Cartas de um empregado da corte a uma confidente

Do epistolário de Franz Joseph Haydn. Áustria e Inglaterra, por volta de 1790 d.C.

 

Esterháza, 9 de fevereiro de 1790.

Estimadíssima e gentil Frau Von Genzinger,

Bem! Aqui estou, sentado em minha selva; esquecido, como um pobre órfão, quase sem companhia humana; melancolia, radicada na memória de dias passados e gloriosos. Sim; ai de mim, passados! E quem pode dizer quando estas horas felizes retornarão? Aquelas reuniões encantadoras, onde todos não tem senão um só coração e uma só alma – todas aquelas deliciosas tardes musicais, que só podem ser lembradas, não descritas. Onde estão todos esses momentos inspiradores? Todos se foram – e há muito tempo. Você não deve se surpreender, minha cara senhora, por eu ter demorado para escrever expressando minha gratidão. Encontrei tudo em casa na maior confusão; por três dias não consegui saber se eu era o mestre de capela ou o servo de capela; nada era capaz de me consolar; meus aposentos estavam todos uma bagunça; meu pianoforte, que antes amava tanto, foi perverso e desobediente, e mais me irritou do que tranquilizou. Dormi muito pouco, e mesmo meus sonhos me perseguiram, pois, enquanto dormia, estava sob a deliciosa ilusão de que ouvia a ópera Le Nozze di Figaro quando o turbulento vento do norte me acordou, e quase arrancou meu gorro da cabeça.

(…) Perdoe-me, cara senhora, por tomar o seu tempo logo na minha primeira carta com estes rabiscos tão miseráveis, e com tão estúpido nonsense; você deve perdoar um homem mimado por Viena. Agora, no entanto, eu começo a me acostumar aos poucos com a vida no campo, e ontem eu estudei pela primeira vez, e de algum modo no estilo Haydn.

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Esterháza, 14 de março de 1790.

Querida, estimada e gentil Frau v. Genzinger,

Peço que me perdoe um milhão de vezes por ter tomado tanto tempo, atrasando a resposta de suas duas cartas encantadoras, coisa que não foi causada pela negligência (um pecado do qual rogo aos Céus que me preservem enquanto for vivo), mas pela pressão dos afazeres que recaíram sobre mim em função de meu gracioso Príncipe em sua atual condição melancólica. A morte de sua mulher devastou o Príncipe com tal dor que nós fomos obrigados a usar de todos os meios em nosso poder para erguê-lo de sua profunda tristeza. Assim eu organizei para os três primeiros dias uma seleção de músicas de câmara, mas sem canções. O pobre Príncipe, contudo, na primeira noite, ao ouvir o Adagio em D, meu favorito, foi acometido por uma melancolia tão profunda que foi difícil dissipá-la com as outras peças. No quarto dia tivemos uma ópera, no quinto uma comédia, e então nosso teatro diário como de hábito…

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Londres, 8 de janeiro de 1791.

Minha chegada causou grande sensação por toda cidade, e eu estive na pauta de todos os jornais por três dias sucessivos. Todos parecem ansiosos por me conhecer. Eu já jantei fora umas seis vezes, e poderia ser convidado todos os dias se assim quisesse; mas devo zelar antes de tudo por minha saúde, e depois por meu trabalho. Com exceção da nobreza, não admito nenhum visitante até as duas da tarde, e às quatro eu janto em casa com Salomon [, meu empresário em Londres]. Estou instalado num apartamento limpo e confortável, mas bem custoso. Meu locador, um italiano, é também um cozinheiro que nos oferece pratos excelentes; cada um de nós paga um florin e trinta kreuzers por dia, sem contar a cerveja e o vinho, mas tudo é terrivelmente caro por aqui. Ontem fui convidado para um grande concerto amador, mas cheguei um tanto tarde; quando entreguei meu ticket, eles não me deixaram entrar, mas levaram-me à antecâmara, onde fui obrigado a esperar até que a peça que estavam tocando acabasse. Então eles abriram a porta e eu fui conduzido, apoiando-me no braço do diretor da orquestra, até o centro do salão, em frente à orquestra, em meio a palmas por todos os lados, observado por todos, e saudado com muitas congratulações inglesas. Asseguraram-me que tais honras não foram conferidas a ninguém nos últimos cinquenta anos. Depois do concerto fui levado a um belíssimo salão adjacente onde as mesas haviam sido postas para todos os amadores, que chegavam a duzentos. Propuseram que eu tomasse um posto no alto, mas como eu já havia jantado naquela noite, comendo até mais do que o usual, eu declinei a honra, desculpando-me sob o pretexto de que não estava me sentindo muito bem; mas apesar disso, não pude evitar beber no brinde, um borgonha, para os senhores ali presentes; todos responderam, mas finalmente deixaram-me ir para casa. Tudo isso, minha cara senhora, foi muito lisonjeiro para mim; ainda assim eu adoraria poder fugir uns instantes até Viena, para ter mais paz para o trabalho, já que o barulho das ruas e os gritos do povo vendendo suas bugigangas são intoleráveis. Eu continuo trabalhando em algumas sinfonias, enquanto o libreto da próxima ópera ainda não está definido, mas a fim de ter mais quietude, eu pretendo alugar um apartamento um pouco mais afastado da cidade. Eu adoraria escrever com mais vagar, mas não quis perder esta oportunidade. Com os mais afetuosas lembranças ao seu marido, Fräulein Pepi e todo o resto; com sincera estima etc.,

Haydn

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Londres, 17 de setembro de 1791.

Minha estimadíssima amiga.

(…) Eu esperava poder gozar antes a felicidade de revê-la mais uma vez; mas as minhas circunstâncias… para resumir, quis o destino que eu permanecesse mais oito ou dez meses em Londres. Ó, minha querida, minha boa senhora, como é doce um pouco de liberdade! Eu tinha um Príncipe bondoso, mas fui por vezes obrigado a depender de almas mesquinhas. Quantas vezes eu pedi alforria, e agora eu a tenho em alguma medida. Sou bastante sensível a este benefício, embora minha cabeça esteja sobrecarregada com mais trabalho. A consciência de já não estar subjugado pela servidão adoça todas as minhas tribulações. Mas, por mais cara que seja a liberdade para mim, eu espero em meu retorno retomar novamente os serviços ao Príncipe Esterhazy, somente em razão de minha pobre família. Duvido muito que conseguirei ver este desejo realizado, pois em sua carta o meu Príncipe se queixa de minha longa ausência, e solicita o meu retorno nos termos mais absolutos; coisa que, no entanto, não posso cumprir, devido a um novo contrato que firmei por aqui. É duro dizer, mas prevejo minha demissão; tenho esperança, contudo, que mesmo neste caso Deus será gracioso para comigo, e me permitirá em algum grau remediar a minha perda com minha própria industriosidade. Enquanto isso, eu me consolo com a esperança de logo ouvir notícias suas. Você deve receber a sinfonia que lhe prometi há dois meses; mas a fim de me inspirar com boas ideias, eu lhe rogo que me escreva uma carta, e longa. Do seu, etc.

Haydn