Lepanto

De Gilbert Keith Chesterton, publicado logo após a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em Londres, 1915 d.C.

Nas fontes brancas dos pátios do sol as águas
        escoam,
E o Sultão de Bizâncio sorri enquanto esboroam;
Há risos qual fontes na face por todos
        temida
Agitando a selva escura, sua barba
        escurecida,
Curvando a rubra lua crescente, crescente nos
        lábios bravios,
Pois o mar mais íntimo da terra treme com seus
        navios.
Às repúblicas brancas foram pelos cabos da Itália
        a desafiar,
Mosquearam o Adriático em torno ao Leão
        do Mar,
E o Papa abriu os braços ante a perda e
        a ansiedade,
E invocou sob a Cruz as espadas dos reis
        da Cristandade,
A rainha da Inglaterra se olha no espelho mortiça;
A sombra do Valois boceja na Missa;
Das ilhas do poente tinidos fantásticos torpecem
        o canhão espanhol,
E o Senhor sobre o Chifre Dourado segue rindo
        no sol.

Tambores baços nas colinas, um rufar ecoa,
Onde só num trono sem nome vibrou um príncipe
        sem coroa,
Erguendo-se numa tenda mal armada duma
        dúbia sede,
O último cavaleiro europeu toma armas da
        parede,
O último e tardio trovador a quem o pássaro
        cantou,
Que cantando outrora num mundo jovem
        ao sul rumou,
Num enorme silêncio, miúdo, sem temer nada,
Sobe numa senda sinuosa o rumor da
        Cruzada.
Gongos fortes gemem, e os canhões longe a
        ribombar,
Don João da Áustria está indo lutar,
Bandeiras estalam nas rajadas noturnas do frio
No fulgor do ouro velho, no preto-púrpura sombrio,
Timbales de cobre à luz de tocha carmesim,
Depois os toques, as trombetas, o canhão, e ele
        chega enfim.
Don João com barba valente e riso jucundo,
Esticando-se nos estribos qual nos tronos
        do mundo,
Ergue a cabeça como flâmula dos livres
        avançando.
Luz de amor da Espanha – hurrah!
Luz de morte da África!
Don João da Áustria
Vai ao mar cavalgando.

Mohhamed está em seu paraíso além da estrela
        crepuscular,
(Don João da Áustria está indo lutar.)
Ele move nos joelhos eternos da huri um turbante
        abastado,
Aquele que foi com o crepúsculo e os mares
        trançado.
Ele abala os jardins de pavões ao deixar seu
        leito,
E caminha entre as árvores com as copas
        sob o peito,
E sua voz pelo jardim é um trovão que traz a
        mando
O Negro Azarel e Ariel e Amon voando.
Gigantes e os Gênios,
Asas e olhos em confluência,
Que romperam o céu com sua obediência
Quando Salomão estava reinando.

Das nuvens rubras da manhã em rubro e púrpura
        precipitados,
Dos templos onde deuses amarelos fecham os
        olhos ojerizados;
Rugindo em robes verdes, dos infernos verdes
        do mar saídos,
Onde jazem bichos sem olhos, tons malignos,
        e céus caídos;
Encrostados de cracas e selvas cinzas que
        tremulam qual marola,
Salpicados duma esplêndida moléstia, a moléstia
        da pérola;
Numa fumaça safira das gretas azuis do chão
        proliferam –
Se juntam, se deslumbram e Mohhamed
        veneram.
E ele disse, “Arrebentai as montanhas que servem
        aos eremitas de recanto,
Crivai a areia rubra e prata pra que não reste um
        osso de santo,
E persegui os Infiéis em fuga, sem descanso,
        noite e dia,
Pois do ocidente retorna nossa velha
        agonia.
Todas as coisas sob o sol nós lacramos com o selo
        de Salomão,
Com nosso saber e dor e poderosa
        obstinação,
Mas há um fragor nas montanhas, nas montanhas,
        e eu conheço
A voz que a nossos palácios, há quatro séculos,
        cobrou seu preço:
É ele que não diz ‘Kismet’; que não conhece
        o Destino;
É Richard, é Raymond, é Godfrey à porta ferino!
Aquele cuja perda é riso pois é a aposta que lhe
        apraz,
Esmagai-o com vosso pé, pra que na terra impere
        nossa paz.”
Pois ele ouviu o rugir das armas e os tambores
        a rufar,
(Don João da Áustria está indo lutar.)
Súbito e sempre – hurrah!
Raio da Ibéria!
Don João da Áustria
Partiu por Alcalar.

São Miguel em sua montanha nas vias
        marinhas do norte
(Don João da Áustria munido avança forte.)
Onde mares cinzas faíscam e marés
        se entrecortam
E velas rubras se erguem e marinheiros
        se exortam.
Ele brande sua lança de ferro e suas asas
        de pedra bate;
O rumor rasgou a Normandia; o rumor vai só
        ao combate;
O Norte está cheio de textos e olhos doídos
        e coisas intricadas
E a inocência da ira e da surpresa foi sufocada,
E cristãos matam cristãos num cubículo
        empoeirado,
E cristãos temem Cristo que tem um novo rosto
        irado,
E cristãos odeiam Maria que na Galileia
        Deus beijou,
Mas Don João da Áustria ao mar cavalgando
        zarpou.
Don João clamando entre o eclipse e o estouro
        se desloca
Gritando com o trompete, o trompete de sua boca,
Trompete que diz ah!
Domino gloria!
Don João da Áustria
Aos navios invoca.

O Rei Felipe em seu closet com o Tosão no
        pescoço
(Don João da Áustria no convés armado
        até o osso.
)

Na parede uns veludos pensos, negros e moles
        como pecados,
E anõezinhos se enfiam pra fora e pra dentro
        são enfiados.
Ele segura um frasco de cristal que tem cores
        como a lua,
Ele toca, se pica, treme e o tremor se
        acentua,
E suas faces são como o fungo dum leproso
        brancas e cinzentas
Como nas casas que se fecham ao dia as plantas
        bolorentas,
E a morte está no frasco, e o fim da nobre ação,
Mas Don João da Áustria abriu fogo contra
        o Sultão.
Don João caça, seus cães armam emboscada –
Ribomba além da Itália o rumor desta caçada
Arma sobre arma, ha! ha!
Arma sobre arma, hurrah!
Don João da Áustria
Descarregou a canhonada.

O Papa estava na capela antes que dia ou luta
        tivessem irrompido,
(Don João da Áustria está na fumaça escondido.)
A sala escondida na casa do homem onde Deus
        passa o ano sentado,
A janela secreta donde o mundo parece pequeno
        e amado.
Vendo qual num espelho no oceano crepuscular
        deletério
A lua crescente dos seus navios cruéis cujo nome
        é mistério;
As trevas cobrindo Cruz e Castelo, à sombra destes
        barcos.
Elas velam os leões emplumados nas galés
        de São Marcos;
E sobre as naus há palácios de chefes com barbas
        marrons e pretas,
E sob as naus há prisões, onde em torturas
        abjetas,
Cativos cristãos doentes na penumbra, raças
        obreiras gemem suas sinas
Qual uma raça em cidades submersas, qual uma
        nação nas minas.
Perdidos como escravos suados, e nos céus da
        manhã sobem
As escadas dos deuses mais altos quando a tirania
        era jovem.
São muitos, mudos, desesperados como fugitivos
        numa colônia,
Ante os altos corcéis do Rei no granito da
        Babilônia.
E muitos se embrutecem no seu quarto quieto
        no inferno
Onde um rosto amarelo na grade da cela espia
        o interno,
Que já não busca um sinal, vendo seu Deus
        ausente –
(Mas Don João da Áustria quebrou a linha
        de frente!
)

Don João duma popa pintada pelo massacre
        fulmina,
Purpurando como uma corveta pirata o mar
        de carnificina,
O escarlate escorre sobre as pratas e os ouros,
Arrebentando escotilhas e fortalezas com
        estouros,
Aglomerando milhões que no mar penavam
        na atrocidade
Brancos de êxtase e cegos pelo sol e aturdidos
        pela liberdade.
Vivat Hispania!
Domino Gloria!
Don João da Áustria
Devolveu seu povo à dignidade!

Cervantes em sua galera embainha a
        espada
(Don João da Áustria pra casa cavalga de fronte
        laureada.
)

E na Espanha ele vê uma estrada tortuosa numa
        terra de desolação,
Onde um cavaleiro tolo e esquálido cavalga
        sempre em vão,
E ele sorri, mas não como os Sultões sorriem, e de
        lâmina embainhada…
(Mas Don João da Áustria cavalga voltando
        da Cruzada.
)

White founts falling in the courts of the
        sun,

And the Soldan of Byzantium is smiling as they run,
There is laughter like the fountains in that face of all
        men feared,

It stirs the forest darkness, the darkness of his
        beard,

It curls the blood-red crescent, the crescent of his
        lips,

For the inmost sea of all the earth is shaken with his
        ships.

They have dared the white republics up the capes
        of Italy,

They have dashed the Adriatic round the Lion of
        the Sea,

And the Pope has cast his arms abroad for agony
        and loss,

And called the kings of Christendom for swords
        about the Cross,

The cold queen of England is looking in the glass;
The shadow of the Valois is yawning at the Mass;
From evening isles fantastical rings faint the
        Spanish gun,

And the Lord upon the Golden Horn is laughing in
        the sun.

Dim drums throbbing, in the hills half heard,
Where only on a nameless throne a crownless
        prince has stirred,

Where, risen from a doubtful seat and half attainted
        stall,

The last knight of Europe takes weapons from the
        wall,

The last and lingering troubadour to whom the bird
        has sung,

That once went singing southward when all the
        world was young,

In that enormous silence, tiny and unafraid,
Comes up along a winding road the noise of the
        Crusade.

Strong gongs groaning as the guns
        boom far,

Don John of Austria is going to the war,
Stiff flags straining in night-blasts cold
In the gloom black-purple, in the glint old-gold.
Torchlight crimson on the copper kettle-drums,
Then the tuckets, then the trumpets, then
        the cannon, and he comes.

Don John laughing in the brave beard curled,
Spurning of his stirrups like the thrones of all the
        world.

Holding his head up for a flag of all the
        free.

Love-light of Spain – hurrah!
Death-light of Africa!
Don John of Austria
Is riding to the sea.

Mahound is in his paradise above the evening
        star,

(Don John of Austria is going to the war.)
He moves a mighty turban on the timeless houri’s
        knees,

His turban that is woven of the sunset and the
        seas.

He shakes the peacock gardens as he rises from
        his ease,

And he strides among the tree-tops and is taller
        than the trees,

And his voice through all the garden is a thunder
        sent to bring

Black Azrael and Ariel and Ammon on the wing.
Giants and the Genii,
Multiplex of wing and eye,
Whose strong obedience broke the sky
When Solomon was king.

They rush in red and purple from the red clouds
        of the morn,

From temples where the yellow gods shut up their
        eyes in scorn;

They rise in green robes roaring from the green
        hells of the sea

Where fallen skies and evil hues and eyeless
        creatures be;

On them the sea-valves cluster and the grey
        sea-forests curl,

Splashed with a splendid sickness, the sickness of
        the pearl;

They swell in sapphire smoke out of the blue cracks
        of the ground,-

They gather and they wonder and give worship
        to Mahound.

And he saith, ‘Break up the mountains where the
        hermit-folk can hide,

And sift the red and silver sands lest bone of saint
        abide,

And chase the Giaours flying night and day, not
        giving rest,

For that which was our trouble comes again out of
        the west.

We have set the seal of Solomon on all things under
        sun,

Of knowledge and of sorrow and endurance of
        things done.

But a noise is in the mountains, in the mountains,
        and I know

The voice that shook our palaces – four hundred
        years ago:

It is he that saith not ‘Kismet’; it is he that knows not
        Fate;

It is Richard, it is Raymond, it is Godfrey at the gate!
It is he whose loss is laughter when he counts the
        wager worth,

Put down your feet upon him, that our peace be on
        the earth.’

For he heard drums groaning and he heard guns
        jar,

(Don John of Austria is going to the war.)
Sudden and still – hurrah!
Bolt from Iberia!
Don John of Austria
Is gone by Alcalar.

St Michael’s on his Mountain in the sea-roads of
        the north

(Don John of Austria is girt and going forth.)
Where the grey seas glitter and the sharp tides
        shift

And the sea-folk labour and the red sails
        lift.

He shakes his lance of iron and he claps his wings
        of stone;

The noise is gone through Normandy; the noise is
        gone alone;

The North is full of tangled things and texts and
        aching eyes,

And dead is all the innocence of anger and surprise,
And Christian killeth Christian in a narrow dusty
        room,

And Christian dreadeth Christ that hath a newer
        face of doom,

And Christian hateth Mary that God kissed in
        Galilee,

But Don John of Austria is riding to the
        sea.

Don John calling through the blast and the
        eclipse

Crying with the trumpet, with the trumpet of his lips,
Trumpet that sayeth ha!
Domino gloria!
Don John of Austria
Is shouting to the ships.

King Philip’s in his closet with the Fleece about his
        neck

(Don John of Austria is armed upon the
        deck.)
The walls are hung with velvet that is black and soft
        as sin,

And little dwarfs creep out of it and little dwarfs
        creep in.

He holds a crystal phial that has colours like the
        moon,

He touches, and it tingles, and he trembles very
        soon,

And his face is as a fungus of a leprous white and
        grey

Like plants in the high houses that are shuttered
        from the day,

And death is in the phial, and the end of noble work,
But Don John of Austria has fired upon the
        Turk.

Don John’s hunting, and his hounds have bayed –
Booms away past Italy the rumour of his raid.
Gun upon gun, ha! ha!
Gun upon gun, hurrah!
Don John of Austria
Has loosed the cannonade.

The Pope was in his chapel before day or battle
        broke,

(Don John of Austria is hidden in the smoke.)
The hidden room in man’s house where God sits all
        the year,

The secret window whence the world looks small
        and very dear.

He sees as in a mirror on the monstrous twilight
        sea

The crescent of his cruel ships whose name is
        mystery;

They fling great shadows foe-wards, making Cross
        and Castle dark,

They veil the plumèd lions on the galleys of
        St Mark;

And above the ships are palaces of brown,
        black-bearded chiefs,

And below the ships are prisons, where with
        multitudinous griefs,

Christian captives, sick and sunless, all a labouring
        race repines

Like a race in sunken cities, like a nation in the
        mines.

They are lost like slaves that sweat, and in the skies
        of morning hung

The stair-ways of the tallest gods when tyranny was
        young.

They are countless, voiceless, hopeless as those
        fallen or fleeing on

Before the high Kings’ horses in the granite of
        Babylon.

And many a one grows witless in his quiet room in
        hell

Where a yellow face looks inward through the lattice
        of his cell,

And he finds his God forgotten, and he seeks no
        more a sign –

(But Don John of Austria has burst the
        battle-line!)
Don John pounding from the slaughter-painted
        poop,

Purpling all the ocean like a bloody pirate’s
        sloop,

Scarlet running over on the silvers and the golds,
Breaking of the hatches up and bursting of the
        holds,

Thronging of the thousands up that labour under
        sea

White for bliss and blind for sun and stunned for
        liberty.

Vivat Hispania!
Domino Gloria!
Don John of Austria
Has set his people free!

Cervantes on his galley sets the sword back in the
        sheath

(Don John of Austria rides homeward with
        a wreath.)
And he sees across a weary land a straggling road
        in Spain,

Up which a lean and foolish knight forever rides in
        vain,

And he smiles, but not as Sultans smile, and settles
        back the blade…

(But Don John of Austria rides home from the
        Crusade.)