensamento filosófico por Descartes. Aquele seu “cogito, ergo sum – penso, logo existo” desencadeou uma reviravolta no modo de fazer filosofia: no período pré-cartesiano, a filosofia – e por conseguinte o cogito ou, melhor, o cognosco – estava subordinada ao esse [o ser], que era visto como primordial. Aos olhos de Descartes, por sua vez, o esse aparecia secundário, enquanto ele considerava primordial o cogito; deste modo realizava-se não só uma mudança de direção no filosofar, mas decididamente abandonava-se o que tinha sido até então a filosofia e, mais concretamente, a filosofia de Santo Tomás de Aquino: a filosofia do esse. Antes, tudo era interpretado na perspectiva do esse e procurava-se uma explicação de tudo dentro desta ótica: Deus, Ser plenamente auto-suficiente (Ens subsistens), era considerado o suporte indispensável para todo o ens non subsistens, ens participatum, isto é, para todos os seres criados e, por conseguinte, também para o homem. O cogito, ergo sum implicava uma ruptura com essa linha de pensamento: agora tornava-se primordial o ens cogitans; depois de Descartes, a filosofia torna-se uma ciência puramente de pensamento: tudo o que for esse — tanto o mundo criado como o Criador — permanece no campo do cogito como conteúdo do conhecimento humano. A filosofia ocupa-se dos seres enquanto conteúdos do conhecimento, e não como existentes fora dele.

Neste ponto, convém deter-nos um pouco sobre as tradições da filosofia polonesa, particularmente sobre o que aconteceu com a subida ao poder do partido comunista. Nas universidades, foi duramente dificultada toda a forma de pensamento filosófico que não correspondesse ao modelo marxista, por meio do sistema mais simples e radical: atuando contra as pessoas que representavam aquele modo de fazer filosofia. Muito significativo é o fato de que os primeiros a serem removidos das respectivas cátedras tenham sido os representantes da filosofia realista, incluindo expoentes da fenomenologia realista como Roman Ingarden e, da escola de Lviv-Varsóvia, Izydora Dambska. Menos fácil era a remoção dos expoentes do tomismo, uma vez que estes se encontravam na Universidade Católica de Lublin, nas Faculdades de Teologia de Varsóvia e Cracóvia e nos Seminários Maiores; mas, num segundo tempo, eles foram atingidos sem piedade pela mão do regime. Eram olhados com suspeita também aqueles pensadores de vulto que mantinham uma atitude crítica face ao materialismo dialético. Entre eles recordo em particular Tadeusz Kotarbinski, Maria Ossowska, Tadeusz Czechowski. Do ordo universitário não podiam obviamente ser retirados cursos como os de lógica e de metodologia das ciências; mas podiam ser obstaculizados de vários modos os professores “dissidentes”, limitando com qualquer meio a sua influência sobre a formação dos estudantes.

O que aconteceu na Polônia, depois da chegada dos marxistas ao poder, produziu frutos semelhantes aos que resultaram dos processos anteriormente já verificados na Europa Ocidental após o período iluminista. Falou-se, entre outras coisas, de “ocaso do realismo tomista”, entendendo com isso também o abandono do cristianismo como fonte do filosofar; no fim das contas, era posta em questão a própria possibilidade de alcançar Deus. Na lógica do cogito, ergo sum, Deus ficava reduzido a um conteúdo do conhecimento humano; deixava-se de poder considerá-Lo como Aquele que explica cabalmente o sum humano. Ele não podia, por conseguinte, continuar a ser visto como o Ens subsistens, o “Ser auto-Suficiente”, como o Criador, Aquele que dá a existência, nem sequer como Aquele que Se dá a Si mesmo no mistério da Encarnação, da Redenção e da Graça. O Deus da Revelação tinha deixado de existir enquanto “Deus dos filósofos”, ficou penas a ideia de Deus, como tema de livre elaboração do pensamento humano.

Desse modo desabaram também as bases da “filosofia do mal”. De fato, o mal, para o realismo, só pode existir com referência ao bem e, de modo particular, a Deus, Sumo Bem. É precisamente desse mal que fala o livro do Gênesis e, nesta perspectiva, podem-se compreender o pecado original e também cada pecado pessoal do homem. Mas esse mal foi redimido por meio da Cruz de Cristo; mais exatamente, foi redimido o homem que, por obra de Cristo, se tornou participante da vida de Deus. Tudo isto, o grande drama da história da salvação, tinha desaparecido na mentalidade iluminista. O homem ficou só: só como criador da sua própria história civilização; só como aquele que decide o que é bom e o que é mau, como aquele que existiria e agiria etsi Deus no daretur – ainda que Deus não existisse.

Ora, se o homem pode decidir sozinho, sem Deus, o que é bom e o que é mau, pode também dispor que um grupo de pessoas deva ser aniquilado; decisões deste gênero foram tomadas, por exemplo, no IIIo Reich por pessoas que, tendo chegado ao poder por meios democráticos, se serviram do mesmo para pôr em ação os perversos programas da ideologia nacional-socialista que se inspirava em pressupostos racistas. Análogas decisões foram tomadas pelo partido comunista na União Soviética e nos países sujeitos à ideologia marxista. Neste contexto, perpetrou-se o extermínio dos judeus e de outros grupos como as etnias ciganas, os agricultores na Ucrânia, o clero ortodoxo e católico na Rússia, na Bielo-rússia e para além dos Urais; de forma semelhante foram perseguidas todas as pessoas incômodas ao regime: por exemplo, os ex-combatentes de Setembro de 1939, os soldados do Exército Nacional da Polônia depois da Segunda Guerra Mundial, os expoentes da intelligentsia que não aceitavam a ideologia marxista ou nazista. Normalmente tratava-se de eliminações em sentido físico, mas às vezes também de eliminações em sentido moral: a pessoa ficava impedida mais ou menos drasticamente de exercer os seus direitos.

Aqui não se pode deixar de considerar uma questão que é hoje muito atual e dolorosa. Depois da queda dos regimes construídos sobre as ideologias do mal, nesses países cessaram efetivamente as formas de extermínio há pouco mencionadas. Resta ainda o extermínio legal de seres humanos concebidos e ainda não nascidos, trata-se de mais um caso de extermínio decidido por parlamentos eleitos democraticamente, apelando ao progresso civil das sociedades e da humanidade inteira. E não faltam outras formas graves de violação da lei de Deus; penso, por exemplo nas fortes pressões do Parlamento europeu para que uniões homossexuais sejam reconhecidas como uma forma alternativa de família, à qual competiria também o direito de adoção. É lícito e mesmo forçoso se perguntar se aqui não está atuando mais uma ideologia do mal, talvez mais astuciosa e encoberta, que tenta servir-se, contra o homem e contra a família, até dos direitos do homem.

Por que é que acontece tudo isto? Qual é a raiz de tais ideologias pós-iluministas? A resposta, em última análise, é simples: isto acontece porque se rejeitou Deus como Criador e, consequentemente, como fonte para a determinação do que é bem e do que é mal. Foi rejeitada noção daquilo que mais profundamente nos constitui seres humanos, ou seja, a noção de natureza humana como um “dado real”; e, em seu lugar, foi colocado um “produto do pensamento” livremente formado e livremente passível de mudança segundo as circunstâncias. Considero que uma reflexão mais atenta sobre tal questão nos levará a superar este interregno cartesiano; se quisermos falar sensatamente do bem e do mal, temos de voltar a Santo Tomás de Aquino, isto é, à filosofia do ser. Com o método fenomenológico, por exemplo, podem-se examinar experiências como as da moralidade, da religião ou mesmo do ser humano, daí recebendo um significativo enriquecimento do nosso conhecimento, mas não se pode esquecer que todas estas análises pressupõem a realidade do ser humano, isto é, de um ser criado, e também a realidade do Ser absoluto. Se não se parte de tais pressupostos “realistas”, acaba-se por andar em círculos.

 

A lição da história recente

Capítulo 9. Da seção “Liberdade e Responsabilidade”.

Vossa Santidade foi testemunha direta de um longo e difícil período histórico da Polônia e dos países do ex-bloco Oriental (1939-1989). A seu ver, que lição se pode tirar das experiências vividas no seu país natal e, em particular, daquilo que a Igreja da Polônia experimentou durante este período?

Os cinquenta anos de luta contra o totalitarismo formam um período com um significado providencial próprio: foi realmente nele que se exprimiu a necessidade social de autodefesa contra a sujeição de um povo inteiro. Tratou-se de autodefesa que não se moveu apenas numa perspectiva negativa: a sociedade não se limitou a rejeitar o nazismo, enquanto sistema que visava a destruição da Polônia, e o comunismo, como sistema opressor imposto pelo Leste; mas, na sua resistência, perseguiu também ideais de alto conteúdo positivo. Em outras palavras, não se tratou de uma simples rejeição daqueles sistemas hostis, mas houve também, naqueles anos, o restabelecimento e a confirmação daqueles valores fundamentais de que o povo vivia e aos quais desejava permanecer fiel. Refiro-me quer ao período relativamente breve da ocupação alemã, quer aos quarenta e tantos anos de dominação comunista durante a República Popular da Polônia.

Tal processo foi vivido de forma plenamente consciente, ou até certo ponto foi instintivo? Pode ser que em muitos casos tenha prevalecido um caráter instintivo: os poloneses, com a sua oposição, mais do que uma escolha baseada em motivações teóricas, exprimiam simplesmente o fato de que não podiam deixar de opor-se. Questão de instinto ou de intuição, tudo isso estimulou também uma tomada de consciência mais profunda dos valores religiosos e civis que estavam na base daquela rejeição, e o fez em uma medida tal que nunca tinha se verificado antes na história da Polônia.

Quero aqui aludir a uma conversa que tive, durante os meus estudos em Roma, com um dos meus colegas do colégio, um flamengo oriundo da Bélgica, que era um jovem sacerdote ligado à obra do Padre Joseph Cardijn, futuro cardeal – obra conhecida hoje pela sigla JOC, ou seja, Jeunesse Ouvrière Chrétienne [Juventude Operária Cristã]. O tema da nossa conversa era a situação que se criou na Europa no final da Segunda Guerra Mundial. Aquele meu colega exprimiu-se mais ou menos assim: “O Senhor permitiu que a experiência de um mal como o comunismo tenha tocado vocês… E permitiu-o por quê?”. A tal pergunta ele mesmo deu uma resposta que considero significativa: “Isso foi-nos poupado a nós, no Ocidente, talvez porque não teríamos sido capazes de suportar semelhante prova. Mas vocês irão consegui-lo.” Esta frase do jovem flamengo ficou presa na minha memória. Em certa medida possuía um valor profético; muitas vezes volto a pensar nisso, vendo cada vez mais claramente que aquelas palavras continham um diagnóstico.

Naturalmente, não se pode simplificar demasiado o problema, enfatizando uma visão dicotômica da Europa dividida entre Ocidente e Oriente. Os países da Europa Ocidental têm uma tradição cristã mais antiga; foi aqui que a cultura cristã alcançou o seu apogeu. São povos que enriqueceram a Igreja com grande número de Santos. Na Europa Ocidental floresceram estupendas obras de arte: as majestosas catedrais românicas e góticas, as basílicas barrocas, as pinturas de Giotto, de Fra Angelico, dos inumeráveis artistas dos séculos XV e XVI, as esculturas de Michelangelo, a cúpula de São Pedro e a Capela Sistina. Aqui viram a luz do dia as Sumas teológicas, entre as quais sobressai a de São Tomás de Aquino; aqui se formaram as mais altas tradições da espiritualidade cristã, as obras dos místicos e místicas dos países germânicos, os escritos de Santa Catarina de Sena na Itália, de Santa Teresa de Ávila e de São João da Cruz na Espanha. Aqui nasceram as grandes Ordens Monásticas, a começar pela de São Bento, o qual se pode certamente chamar pai e educador da Europa inteira, as beneméritas Ordens Mendicantes, entre as quais os Franciscanos e os Dominicanos, até às Congregações da Reforma Católica e dos séculos sucessivos que tanto bem fizeram e continuam a fazer na Igreja. A grande epopeia missionária colheu seus recursos primariamente do Ocidente europeu, e aqui surgem hoje magníficos e dinâmicos movimentos apostólicos, cujo testemunho não pode deixar de produzir frutos também na ordem temporal. Neste sentido, podemos dizer que Cristo tem sido sempre a “pedra angular” da construção e reconstrução das sociedades no Ocidente cristão.

Ao mesmo tempo, porém, não se pode ignorar como desponta insistentemente a recusa de Cristo: sempre mais manifestam de novo os sinais de uma civilização diferente daquela que tem Cristo como “pedra angular” — na civilização que, se não é ateia de modo programático, é certamente positivista e agnóstica, pois inspira-se no princípio de pensar e agir como se Deus não existisse. Uma tal tendência detecta-se facilmente na chamada mentalidade científica ou melhor, cientista contemporânea, bem como na literatura, e especialmente nos meios de comunicação social. Viver como se Deus não existisse que dizer viver fora das coordenadas do bem e do mal, isto é, fora daquele contexto de valores que tem Ele mesmo por fonte; pretende-se que, ao invés disso, o homem decida acerca do que é bom ou mau, sendo tal programa sugerido e divulgado em vários modos e de diversas partes.

Se, por um lado, o Ocidente continua a dar testemunho da ação do fermento evangélico, por outro aparecem, não menos fortes, as correntes da antievangelização, e esta atinge as próprias bases da moral humana, envolvendo a família e espalhando o permissivismo moral, os divórcios, o amor livre, o aborto, a contracepção, a luta contra a vida tanto na sua fase inicial como no ocaso, a sua manipulação. Este programa funciona com enormes meios financeiros, não apenas em nível nacional mas também na escala mundial; consegue realmente dispor de grandes centros de poder econômico, através dos quais tenta impor as suas próprias condições aos países em vias de desenvolvimento. Face a tudo isto, é legítimo questionar se não estamos perante uma nova forma de totalitarismo, dolosamente velado sob as aparências da democracia.

Ora, aquele meu colega flamengo poderia ter em mente tudo isto quando dizia que talvez nós, no Ocidente, “não teríamos sido capazes de suportar semelhante prova”. E acrescentava: “Mas vocês vão consegui-lo.” Significativamente aconteceu-me, quando já era Papa, ouvir a mesma opinião dos lábios de um eminente político europeu, que me disse: “Se o comunismo soviético se estender para o Ocidente, não seremos capazes de defender-nos. Não há uma força que nos tenha mobilizado para tal defesa…”. Sabemos que, no fim, o comunismo caiu devido à insuficiência socioeconômica do seu sistema; mas isto não quer dizer que tenha sido realmente rejeitado enquanto ideologia e filosofia: em certos ambientes do Ocidente, o seu ocaso é considerado ainda um dano, e lamenta-se o seu desaparecimento.

Que lição podemos então aprender daqueles anos dominados pelas “ideologias do mal” e pela luta contra elas? Penso que, antes de mais nada, devemos aprender a ir às raízes; só assim o mal causado pelo fascismo ou pelo comunismo poderá de algum modo enriquecer-nos, levando-nos ao bem, como requer sem dúvida o programa cristão: “Não te deixes vencer pelo mal; vence antes o mal com o bem” (Rm 12, 21) — escreve São Paulo. Nesta linha, nós — na Polônia — podemos obter resultados de grande relevo; e isso acontecerá se soubermos olhar para além da superfície, sem ceder à propaganda daquele Iluminismo contra o qual em certa medida já resistiram os poloneses no século XVIII, conseguindo desse modo realizar, no século XIX, o esforço necessário para mais tarde, após a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, recuperar a independência. A têmpera da população revelou-se depois na luta contra o comunismo, ao qual a Polônia soube resistir até à vitória de 1989. Trata-se agora de não desvirtuar aqueles sacrifícios.

No Congresso dos teólogos da Europa central e Oriental de Lublin, em 1991, procurou-se fazer um balanço da experiência obtida pelas Igrejas naquele tempo de luta contra o totalitarismo comunista e dar testemunho da mesma. A teologia que se desenvolveu naquela parte da Europa não é a teologia no sentido ocidental. E algo mais que teologia em sentido estrito: é testemunho de vida, testemunho do que significa sentir-se nas mãos de Deus, do que significa “aprender Cristo” que Se abandonou nas mãos do Pai até àquele “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” que Ele pronunciou na cruz (Lc 23, 46). Com efeito, “aprender Cristo” significa isto mesmo: penetrar a profundidade do mistério de Deus, que desse modo realiza a Redenção do mundo. Encontrei os participantes daquele congresso durante a peregrinação que fiz a Jasna Góra por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, tendo sucessivamente conhecido o conteúdo de muitas das suas intervenções: são documentos que, às vezes, nos deixam surpreendidos simultaneamente pela simplicidade e profundidade.

Ao falar destes problemas, porém, deparamos com uma séria dificuldade: nos seus diversos e complexos aspectos, vão frequentemente parar no âmbito do inexprimível. Mas em tudo isto se vislumbra de qualquer modo a ação de Deus, que se manifesta através da mediação humana nas boas ações dos homens, obviamente, mas também nos seus erros, dos quais Ele consegue tirar um bem maior. Todo o século XX esteve marcado por uma particular intervenção de Deus, que é Pai “rico em misericórdia — dives in misericordia” (Ef 2, 4).

 

Nação e cultura

 Capítulo 15. Da seção “Pensando a Pátria”. 

Como se deve entender a cultura? Quais são o seu significado e a sua origem? Como definir de modo mais concreto o papel da cultura na vida de uma nação?

As origens da história — como o crente sabe — têm de ser procuradas no livro do Gênesis; para as origens da cultura, também se deve remontar até àquelas páginas. Tudo se encerra nestas simples palavras: “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se em um ser vivo” (Gn 2, 7). Esta decisão do Criador reveste-se de uma dimensão particular enquanto, na criação dos outros seres, o Criador diz simplesmente: “Faça-se”, ao criar o homem — e só nesse caso — Ele como que entra em Si mesmo para uma espécie de consulta trinitária e depois é que decide: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (Gn 1, 26). O autor bíblico prossegue assim: “Deus criou o homem à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. Abençoando-os, Deus disse-lhes: Crescei e multiplicai-Vos, enchei e dominai a Terra” (Gn 1, 27-28). E, no sexto dia da criação, lemos ainda: “Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa” (Gn 1, 31). Encontramos essas palavras no capítulo primeiro do livro do Gênesis, normalmente atribuído à chamada “tradição sacerdotal.

No segundo capítulo, obra já do redator jahvista, a questão da criação do homem aparece tratada de forma mais ampla, mais descritiva e mais psicológica. Começa pela constatação da solidão do homem chamado à existência no meio do mundo visível: depois de ter passado em revista todos os seres vivos, atribuindo nomes apropriados aos seres que o rodeiam, o homem constata que, entre eles, não há nenhum que lhe seja semelhante; em conclusão, sente-se sozinho no mundo. A esta sensação de solidão, Deus remedia com a decisão de criar a mulher. Segundo o texto bíblico, o Criador faz descer sobre o homem um torpor profundo, durante o qual, a partir de uma costela que lhe tirou, forma Eva; ao despertar do sono, contempla, maravilhado, a nova criatura semelhante a si e exprime assim o seu entusiasmo: “Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne” (Gn 2, 23). E assim, no mundo, junto do ser humano masculino é colocado o ser humano feminino. Depois aparecem as conhecidas palavras que abrem uma perspectiva de vida a dois singularmente empenhativa: “Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne” (Gn 2, 24); esta união na carne os introduz na experiência misteriosa de serem pais.

O livro do Gênesis continua a narração, dizendo que os dois seres humanos, criados por Deus homem e mulher, viviam ambos nus sem disso sentirem vergonha; tal condição continuou até ao momento em que se deixaram seduzir pela serpente, símbolo do espírito maligno. Foi ela, a serpente, que os persuadiu a colherem o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, encorajando-os a transgredir uma proibição divina clara, com estas insinuantes palavras: “Não, não morrereis; mas Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal” (Gn 3, 45). Quando os dois — o homem e a mulher – procederam segundo a sugestão do espírito maligno, reconheceram que estavam nus e nasceu neles a vergonha do próprio corpo. Tinham perdido a inocência original. O terceiro capítulo do livro do Gênesis refere de modo muito eloquente as consequências do pecado original para a mulher, para o homem e para o seu relacionamento recíproco. Entretanto Deus prenuncia uma futura mulher, cuja prole esmagará a cabeça da serpente, isto é, pressagia a vinda do Redentor e a sua obra de salvação (cf. Gn 3, 15).

Com este esboço do estado original do homem diante dos olhos, vamos voltar ao primeiro capítulo do Gênesis, onde se refere que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e disse-lhes: “Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a Terra. Dominai sobre os peixes…” (Gn 1, 28). Estas palavras constituem a primeira, em absoluto, e a mais completa definição da cultura humana; de fato, submeter e dominar a Terra quer dizer descobrir e confirmar a verdade sobre o próprio ser do homem, sobre aquela humanidade que é compartilhada em medida igual pelo homem e pela mulher. A este homem, à sua humanidade, Deus confiou o mundo visível simultaneamente como dom e como tarefa. Atribuiu-lhe uma missão concreta: realizar a verdade que diz respeito a si mesmo e ao mundo; o homem deve deixar-se guiar pela verdade acerca de si próprio, para poder modelar segundo a verdade o mundo visível, utilizando-o corretamente para os seus fins, sem abusar. Em outras palavras, a dupla verdade sobre o mundo e sobre si mesmo é o fundamento de toda a intervenção do homem sobre a criação.

Esta missão do homem relativa ao mundo visível, tal como a apresenta o livro do Gênesis, teve a sua evolução ao longo da história, registrando nos tempos modernos uma extraordinária aceleração. Tudo começou com a invenção das máquinas; desde então, o homem transforma não só as matérias-primas que a natureza lhe fornece, mas também os produtos do seu próprio trabalho. Deste modo, o trabalho humano assumiu as características da produção industrial, cuja norma essencial continua sempre a mesma: o homem deve permanecer fiel à verdade acerca de si mesmo e do objeto do seu trabalho, tanto no caso de matérias-primas naturais como no caso de produtos artificiais.

Assim, as páginas iniciais do livro do Gênesis levam-nos ao próprio núcleo da realidade que se chama cultura, individuando o seu significado original e fundamental, a partir do qual é possível chegar, por passagens sucessivas, até àquilo que constitui a verdade da nossa civilização industrial. Ora, tanto naquela etapa original como hoje, a civilização está, e continua, ligada ao desenvolvimento do conhecimento da verdade no mundo, isto é, ao progresso da ciência: esta constitui a sua dimensão cognoscitiva. Seria necessária aqui uma análise profunda dos primeiros três capítulos do livro do Gênesis, a fonte original onde beber. Com efeito, é essencial para a cultura humana não só o conhecimento que o homem possui do mundo externo, mas também o que ele tem de si próprio; este conhecimento da verdade própria versa também sobre o ser humano duplo: “Ele os criou homem e mulher” (Gn 1, 27). O primeiro capítulo do livro do Gênesis completa esta elucidação referindo o mandamento de Deus relativo à geração humana: “Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a Terra” (Gn 1, 28); o segundo e terceiro capítulos oferecem novos elementos que ajudam a compreender melhor o desígnio de Deus: tudo o que aí se diz sobre a solidão do homem, a criação de um ser semelhante a ele, a maravilha original do homem à vista da mulher tirada da sua carne, a vocação para o matrimônio, e enfim toda a história da inocência dos primórdios — infelizmente perdida com o pecado original —, tudo isso proporciona já o quadro completo daquilo que é, para a cultura, o amor nascido do conhecimento. Esse amor é fonte de uma nova vida e, antes ainda, fonte de um enlevo criador que reclama ser traduzido na obra de arte.

Na cultura do homem, desde o início, está inscrito profundamente o elemento da beleza. A beleza do universo tal como se reflete nos olhos de Deus, quando se diz: “Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa” (Gn 1, 31); qualificada aqui como “muito boa” é, de modo particular, a aparição do primeiro casal humano, criado à imagem e semelhança de Deus, em toda a Sua inocência originária e naquela nudez que o caracterizava antes do pecado original. Tudo isto está precisamente nas bases da Cultura, que se exprime nas obras de arte, sejam elas obras de pintura, escultura, arquitetura, ou então obras musicais e composições da imaginação criadora e do pensamento.

Cada nação vive das obras da sua própria cultura. Por exemplo, nós, poloneses, vivemos de tudo isto, reconhecendo o seu início tanto no cântico Bogurodzica (Mãe de Deus) — o mais antigo poema polonês escrito — como na plurissecular melodia que o acompanha. Quando estive em Gniezno em 1979, durante a primeira peregrinação à Polônia, falei disto aos jovens reunidos na colina de Lech, porque, na cultura polonesa, este cântico aparece associado de modo particular com a tradição de Gniezno: é a tradição do padroeiro Santo Adalberto, à qual de fato é atribuída a composição; uma tradição com séculos de história. O canto Bogurodzica tornou-se o hino nacional, que ainda guiou, em Grunwald, os exércitos polonês e lituano na batalha contra a Ordem Teutônica. Existe, simultânea mas vinda de Cracóvia, outra tradição que está ligada ao culto de Santo Estanislau: a sua expressão é o hino latino Gaude, Mater Polonia — ainda hoje cantado em latim, como Bogurodzica é cantado em polonês antigo. Estas duas tradições entrecruzam-se; sabe-se que durante muito tempo o latim foi, junto com o polonês, a língua da cultura nacional: em latim escreviam-se os poemas, como por exemplo os de Janicius, ou então os tratados político-morais, como, entre outros, os de Andrzej Frycz Modrzewski ou de Orzechowski, e até a obra de Nicolau Copérnico De Revolutionibus Orbium Caelestium; paralelamente desenvolveu-se a literatura polonesa, a começar por Mikolaj Rey até Jan Kochanowski, cuja obra atingiu um nível europeu de singular relevo: ainda hoje é cantado o Saltério de David (Psafterz Dawidów) de Kochanowski, os seus Lamentos (Treny) pela morte da filha constituem um apogeu da lírica, e A Despedida dos Enviados Gregos (Odprawa Poslow Greckich) um drama magnífico que se inspira nos modelos antigos.

O que acabo de dizer recorda-me o discurso que pronunciei à UNESCO sobre a função da cultura na vida das nações. A força daquela intervenção estava no fato de não ser uma teoria sobre a cultura, mas um testemunho dado à cultura — o simples testemunho prestado por um homem que, na base da própria experiência, exprimia o que a cultura foi na história da sua nação e o que ela representa na história de cada nação. Qual é, por exemplo, a função da cultura na vida das jovens nações do continente africano? É necessário interrogar-se como pode esta riqueza comum do gênero humano, a riqueza de todas as culturas, crescer no tempo e como se deve respeitar a justa relação entre a economia e a cultura para não sacrificar este bem — que é maior e mais humano do que a primeira — em proveito da civilização do dinheiro, em proveito do superpoder de um economismo unilateral. Caso contrário, não teria grande importância que semelhante predomínio se impusesse sob a forma marxista-totalitária ou então sob a forma ocidental-liberal. No referido discurso, entre outras coisas disse: “O homem vive uma vida verdadeiramente humana graças à cultura. A cultura é um modo específico do existir e do ser do homem. . . . A cultura é aquilo pelo qual o homem enquanto homem se torna mais homem, ‘é’ mais. A nação é, com efeito, a grande comunidade dos homens que estão unidos por laços diversos, mas sobretudo precisamente pela cultura. A nação existe ‘pela’ cultura e ‘para’ a cultura; e ela é, por isso mesmo, a grande educadora dos homens, para que eles possam ‘ser mais’ na comunidade. A nação é esta comunidade, cuja história ultrapassa a do indivíduo e da família. . . . Sou filho de uma nação que viveu as maiores experiências da história, pelos seus vizinhos condenada à morte repetidamente, mas que sobreviveu e continuou a ser ela própria. Conservou a sua identidade e salvaguardou, apesar das divisões e das ocupações estrangeiras, a sua soberania nacional, sem se apoiar nos recursos da força física, mas unicamente na sua cultura. Esta cultura revelou-se, na ocasião, de uma potência maior que todas as outras forças. O que digo aqui a respeito do direito da nação ao fundamento da cultura para o seu futuro não é o eco de qualquer ‘nacionalismo’, mas espelha um elemento estável da experiência humana e das perspectivas humanistas do desenvolvimento do homem. Existe uma soberania fundamental da sociedade que se manifesta na cultura da nação. Trata-se da soberania pela qual, ao mesmo tempo, o homem é sumamente soberano.”

As palavras ditas naquela ocasião acerca do papel da cultura na vida da nação foram o testemunho que pude prestar ao espírito polonês. As minhas convicções a tal respeito tinham, entretanto, adquirido um horizonte uni versal: naquele dia 2 de junho de 1980, estava já no segundo ano de pontificado. Tinha efetuado algumas viagens apostólicas — à América Latina, à África e à Ásia —, durante as quais me dei conta de que, com a experiência que tinha da história da minha pátria e com a consciência que maturara acerca do valor da nação, não me sentia de modo algum estranho às pessoas que encontrava; pelo contrário, a experiência da minha pátria facilitava-me imensamente o encontro com os homens e com as nações de todos os continentes.

As palavras pronunciadas à UNESCO sobre o tema da identidade da nação afirmada através da cultura encontraram particular consenso por parte dos representantes dos países do Terceiro Mundo; por sua vez, alguns delegados da Europa Ocidental — assim me pareceu — mostraram-se mais reservados. Por quê? — seria possível perguntar. Uma das minhas primeiras viagens apostólicas foi ao Zaire, na África equatorial; é um país imenso onde se falam 250 línguas, sendo quatro delas principais, e onde vive um grande número de linhagens e de tribos; como é possível formar uma única nação a partir de pluralidade tão diversificada? E em situação idêntica se encontram quase todos os países da África. A etapa em que estes se encontram, sob o aspecto da formação da consciência nacional, poderia corresponder, na história da Polônia, aos tempos de Mieszko I ou de Boleslau o Valoroso, pois os nossos primeiros reis tiveram pela frente dificuldades semelhantes. Ora, a tese que expus à UNESCO sobre a formação da identidade da nação através da cultura ia ao encontro das necessidades mais vitais de todas as nações jovens, à procura de caminhos para a consolidação da própria soberania.

Bem diferente é o caso dos países da Europa Ocidental que se encontram hoje num estágio que poderíamos definir de “pós-identidade”; penso que um dos efeitos da Segunda Guerra Mundial foi precisamente a formação nos cidadãos de tal mentalidade, no contexto de uma Europa que estava se encaminhando para a unificação. São muitos, obviamente, os motivos que explicam a tendência para a unificação do Velho Continente; mas um deles é, sem dúvida, a progressiva superação de categorias exclusivamente nacionalistas na definição da própria identidade. A verdade é que, regra geral, as nações da Europa Ocidental não pensam que correm o risco de perder a própria identidade nacional: os franceses, por exemplo, não têm medo de deixar de ser franceses pelo fato de entrarem na União Europeia, e o mesmo acontece com os italianos, os espanhóis, etc. Os poloneses também não sentem medo disso, apesar da história da sua identidade nacional ser bastante mais complexa.

Com efeito, historicamente o espírito polonês teve uma evolução muito interessante; provavelmente mais nenhuma nacionalidade, na Europa, passou por um idêntico processo. Ao princípio, no período de amalgamação das tribos dos polanos, vislanos e outros, foi o espírito polonês dos Piast que serviu de elemento unificador: era — poderíamos dizer — o espírito polonês “puro”. Depois, durante cinco séculos, houve o espírito polonês da época jagiellônica que permitiu a formação de uma República que englobava muitas nações, muitas culturas, muitas religiões; todos os poloneses trazem dentro de si a noção desta diversidade religiosa e nacional. Eu pessoalmente provenho de Malapolska, do território dos antigos vislanos, ligado estreitamente a Cracóvia; mas, mesmo em Malapolska — e em Cracóvia talvez mais do que em qualquer outro lugar —, sentia-se a proximidade de Vílnius, de Lviv e do Oriente.

Um elemento etnográfico extremamente importante na Polônia foi a presença dos judeus; recordo que pelo menos um terço dos meus colegas na escola primária de Wadowice eram judeus; no liceu, o seu número era menor. Com alguns deles, travei laços de amizade; o que me chamava a atenção neles era o patriotismo polonês. Assim, no fundo, o espírito polonês é multiplicidade e pluralismo, não a restrição nem o isolamento, embora pareça que esta dimensão jagiellônica do espírito polonês que acabamos de recordar esteja infelizmente deixando de ser tão óbvia no nosso tempo.

A missão da Igreja

Capítulo 19. Da sessão “Pensando a Europa”.

No mês de outubro de 1978, Vossa Santidade deixou a Polônia, castigada pela guerra e pelo comunismo, e veio para Roma a fim de assumir a tarefa de sucessor de Pedro. As experiências polonesas levaram-no a adotar uma nova forma pós-conciliar de Igreja uma Igreja mais aberta aos problemas dos leigos e do mundo do que o era no passado. Santo Padre, quais são as tarefas da Igreja que considera mais importantes no mundo atual? Qual deveria ser a atitude dos homens de Igreja?

Hoje, a Igreja tem pela frente um campo enorme de trabalho, que requer o empenho de todos; mas, de forma particular, há necessidade do apostolado dos leigos, o apostolado de que fala o Concílio Vaticano II. É absolutamente indispensável uma profunda consciência missionária: a Igreja na Europa e em todos os continentes deve se conscientizar de que é, sempre e em toda a parte, missionária (in statu missionis); a missão pertence de tal modo à sua natureza que a Igreja jamais e em nenhum lugar — nem mesmo nos países de tradição cristã consolidada — pode deixar de ser missionária. O Papa Paulo VI, durante os quinze anos do seu pontificado, promoveu intensamente, com a ajuda do Sínodo dos Bispos, esta consciência renovada pelo Concílio Vaticano II; assim nasceu do seu coração, por exemplo, a exortação apostólica Evangelii Nuntiandi. Eu mesmo procurei, desde as primeiras semanas do meu serviço, continuar por esta mesma estrada, como dá testemunho o primeiro documento do pontificado, a encíclica Redemptor Homnis.

A Igreja deve ser incansável nesta missão recebida de Cristo; deve ser humilde e corajosa, como o próprio Cristo e os seus Apóstolos. Quando se vê contestada, quando é acusada de todas as formas e feitios — acusada, por exemplo, de recorrer ao chamado proselitismo ou à tentativa de clericalizar a vida social — não deve desanimar; sobretudo, não deve cessar de anunciar o Evangelho; ciente disto, São Paulo assim escrevia ao seu discípulo Timóteo: “Prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente, repreende, censura e exorta com bondade e doutrina” (2 Tm 4,2). De onde brota tal imperativo interior, cuja força está bem testemunhada nestas palavras de Paulo: “Ai de mim, se não evangelizar” (1 Cor 9, 16)? É claro! Nasce da consciência de que não há qualquer outro nome debaixo do céu no qual os homens possam ser salvos, além do nome de Cristo (cf. At 4, 12).

“Cristo, sim; a Igreja, não!”; protestam alguns contemporâneos. É um programa de vida, onde, não obstante seu caráter contestatário, poderia parecer que se manifestava uma certa abertura a Cristo, quando o Iluminismo a excluía; mas é uma abertura só aparente, porque Cristo, se é verdadeiramente aceito, traz consigo a Igreja, que é o seu Corpo místico: não há Cristo sem encarnação, não há Cristo sem Igreja. A encarnação do Filho de Deus em uma natureza humana tem, por vontade d’Ele, um prolongamento na comunidade de seres humanos que Ele constituiu, tendo-lhe garantido a sua constante presença: “Eu estarei sempre convosco, até o fim do mundo” (Mt 28, 20). E certo que a Igreja, enquanto instituição humana, tem necessidade de incessante purificação e renovação — isto mesmo o reconheceu com corajosa franqueza o Concílio Vaticano II —, mas a Igreja, enquanto Corpo de Cristo, é a condição normal da presença e da ação de Cristo no mundo.

Pode-se afirmar que as ideias aqui expostas exprimem, direta ou indiretamente, a linha inspiradora das iniciativas tomadas para celebrar o segundo milênio do nascimento de Cristo e dar início ao terceiro. Falei disso nas duas cartas apostólicas que dirigi à Igreja — e de certo modo a todos os homens de boa vontade — por ocasião de tal evento; quer na Tertio Millennio Adveniente quer na Novo Millennio Ineunte, pus em evidência como o Grande Jubileu era um fato que dizia respeito, numa medida que nunca antes se tinha verificado, a todo o gênero humano: Cristo pertence à história da humanidade inteira, e dá forma a esta história, animando-a no modo que Lhe é próprio, ou seja, à semelhança do fermento do Evangelho. Existe, desde toda a eternidade, um projeto de transformação divinizadora do homem e do mundo em Cristo; e essa transformação vai agindo progressivamente — também no nosso tempo.

A imagem da Igreja delineada pela constituição Lumen Gentium exigia de algum modo ser completada, como o intuiu com grande perspicácia o próprio João XXIII, que, nas últimas semanas antes de morrer, decidiu que o Concílio haveria de trabalhar sobre um documento consagrado especificamente à Igreja no mundo contemporâneo; esse trabalho revelou-se extremamente fecundo: a constituição Gaudium et Spes abriu a Igreja a tudo o que encerra o conceito “mundo”. Sabe-se que este termo, na Sagrada Escritura, tem um duplo significado: por exemplo, quando se fala do “espírito deste mundo” (cf. 1 Cor 2, 12), entende-se tudo aquilo que no mundo afasta o homem de Deus (hoje seria possível reagrupar o mesmo sob o conceito de secularização laicista); mas este significado negativo do mundo é compensado, na Bíblia Sagrada, por outro positivo: o mundo como obra de Deus, o mundo como o conjunto dos bens que o Criador deu ao homem, confiando-os a ele como tarefa que há de ser levada a termo com audácia clarividente e responsável. O mundo, que é como o teatro da história do gênero humano, apresenta as marcas dos esforços deste, das suas derrotas e vitórias. Contaminado pelo pecado do homem, foi, porém, redimido por Cristo crucificado e ressuscitado e anseia por chegar, graças nomeadamente ao empenho humano, à sua plena realização. Parafraseando uma conhecida frase de Santo Irineu. . . . seria possível dizer Gloria Dei mundus secundum amorem Dei ab homine excultus – Glória de Deus é o mundo aperfeiçoado pelo homem segundo o amor de Deus.

 

A democracia contemporânea

Capítulo 22. Da seção “Democracia: possibilidades e riscos.”

A Revolução Francesa espalhou pelo mundo. O lema “liberdade, igualdade, fraternidade”, como programa de uma democracia moderna. Qual é, Santo Padre, a sua avaliação do sistema democrático nesta versão ocidental atual?

As reflexões feitas até agora foram nos aproximando de uma questão que parece ser particularmente significativa para a civilização ocidental: a questão da democracia, entendida não apenas enquanto sistema político mas como atitude mental e de conduta. A democracia tem as suas raízes na tradição grega, embora, na antiga Hélade, não tivesse o mesmo significado que assumiu nos tempos modernos. É conhecida a clássica distinção entre as três formas possíveis de regime político: monarquia, aristocracia e democracia, oferecendo cada um destes sistemas uma resposta específica à pergunta sobre quem é o sujeito originário do poder. No sistema monárquico, tal sujeito é um indivíduo, seja ele rei, imperador ou príncipe soberano; no aristocrático, o sujeito é um grupo social, que exerce o poder devido a particulares títulos de mérito como, por exemplo, o valor em batalha, a linhagem, a riqueza; no sistema democrático, ao invés disso, sujeito do poder é a sociedade inteira, o “povo” — em grego, demos. É óbvio que, não sendo possível uma gestão direta por todos do poder, a forma democrática de governo utiliza a obra de representantes do povo, designados através de eleições livres.

Todas estas três formas de exercício do poder tiveram uma realização específica na história das diversas sociedades; e continuam a tê-la ainda hoje, embora a tendência atual se incline decididamente para o sistema democrático, visto como mais apropriado à natureza racional e social do homem e, no fim das contas, às exigências da justiça social. Realmente, se a sociedade se compõe de homens e cada homem é um ser social, é difícil não reconhecer que se deve atribuir a cada qual uma participação — ainda que indireta — no poder.

Observando a história polonesa, é possível ver a passagem gradual de um sistema político para outro e sua progressiva interpenetração. Se o Estado dos Piast teve caráter primariamente monárquico, desde os tempos dos jagiellônios a monarquia foi-se tornando cada vez mais constitucional e, quando a dinastia se extinguiu, o governo, embora continuasse monárquico, apoiou-se sobre uma oligarquia constituída pela classe nobiliária. Visto, porém, que a nobreza era relativamente numerosa, teve de se recorrer a uma forma de eleição democrática daqueles que deveriam representar os nobres; daí derivou uma espécie de democracia nobiliária. E assim conviveram durante vários séculos, no mesmo Estado, a monarquia constitucional e a democracia nobiliária; se, nas fases iniciais, isso constituiu a força do Estado polonês-lituano-ruteno, com o passar do tempo e a alteração das condições foram se revelando de modo crescente desequilíbrios e fragilidades de tal sistema, que acabaram por levar à perda da independência.

Quando voltou novamente a ser livre, a República Polonesa constituiu-se num Estado de regime democrático com um presidente e um parlamento composto por duas câmaras. Depois da queda da chamada República Popular da Polônia em 1989, a Terceira República regressou a um sistema análogo ao que vigorava antes da Segunda Guerra Mundial. Quanto ao período da Polônia Popular, ocorre notar que, apesar da designação de “democracia popular”, o poder estava efetivamente nas mãos do partido comunista (oligarquia de partido), e o primeiro secretário desse partido era simultaneamente o primeiro cargo político do país.

Este olhar retrospectivo sobre a história das várias formas de governo permite-nos compreender melhor também o valor ético-social dos pressupostos democráticos de um sistema. Enquanto nos sistemas monárquicos e oligárquicos (por exemplo, na democracia nobiliária polonesa), uma parte da sociedade — frequentemente a grande maioria — estava condenada a um papel passivo ou subordinado porque o poder encontrava-se nas mãos de uma minoria, o mesmo não deveria acontecer nos regimes democráticos. Mas será que não acontece? A pergunta justifica-se, face a certas situações que se verificam em democracias. Em todo o caso, a ética social católica apoia, por princípio, a solução democrática, porque mais condizente, como já destaquei, com a natureza racional e social do homem. Mas longe dela — é bom especificá-lo! – “canonizar” este sistema. A verdade é que cada uma das três soluções possíveis — a monarquia, a aristocracia e a democracia — pode, em determinadas condições, servir para a realização do objetivo essencial do poder, isto é, o bem comum. Entretanto, pressuposto indispensável de qualquer solução é o respeito das normas éticas fundamentais. Para Aristóteles, a política nada mais é que ética social; por isso, será fruto do exercício das virtudes cívicas que um determinado sistema de governo não se corrompa. Diversas formas de degeneração dos sistemas nomeados já foram classificadas na tradição grega: assim, em caso de degeneração da monarquia, fala-se de tirania; e, para as formas patológicas de democracia, Políbio cunhou o termo “oclocrazia”, isto é, domínio da gentalha.

Depois do ocaso das ideologias do século XX, especialmente do comunismo, várias nações depositaram as Suas esperanças na democracia. Mas, por isso mesmo, fazem bem perguntar-se: como deveria ser uma democracia. Muitas vezes, ouve-se repetir esta afirmação: com a democracia, realiza-se o verdadeiro Estado de direito. Neste sistema, de fato, a vida social é regulada pela lei estabelecida pelos parlamentos que exercem o poder legislativo; em tais assembleias elaboram-se as normas que definem o comportamento dos cidadãos nos diversos âmbitos da convivência: cada setor da vida, é óbvio, tem necessidade de uma legislação adequada que lhe assegure desenvolvimento regular. Um Estado de direito cumpre assim um postulado de toda a democracia: formar uma sociedade de cidadãos livres que procuram, juntos, o bem comum.

Dito isto, pode ser útil evocar, uma vez mais, a história de Israel. Já falei de Abraão como o homem que teve fé na promessa de Deus, acolheu com confiança a Sua palavra e assim se tornou o pai de numerosas nações; sob este ponto de vista, é significativo que tanto os filhos e filhas de Israel como os cristãos façam apelo a Abraão; e a ele fazem referência também os muçulmanos. É preciso especificar desde já, porém, que na base do Estado de Israel como sociedade organizada não está Abraão, mas Moisés que conduziu os seus concidadãos para fora da terra do Egito, tornando-se, durante a caminhada no deserto, autêntico construtor de um Estado de direito no sentido bíblico da palavra. Um dado que merece ser posto em evidência é este: Israel, enquanto povo eleito de Deus, era uma sociedade teocrática, da qual Moisés era não apenas o chefe carismático, mas também o profeta; a Sua tarefa era construir, em nome de Deus, as bases jurídico-religiosas da existência do povo. Ponto-chave nesta obra de Moisés foi o sucedido aos pés do monte Sinai: aí foi estipulado o pacto de aliança entre Deus e o povo de Israel com base na Lei que Deus dera a Moisés no cimo do monte. Essencialmente, essa Lei era constituída pelo Decálogo: as dez palavras, os dez princípios de comportamento, sem os quais nenhuma comunidade humana, nenhuma nação, nem a própria sociedade internacional se pode realizar. Os mandamentos, esculpidos sobre as duas tábuas que Moisés recebeu no Sinai, estão realmente impressos também no coração do homem; assim o ensina São Paulo na Carta aos Romanos: “O que a lei ordena está escrito nos seus corações, dando-lhes testemunho disso a consciência” (2, 15). A lei divina do Decálogo tem valor vinculante como lei natural também para os que não aceitam a Revelação: não matar, não cometer adultério, não furtar, não levantar falsos testemunhos, honrar pai e mãe… Cada uma destas palavras do código do Sinai toma a defesa de um bem fundamental da vida e da convivência humana; se se põe em dúvida tal lei, a convivência humana torna-se impossível e a própria existência moral do homem é posta em perigo. Moisés, que desce do monte trazendo as tábuas dos Mandamentos, não é o seu autor; mas sim o servidor e o porta-voz da Lei que Deus lhe deu no Sinai. Baseado nela, Moisés formulará depois um código de comportamento, muito detalhado, que entregará aos filhos e filhas de Israel e que forma o chamado Pentateuco.

Cristo confirmou os mandamentos do Decálogo como fundamento da moral cristã, indicando como síntese dos mesmos os preceitos do amor de Deus e do próximo. Além disso, é conhecido o caráter abrangente do termo “próximo” que Ele apresenta no Evangelho: o amor, a que está obrigado o cristão, abarca todos os homens, incluindo os inimigos. Quando eu estava escrevendo a obra Amor e Responsabilidade, o maior mandamento do Evangelho apareceu-me como uma norma personalista: exatamente porque o homem é um ser pessoal, não se pode cumprir tudo o que lhe é devido senão amando-o; tal como o amor é o supremo mandamento no referente a Deus Pessoa, assim também só pode ser o amor o dever fundamental para com a pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus.

Ora, precisamente este código moral vindo de Deus, Código sancionado na Antiga e na Nova Aliança, é também a base intocável de toda legislação humana em qualquer sistema e, em particular, no democrático. A lei estabelecida pelo homem, pelos parlamentos e por qualquer outra instância legisladora humana não pode estar em contradição com a lei natural, ou seja, no fim das contas, com a lei eterna de Deus. São Tomás dá esta noção, bem conhecida, de lei: “Lex est quaedam rationis ordinatio ad bonum commune, ab eo qui curam communitatis habet promulgata — a lei é um ordenamento da razão promulgado em favor do bem comum por aquele que tem o cuidado da comunidade.” Enquanto “ordenamento da razão”, a lei está baseada na verdade do ser: a verdade de Deus, a verdade do homem, a verdade da própria realidade criada no seu todo. Esta verdade é a base da lei natural; a esta, o legislador acrescenta o ato de promulgação. É o que acontece no Sinai para a Lei de Deus, e o que acontece nos parlamentos com as várias formas de intervenções legislativas.

Tocamos aqui uma questão de essencial importância para a história da Europa no século XX, porque foi um parlamento, regularmente eleito, que consentiu a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha dos anos 1930 e foi, depois, o mesmo Reichstag que, com a delegação de plenos poderes (Ermächtigungsgesetz) a Hitler, lhe abriu a estrada para a política de invasão da Europa, a organização dos campos de concentração e para a execução da chamada “solução final” da questão hebraica, isto é, a eliminação de milhões de filhos e filhas de Israel. Basta trazer à memória apenas estes fatos — bem perto de nós no tempo — para ver claramente que a lei estabelecida pelo homem tem limites concretos, que não pode ultrapassar os limites fixados pela lei natural, com que o próprio Deus tutela os bens fundamentais do homem. Os crimes hitlerianos tiveram a sua Nuremberg, onde os responsáveis foram sujeitos a julgamento e punidos pela justiça humana; mas há casos — e não são poucos — em que falta este último ato, embora reste sempre o supremo juízo do Legislador divino. Um profundo mistério, porém, envolve o modo como a Justiça e a Misericórdia se encontram em Deus ao julgar os homens e a história da humanidade.

Como já sublinhei, é precisamente nesta perspectiva que se devem pôr em questão, no início de um novo século e de um novo milênio, algumas opções legislativas decididas nos parlamentos dos atuais regimes democráticos; a referência mais imediata que tenho em mente são as leis sobre o aborto. Quando um parlamento autoriza a interrupção da gravidez, consentindo a supressão do nascituro, comete uma grave prepotência contra um ser humano inocente e, de mais a mais, privado de qualquer capacidade de autodefesa. Os parlamentos, que aprovam e promulgam semelhantes leis, devem estar cientes de terem extravasado as próprias competências, pondo-se em aberto conflito com a lei de Deus e com a lei natural.

 

Ilustração: Papa João Paulo II na Missa de Beatificação de Anton Martin Slomsek em Maribor, Slovenia. Gabriel Bouys, 1999.