Dos dizeres de Epiteto de Hierápolis, escravo de Epafrodito, favorito do Imperador Nero, coligidos postumamente por seu pupilo Arriano na obra Enchiridion. Roma, século II d.C.
Das coisas que existem no mundo, umas estão em nossa mão, e outras não. Em nossa mão está a opinião, a suspeita, o apetite, o aborrecimento, o desejo e numa palavra, todas as obras que são nossas. Não estão em nossa mão o corpo, os bens materiais, nem a honra, nem o senhorio, nem em efeito nenhuma das coisas que não são obra nossa.
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As coisas que estão em nossa mão de sua natureza são livres e senhoras, sem impedimento nem embaraço. E as que não estão em nossa mão, de si são fracas, servis, embaraçadas e submissas.
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E assim se para negócio tão grave como este te dispões, cuida que não deves começá-lo não estando para isso nem ainda medianamente aparelhado: senão que há mister deixar algumas coisas de todo, outras suspendê-las por agora. Porque se cuidas alcançar sossego de ânimo, e mandar e enriquecer-te juntamente, perderás isto por ir por último o primeiro, e ficarás de todo sem aquilo por cujo meio se alcança a felicidade e liberdade perfeita.
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Tira de ti o temor e aborrecimento das coisas que não estão em tua mão, e passa-o ao que contradiz ao bem, que está debaixo do nosso domínio; e ainda por agora deixa de todo o desejar; porque se te deixas afeiçoar a alguma coisa que não está em teu arbítrio, serás forçado receber desgosto nisso: e ainda que seja do que está nele, não tens ainda alcançado quanto, nem como deva se desejar. Só poderás desejar e fugir a estas coisas remissamente, e com um movimento do ânimo com pouca força.
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Quando quiseres fazer alguma coisa, põe bem diante dos olhos que coisa seja o que empreendes. Queres ir a banhar-te? cuida o que se faz no banho de ordinário: os que se molham, tiram uns aos outros do lugar, zombam, e furtam as roupas: e lembrado disto, começarás a obra sem perigo, com dizer: “O que eu aqui pretendo, é lavar-me e conservar-me no propósito que me cabe”: e o mesmo em qualquer outro negócio. E assim se algum embaraço sobrevier no lavar-te, estarás pronto a dizer: “Eu somente quis isto, manter-me no propósito que me cabe, conforme a natureza; o que não poderei fazer se me inquietar com o que aqui suceder.”
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Perturbam aos homens não as coisas, mas a opinião que delas tem; como a morte, na qual não há que temer; que se o houvera, também Socrates temeria; mas a opinião que da morte se tem a faz espantosa. Por tanto, quando somos impedidos de alcançar alguma coisa ou estorvados de nossos apetites, não culpemos ninguém senão a nós mesmos, das opiniões que temos. Porque é coisa de homem ignorante acusar outrem do trabalho próprio; coisa de quem já começa a progredir, acusar-se a si mesmo; coisa de quem já está avançado, nem a si, nem a outrem.
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De nenhuma excelência alheia te engrandeças. Se um cavalo, presando-se a si mesmo, dissesse: “Sou formoso”, seria coisa tolerável; mas tu, quando te ensoberbeces dizendo: “Tenho um cavalo formoso”, sabe que te honras por teu cavalo ser bom. Pois que é em efeito o que é teu? O uso das coisas que vês. Pelo que, quando delas usares como deves e como a natureza pede, então te gloria; porque então poderás te louvar com razão por algum bem teu.
Se queres aproveitar, lança de ti estes pensamentos: “Se não olho por meu patrimônio, não terei de que viver; se não castigo o servo, far-se-á velhaco”, porque mais vale morrer de fome, livre de temores e moléstias, que muito rico com o ânimo sempre perturbado. E menos mal é que seja o servo qual for, que seres tu infeliz.
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Se quiseres que tua mulher, ou filhos, ou amigos, sejam sempre prósperos ou vivam para sempre, és de pouco saber, pois pretendes que o que não está em tua mão, esteja nela, e seja teu o que é alheio. Assim também és ignorante, se queres que o servo não erre; porque isso é querer que o vicio não seja vicio, senão outra coisa. Portanto, se quiseres alcançar sempre o que pretendes, pretende o que podes.
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Se o corvo com o seu grasnar te denunciar algum mau agouro, não faças caso disso, nem te alteres; mas dize contigo mesmo: “Este a mim não me prognostica nenhuma coisa, senão ou ao corpo, ou ao patrimoniozinho, ou à honrinha, ou aos filhos, ou à mulher; para mim tudo será próspero se eu quiser; porque de qualquer coisa que suceda, posso eu tirar proveito, se quiser.”
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Nunca serás vencido em nada, se nunca entrares em contenda em que não esteja na tua mão o vencimento.
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Estes cuidados não te deem nenhuma pena: “Viverei sem honra: Não me terão em conta;” porque se a falta de honra é um mal, por nenhuma via virás mais depressa a ele, que pelos vícios. É o teu ofício porventura que tenhas grandes honras; ou que te convidem aos banquetes? Não, por certo. Donde está então a desonra, e o ser tido em pouco? Quem não sabe que só naquelas coisas que estão em tua mão, e nestas em tua mão está ser quão honrado quiseres? Dirás que sim; mas que, sendo honrado, não poderás aproveitar aos amigos. Como entendes isto? Que não lhes poderás dar dinheiro, nem fazê-los cidadãos romanos? E quem te disse a ti que isto é do que está em nossa mão, e não em poder alheio? Como pode um dar a outro o que não tem para si? Dizem eles: “Ganha-o tu, para que nós o tenhamos.” Se eu posso ganhar sem perder a vergonha, e a verdade, e a grandeza de ânimo, ensinai-me como, e ganhá-lo-ei; mas se vós quereis que perca eu meus bens próprios para vos adquirir os que não são verdadeiramente bens, atentai que sois injustos e temerários. Que quereis antes: dinheiro, ou um amigo modesto e sincero? A isto logo me ajudai, e não me peçais coisas, por onde eu perca aquelas. “Está bem isso”, dizem eles; mas não aproveitas nada à tua Pátria. Em que consiste o aproveitá-la? Não farás nela nenhuns edifícios públicos para o bem comum, pórticos ou banhos: E isto que é? Também não se consegue com o sapateiro armas, nem com o ferreiro sapatos; e não será pouco que cada um cumpra bem com seu oficio. Não te parece que seria muito proveito para a Pátria, se lhe desses um cidadão virtuoso e modesto? Sim, por certo. Pois assim não serás à tua Pátria inútil. “Que lugar terei então”, dirás, na República? Digo, que o que puderes alcançar sem perder a inteireza e vergonha. E se por esta via não aproveitares à tua Pátria, como lhe poderás aproveitar sem vergonha e sem verdade?
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Assim como o alvo não se põe para errar, senão para acertar; assim também na natureza não ha nenhuma coisa que de si seja má, ou feita para o mal. Se alguém te entregasse a um que acaso passasse pela rua, para que te tratasse mal à vontade, com razão te indignarias contra ele; pois não te envergonhas de entregar tua vontade e entendimento ao primeiro que se oferece, para que com uma má palavra, que te diz, te perturbes todo e te descomponhas? Portanto, quando empreenderes alguma coisa, olha bem o que precede e se segue; porque doutra maneira começarás com alegria, não olhando os inconvenientes que se podem seguir, e depois achando-te com eles, ficarás envergonhado e afrontado.
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De mulheres te guardarás quanto for possível, não sendo casado; e com quaisquer que trates, o faça legitimamente. Nem tão pouco sejas importuno repreendendo os que as frequentam; nem te jactes a cada passo de que não frequentas a elas.
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Se quiseres representar nesta vida alguma figura que exceda a tuas forças e capacidade, farás duas coisas; que isto que não podes, fá-lo-ás mal e indecentemente; e deixarás o que poderias fazer bem e com louvor.
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Como quando andas, vás com cuidado, não metas algum prego pelo pé, ou o desconcertes e torças; assim no discurso da vida cuida que a razão, governadora de tuas ações, não receba dano ou se descomponha. E se tivéssemos esta atenção no princípio, com mais consideração faríamos as coisas.
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As mulheres como chegam a quatorze anos, logo os homens as chamam senhoras. E elas vendo que não as querem para mais que para seus deleites, começam logo a ornar-se, a enfeitar-se, e nisto põem toda a sua esperança. Portanto convém muito que se trabalhe em que entendam que não as hão de honrar, nem estimar, senão quando forem honestas, e recatadas, e temperadas.
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Quando alguém te fizer mal ou o falar mal de ti, lembra-te que cuidava que fazia bem naquilo, e assim lhe pareceu; porque não pode ser que ele siga o teu entendimento, senão o seu.
E se ele julga mal tuas coisas, sua é a perda, pois vive enganado. Porque se um julga a verdade por mentira, não é por isso ofendida a verdade, senão o que não a conheceu. Com esta consideração suportarás com ânimo o que disser mal de ti, e a tudo dirás: “Assim lhe pareceu a ele.”
Tradução atualizada do Frei Antônio de Sousa para a série Biblioteca Internacional, Volume IV.