Guerra e Revolução

Introdução a Da Revolução de Hannah Arendt. Nova York, 1963 d.C.

Tradução de Denise Bottman

Guerras e revoluções – como se os acontecimentos apenas se apressassem em cumprir a previsão inicial de Lênin – têm determinado até hoje a fisionomia do século XX. À diferença das ideologias oitocentistas – tais como o nacionalismo e o internacionalismo, o capitalismo e o imperialismo, o socialismo e o comunismo, que, embora ainda sejam invocados várias vezes como causas justificadoras, perderam contato com as grandes realidades de nosso mundo –, a guerra e a revolução ainda constituem as duas questões centrais do século. Elas sobreviveram a todas as suas justificativas ideológicas. Numa constelação onde a ameaça de aniquilação total pela guerra se contrapõe à esperança de emancipação de toda a humanidade por meio da revolução – levando um povo após o outro, em rápida sucessão, “a ocupar entre os poderes da terra o lugar igual e independente a que lhe dão direito as Leis da Natureza e Deus da Natureza” –, não resta nenhuma outra causa a não ser a mais antiga de todas, a única, de fato, que desde o início de nossa história determinou a própria existência da política: a causa da liberdade em oposição à tirania.

É algo em si bastante surpreendente. Com efeito, sob o ataque conjunto das “ ciências” desmistificadoras modernas, a psicologia e a sociologia, nada parece estar mais profundamente sepultado do que o conceito de liberdade. Mesmos os revolucionários, que poderíamos supor firmemente, e até inexoravelmente, ancorados numa tradição que seria difícil de formular, e ainda mais difícil entender, sem a noção de liberdade, em muito maior medida preferiram rebaixar a liberdade ao nível de preconceito pequeno-burguês a admitir que o objetivo da revolução era, e sempre foi, a liberdade. Mas, se foi espantoso ver como a própria palavra “liberdade” pôde desaparecer do vocabulário, talvez não menos desconcertante foi observar como a ideia de liberdade se introduziu em anos recentes no centro da mais séria discussão entre todos os debates políticos da atualidade: a discussão da guerra e do uso justificável da violência. Do ponto de vista histórico, as guerras estão entre os fenômenos mais antigos do passado documentado, ao passo que as revoluções propriamente ditas não existiam antes da era moderna; entre todos os grandes fenômenos políticos, elas são dos mais recentes. Diferentemente da revolução, são raros os casos em que o objetivo da guerra esteve ligado à noção de liberdade; e, mesmo sendo verdade que muitas revoltas belicistas contra um invasor estrangeiro tenham sido consideradas guerras santas, nunca foram reconhecidas, na teoria ou na prática, como as únicas guerras justas.

As justificativas das guerras, mesmo no plano teórico, são muito antigas, embora, claro, não tanto quanto a guerra organizada. Entre seus pré-requisitos óbvios está a convicção de que as relações políticas em seu curso normal não caem sob o domínio da violência, e essa convicção encontramos pela primeira vez na Antiguidade grega, na medida em que a pólis, a cidade-estado grega, definia-se explicitamente como um modo de vida fundado apenas na persuasão, e não na violência. (Não eram palavras vazias para criar ilusão, o que demonstra, entre outras coisas, o costume ateniense de “persuadir” os condenados à morte a se suicidar tomando cicuta, poupando assim ao cidadão ateniense, em todas as circunstâncias, a indignidade da violação física.) No entanto, visto que para os gregos a vida política, por definição, não se estendia além dos muros da pólis, o uso da violência lhes parecia dispensar a necessidade de justificação na esfera daquilo que hoje chamamos de assuntos exteriores ou de relações internacionais, muito embora seus assuntos exteriores, com a única exceção das guerras pérsicas, que viram toda a Hélade unida, praticamente se resumissem às relações entre cidades gregas. Fora dos muros da pólis, isto é, fora da esfera da política no sentido grego do termo, “os fortes faziam o que podiam, e os fracos sofriam o que deviam” (Tucídides).

Portanto, e à Antiguidade romana que devemos recuar para encontrar a primeira justificação da guerra, junto com a primeira noção de que existem guerras justas e injustas. Todavia, as distinções e justificações romanas não diziam respeito à liberdade e não traçavam nenhuma linha divisória entre guerra agressiva e guerra defensiva. Disse Lívio: “É justa a guerra que é necessária, e sagradas são as armas quando não há esperança senão nelas” (Iustum enim est bellum quibus necessarium, et pia arma ubi nulla nisi in armis spes est). A necessidade, desde a época de Lívio e no decorrer dos séculos, tem significado muitas coisas que hoje consideraríamos plenamente suficientes para qualificar uma guerra não de justa, e sim de injusta. Conquista, expansão, defesa de interesses, preservação do poder diante do surgimento de novos poderes ameaçadores, manutenção de um dado equilíbrio de poderes todas essas conhecidas realidades da política de poder foram não só as causas concretas da eclosão de inúmeras guerras na história como também eram reconhecidas como “necessidades”, isto é, motivos legítimos para invocar uma decisão pelas armas. A noção de que a agressão é um crime e que as guerras só podem ser justificadas para repelir ou prevenir a agressão veio a adquirir significado prático e mesmo teórico somente depois que a Primeira Guerra Mundial demostrou o potencial pavorosamente destrutivo da guerra nas condições da tecnologia moderna.

Talvez por causa dessa perceptível ausência do argumento da liberdade nas justificações tradicionais da guerra como último recurso da política internacional que temos essa sensação de curiosa dissonância sempre que ouvimos invocado no debate atual sobre a questão da guerra. Sair-se com argumentos do tipo de um enfático “liberdade ou morte” diante do potencial inaudito e inconcebível de destruição numa guerra nuclear não é sequer vazio; é francamente ridículo. Na verdade, parece tão evidente que há uma enorme diferença entre arriscar a própria vida pela vida e liberdade de seu país e de sua posteridade e arriscar a própria existência da humanidade pelos mesmos fins, que fica difícil evitar a suspeita de má-fé por parte dos defensores do “antes morto do que comunista” ou “melhor morrer do que ser escravo”. O que, naturalmente, não significa que o inverso, “antes comunista do que morto”, tenha algo mais a recomendá-lo; quando uma velha verdade deixa de se aplicar, não adianta invertê-la. Na realidade, na medida em que a discussão sobre a questão da guerra hoje é conduzida nesses termos, é fácil notar uma reserva mental em ambos os lados. Os que dizem “melhor morto do que comunista” na verdade pensam: as perdas talvez não sejam tão grandes quanto alguns preveem, nossa civilização sobreviverá; enquanto os que dizem “melhor comunista do que morto” na verdade pensam: a escravidão não vai ser tão ruim, o homem não mudará sua natureza, a liberdade não desaparecerá para sempre da Terra. Em outras palavras, a má-fé dos debatedores consiste no fato de que ambos se esquivam à alternativa absurda que eles mesmos propuseram; não são sérios.

E importante lembrar que a ideia de liberdade foi introduzida no debate sobre a questão da guerra depois que ficou evidente que havíamos alcançado um estágio de desenvolvimento técnico em que os meios de destruição eram tais que excluíam a possibilidade de um uso racional. Em outras palavras, a liberdade apareceu neste debate como um deus ex machina para justificar o que se tornou injustificável em bases racionais. Será demasiado enxergar no meio da atual mistura inextricável de problemas e discussões um indício auspicioso de que talvez esteja prestes a ocorrer uma profunda mudança nas relações internacionais, a saber, o desaparecimento da guerra do cenário político, mesmo sem uma transformação radical das relações internacionais e sem uma mudança interior dos homens? Será que nossa atual perplexidade nesse assunto não indica nosso despreparo para o desaparecimento da guerra, nossa incapacidade de pensar a política externa sem ter em mente essa “continuação por outros meios” como último recurso?

Afora a ameaça de aniquilação total, que presumivelmente poderia ser eliminada por novas descobertas técnicas, como uma bomba “limpa” ou um míssil antimíssil, poucos sinais apontam nessa direção. Há, em primeiro lugar, o fato de que os germes da guerra total se desenvolveram já na Primeira Guerra Mundial, quando a diferença entre soldados e civis deixou de ser respeitada porque era incompatível com as novas armas usadas na ocasião. Sem dúvida, essa própria distinção já era um fato relativamente moderno, e sua abolição prática significou apenas um retorno da guerra aos tempos em que os romanos varreram Cartago da face do planeta. Nas condições modernas, porém, esse surgimento ou ressurgimento da guerra total tem uma significação política muito importante, pois contradiz os pressupostos básicos sobre os quais se funda a relação entre as áreas civis e as áreas militares do governo: a função do Exército é proteger e defender a população civil. No entanto, a história bélica em nosso século pode ser narrada quase como a história da incapacidade cada vez maior do Exército em desempenhar essa função básica, até o ponto em que, hoje, a estratégia de dissuasão veio a transformar claramente o papel do militar, que passou de protetor a vingador atrasado e no fundo inútil.

Intimamente ligado a essa distorção na relação entre Estado e Exército está, em segundo lugar, o fato notável, mas pouco notado, de que desde o final da Primeira Guerra Mundial supomos quase automaticamente que nenhum governo e nenhum Estado ou forma de governo terá forças suficientes para sobreviver a uma derrota em guerra. Pode-se rastrear esse desenvolvimento no século XIX, quando à Guerra Franco-Prussiana seguiu-se a mudança do Segundo Império para a Terceira República na França; e a Revolução Russa de 1905, seguindo-se à derrota na Guerra Russo-Japonesa, certamente foi um sinal pressago do que estava reservado aos governos em caso de derrota militar. Seja como for, uma transformação revolucionária no governo, realizada pelo próprio povo como depois da Primeira Guerra Mundial, ou imposta de fora pelas potências vitoriosas com a exigência de rendição incondicional e a criação de tribunais de guerra, hoje é uma das consequências mais seguras da derrota em guerra – tirando, é claro, a aniquilação total. Em nosso contexto, é secundário se esse estado de coisas se deve a um decisivo enfraquecimento do governo enquanto tal, a uma perda de autoridade nos países em questão, ou se nenhum Estado e nenhum governo, por mais sólido que seja e por mais confiança que nele depositem seus cidadãos, é capaz de resistir ao inaudito terror da violência desencadeada pela guerra moderna sobre o conjunto da população. A verdade é que, mesmo antes do horror da guerra nuclear, as guerras já tinham se tornado politicamente, embora ainda não biologicamente, uma questão de vida ou morte. E isso significa que, nas condições da guerra moderna, isto é, desde a Primeira Guerra Mundial, todos os governos têm sobrevivido sob risco constante de morte.

O terceiro fato parece indicar uma mudança radical na própria natureza da guerra, com a introdução da dissuasão como o princípio condutor da corrida armamentista. Pois realmente é verdade que a estratégia de dissuasão “visa mais a evitar do que a vencer a guerra que supostamente está preparando. Ela tende a alcançar seu objetivo mais por uma ameaça que nunca é posta em prática do que pelo ato em si. Sem dúvida, a percepção de que a paz é o fim da guerra e que, portanto, uma guerra é a preparação para a paz, é tão velha pelo menos quanto Aristóteles, e a alegação de que o objetivo de uma corrida armamentista é salvaguardar a paz é ainda mais velha, a saber, tão velha quanto a descoberta das mentiras de propaganda. Mas o ponto central da questão é que, hoje, evitar a guerra é não só o objetivo pretenso ou verdadeiro de uma política geral, mas tornou-se o princípio condutor dos próprios preparativos militares. Em outras palavras, os militares não estão mais se preparando para uma guerra que os estadistas esperam que nunca se deflagre; o objetivo deles passou a ser o desenvolvimento de armas que impossibilitem a guerra.

Além disso, é plenamente compatível com esses esforços, digamos, paradoxais que se aponte claramente no horizonte da política internacional a possibilidade de uma séria substituição das guerras “frias” por guerras “quentes”. Não pretendo negar que a atual retomada – esperemos que temporária – dos testes nucleares pelas grandes potências tem como objetivo primário novas descobertas e desenvolvimentos técnicos; mas parece-me inegável que esses testes, ao contrário dos precedentes, também são instrumentos políticos e, como tais, sinistramente aparentam ser um novo tipo de manobra em tempo de paz, envolvendo em seu treinamento não o par fictício de inimigos que se usa nas manobras comuns das tropas, mas o par formado, pelo menos potencialmente, pelos inimigos reais. É como se a corrida armamentista nuclear tivesse se convertido numa espécie de ensaio de guerra, em que os adversários exibem mutuamente a destrutividade das armas que possuem; e, embora seja sempre possível que esse jogo mortífero de “ses” e “quandos” de repente se torne a coisa real, não é absolutamente inconcebível que um dia a vitória e a derrota possam pôr fim a uma guerra que nunca eclodiu na realidade.

Será pura fantasia? Penso que não. Potencialmente, pelo menos, ficamos diante desse tipo de guerra hipotética no exato momento em que a bomba atômica fez sua primeira aparição. Muitos pensaram na época, e ainda continuam a pensar, que teria sido plenamente suficiente fazer uma demonstração da nova arma a um grupo selecionado de cientistas japoneses para obrigar o governo à rendição incondicional, pois tal demonstração a conhecedores constituiria prova cabal de uma superioridade absoluta que nenhuma mudança na sorte ou qualquer outro fator seria capaz de alterar. Dezessete anos depois de Hiroshima, nosso domínio técnico dos meios de destruição se aproxima rapidamente do ponto em que todos os fatores não técnicos numa guerra, como o ânimo dos soldados, a estratégia, a competência dos generais e mesmo o simples acaso, são completamente eliminados, e os resultados podem ser calculados antecipadamente com absoluta precisão. Uma vez atingido esse ponto, os resultados de meros testes e demonstrações poderiam ser, para os especialistas, provas da vitória ou da derrota tão conclusivas quanto o campo de batalha, a conquista de território, a destruição dos meios de comunicação etc. tinham sido anteriormente para os especialistas militares de ambos os lados.

Há o fato final, e em nosso contexto o mais importante, de que a relação entre guerra e revolução, a reciprocidade e a mútua dependência entre elas, tem aumentado de maneira constante, e a ênfase na relação tem se transferido cada vez mais da guerra para a revolução. Sem dúvida, essa relação entre guerras e revoluções não é, em si, um fenômeno novo; é tão antigo quanto as próprias revoluções, que ou foram precedidas e acompanhadas por uma guerra de libertação, como a Revolução Americana, ou levaram a guerras defensivas e agressivas, como a Revolução Francesa. Mas, além dessas modalidades, em nosso século surgiu um tipo de acontecimento completamente diferente, em que mesmo a fúria da guerra era como que apenas um prelúdio, uma fase preparatória da violência desencadeada pela revolução (tal foi, sem dúvida, o entendimento de Pasternak sobre a guerra e a revolução na Rússia, em Doutor Jivago), em que, ao contrário, uma guerra mundial aparece como consequência da revolução, uma espécie de guerra civil se alastrando por todo o mundo, tal como a própria Segunda Guerra Mundial foi vista por uma parcela considerável da opinião pública, e de maneira bastante justificável. Vinte anos mais tarde, tornou-se quase evidente que o fim da guerra é a revolução, e que a única causa que seria capaz de justifica-la é a causa revolucionária da liberdade. Assim, qualquer que seja o desfecho de nossos problemas atuais, se não perecermos todos, parece mais do que provável que a revolução, à diferença da guerra, continuará conosco até onde podemos enxergar o futuro. Mesmo que conseguíssemos mudar a fisionomia deste século a ponto de deixar de ser um século de guerras, com toda certeza continuará como um século de revoluções. Na disputa que atualmente divide o mundo, e na qual há tanta coisa em jogo, provavelmente vencerão os que entendem a revolução, ao passo que os que ainda depõem fé na política de poder no sentido tradicional do termo e, portanto, na guerra como o último recurso de toda política externa poderão descobrir num futuro não muito remoto que se tornaram mestres num ofício um tanto inútil e obsoleto. E esse entendimento da revolução não pode ser contrariado nem substituído por uma experiência especializada em contrarrevoluções; pois a contrarrevolução – termo que foi cunhado por Condorcet durante a Revolução Francesa – sempre se manteve ligada à revolução, tal como a reação está ligada à ação. A famosa declaração de De Maistre – “La contrerévolution ne sera point une revolution contraire, mas le contraire de la revolution” [A contrarrevolução não será uma revolução contrária, mas o contrário da revolução”] – continua a ser o que era quando foi proferida em 1796: uma mera frase de efeito.

Porém, por mais necessário que seja distinguir na teoria e na prática entre guerra e revolução, apesar da íntima relação entre elas, não podemos deixar de notar que o simples fato de ser inconcebível qualquer guerra ou revolução fora do campo da violência é suficiente para distingui-las de todos os outros fenômenos políticos. Seria difícil negar que uma das razões pelas quais as guerras se convertem tão facilmente em revoluções e as revoluções têm mostrado essa sinistra tendência de desencadear guerras é que a violência constitui uma espécie de denominador comum a ambas. Na verdade, a magnitude da violência liberada na Primeira Guerra Mundial provavelmente teria sido suficiente para desencadear revoluções em sua esteira, mesmo sem nenhuma tradição revolucionária e mesmo que antes jamais tivesse ocorrido qualquer revolução. Sem dúvida, nem mesmo as guerras, e menos ainda as revoluções, são sempre totalmente determinadas pela violência. Onde a violência impera absoluta, como por exemplo nos campos de concentração dos regimes totalitários, não só as leis – les lois se taisent [as leis se calam], como colocou a Revolução Francesa –, mas tudo e todos devem quedar em silêncio. É por causa desse silêncio que a violência é um fenômeno marginal na esfera política; pois o homem, como ser político, é dotado do poder de fala. As duas famosas definições de homem dadas por Aristóteles – o homem como ser político e ser dotado de linguagem – se complementam mutuamente e ambas remetem à mesma experiência na vida da pólis grega. O ponto aqui é que a violência em si é incapaz de fala, e não apenas que a fala é impotente diante da violência. Devido a essa ausência de fala, a teoria política tem pouco a dizer sobre o fenômeno da violência e deve deixar essa discussão aos técnicos. Como o pensamento político só pode acompanhar as expressões verbais dos próprios fenômenos políticos, ele fica restrito ao que aparece no domínio dos assuntos humanos; e, para que possam se manifestar, esses fenômenos, à diferença das questões físicas, requerem fala e expressão verbal, isto é, algo que transcende a mera visibilidade física e a simples audibilidade. Uma teoria da guerra ou uma teoria da revolução, portanto, só pode tratar da justificação da violência porque essa justificação constitui seu limite político; se, em vez disso, ela chega a uma glorificação ou a uma justificação da violência enquanto tal, já não é política, e sim antipolítica.

Na medida em que a violência desempenha um papel predominante nas guerras e revoluções, ambas se dão fora da esfera política em termos estritos, a despeito de seu imenso papel na história documentada. Esse fato levou o século XVII, que teve seu próprio quinhão de guerras e revoluções, à hipótese de um estado pré-político, chamado “estado de natureza”, que, evidentemente, nunca teve a pretensão de remeter a um fato histórico. Se ainda hoje essa é uma hipótese pertinente, é porque ela reconhece que uma esfera política não surge automaticamente em qualquer lugar onde convivam seres humanos, e que existem acontecimentos que, embora possam ocorrer num contexto estritamente histórico, não são realmente políticos e talvez nem sequer ligados à política. A noção de um estado de natureza se refere quando menos a uma realidade que não é abrangida pela ideia oitocentista de desenvolvimento, como quer que a formulemos – seja como causa e efeito, ou potencialidade e atualidade, ou um movimento dialético, ou mesmo como um simples encadeamento de fatos. Pois a hipótese de um estado de natureza supõe a existência de um início que está separado como que por um fosso intransponível de tudo o que se segue a ele.

A relação entre o problema dos inícios e o fenômeno da revolução é evidente. A íntima ligação entre o início e a violência parece encontrar comprovação nos inícios lendários de nossa história, tais como são registrados tanto pela Antiguidade bíblica quanto pela Antiguidade clássica: Caim matou Abel. Rômulo matou Remo; a violência foi o início e. ao mesmo tempo, não poderia haver nenhum início sem se usar violência, sem violentar. Os primeiros atos registrados em nossa tradição bíblica e secular, quer sejam reconhecidamente lendários ou considerados como fato histórico, percorreram os séculos com a força que o pensamento alcança nos raros casos em que cria metáforas irresistíveis ou narrativas universalmente aplicáveis. A narrativa foi clara: qualquer fraternidade de que sejam capazes os seres humanos nasceu do fratricídio, qualquer organização política a que tenham chegado os homens teve origem no crime. A convicção de que no início esteve um crime – o que encontra na expressão “estado de natureza” apenas sua paráfrase depurada teoricamente – trouxe ao longo dos séculos uma plausibilidade tão autoevidente para o estado dos assuntos humanos quanto a plausibilidade que a primeira frase de são João – “No princípio era o Verbo” – teve para os assuntos da salvação.

 

Edição: Companhia das Letras
IlustraçãoDante e Virgilio, óleo sobre tela de William Adolphe Bougereau (1850), atualmente em exposição no Museu d’Orsay em Paris.