De Robinson Crusoe ou A Vida e as Estranhas Aventuras Surpreendentes de Robinson Crusoe, de York, Marinheiro: Que viveu Vinte e Oito anos totalmente só em uma Ilha inabitada na Costa da América, próximo à embocadura do Grande Rio do Orenoco; Tendo sido lançado à Costa por um Naufrágio, no qual todos os homens pereceram exceto ele mesmo. Com um Relato de como ele foi por fim estranhamente libertado por Piratas. De Daniel Defoe, Londres, 1719 d.C.
Na Inglaterra do século XVII, o jovem Robinson Crusoe (originalmente Kreutznaer), filho mais novo de um mercador alemão, decide contrariar os anseios do pai de que se formasse advogado, e embarca numa expedição comercial marítima em Londres. Após uma primeira viagem com bons negócios, o navio é atacado por piratas mouros, e Crusoe é escravizado no Norte da África. Com o auxílio de um garoto negro, ele empreende uma fuga arriscada e é resgatado por um navio de portugueses, que compram dele o menino e os levam ao Brasil. Na Bahia, Crusoe estabelece uma plantação de tabaco e prospera rapidamente. Rico, mas desejoso de aventura, decide empregar seu capital no tráfico de escravos, e embarca novamente rumo à costa oeste africana em uma expedição, que porém acaba em um naufrágio. Após recuperar armas, pólvora, comida e roupas vários utensílios dos destroços do navio, ele improvisa um abrigo na praia. Certo dia, há quase um ano na ilha, Robinson adoece e vê um anjo que o alerta a se arrepender de seus pecados. Após ingerir uma medicação feita de rum com tabaco, experimenta uma epifania e se dá conta de que Deus o libertou de seus pecados pregressos. Recuperado, Crusoe começa a fazer expedições e descobre um vale abundante em uvas, onde constrói sua morada definitiva, uma verdadeira fortaleza. Passa então a se sentir mais otimista quanto ao seu destino na ilha, descrevendo-se a si mesmo como o seu “rei.” Ele treina um papagaio, domestica cabras selvagens, e em longos processos de tentativa e erro aprende, entre outras coisas, a cultivar grãos, confeccionar cestos e potes, assar pão, e talhar móveis e canoas. Assim transcorrem quinze anos de relativa paz e absoluta solidão em sua ilha.
Um dia, quando ia para o meu barco, descobri muito distintamente na areia os sinais dum pé nu. Nunca tive tão grande terror; parei repentinamente, como se tivesse sido fulminado pelo raio ou como se tivesse visto alguma aparição. Pus os ouvidos à escuta, olhei em torno de mim; mas não vi nem ouvi nada: subi a uma pequena eminência para ver mais ao longe; desci e fui à praia, mas não descobri nada de novo, nem algum outro vestígio de homem do que aquele de que acabo de falar. Voltei lá na esperança de que o meu receio não era talvez senão uma imaginação sem fundamento; mas vi outra vez os mesmos sinais dum pé nu, os artelhos, o calcanhar e todos os outros indícios dum pé de homem. Não sabia que conjecturar: fugi para a minha fortificação, todo perturbado, olhando para trás de mim quase a cada passo e tomando todas as moitas que encontrava por homens. Não é possível descrever as diversas figuras que uma imaginação assustada acha em todos os objetos. Quantas ideias loucas e pensamentos extravagantes não me vieram ao espírito, enquanto eu fugia para a minha fortaleza.
Assim que lá cheguei, deitei-me logo como um homem que é perseguido; não posso mesmo lembrar-me se entrei em casa pela escada ou pelo buraco aberto na rocha, e que eu chamava uma porta. Estava muito assustado para isso me ficar na cabeça. Nunca coelho algum nem raposa se refugiou na sua toca com mais terror do que eu no meu castelo, porque é assim que o continuarei a chamar.
Não pude dormir toda a noite: à medida que me afastava da causa do meu terror, os meus receios aumentavam, ao contrário do que acontece ordinariamente. As minhas ideias assustadoras perturbavam-me de tal modo que, posto que muito afastado do lugar onde tivera esse alarme, a minha imaginação não me representava nada que não fosse triste e terrível. Que seres tinham deixado o sinal que acabava de descobrir? Com a certeza que não podiam deixar de ser selvagens do continente que tendo-se metido ao mar com as suas canoas, tinham sido levados à ilha pelos ventos contrários, ou pelas correntes, e que tinham tido tão pouca vontade de ficar nessa praia deserta quanto eu tinha de os ver aí.
Enquanto estas reflexões rolavam no meu espírito, dava eu graças ao céu de não me ter achado nessa ocasião nesse lugar da ilha e o meu barco ter escapado aos olhos deles, porque se o tivessem visto, concluiriam certamente que a ilha era habitada, o que os poderia levar a procurarem-me e descobrir-me-iam. Em certos momentos imaginei que o meu barco fora encontrado, e esse pensamento agitava-me do modo mais cruel; esperava vê-los voltar em maior numero, e receava que mesmo quando eu pudesse esquivar-me à sua barbaria, eles encontrassem o meu recinto, destruíssem o meu rebanho e me reduzissem assim a morrer de fome. Nessa situação, tinha a censurar-me o ter tido a preguiça de não semear, senão o grão que me era necessário até á nova estação, e achei esta censura tão justa, que tomei a resolução de me fornecer sempre para dois ou três anos, a fim de não estar exposto a morrer de fome, se se desse comigo algum acidente.
De manhã, estando no meu leito, inquieto por mil pensamentos referentes ao perigo que tinha a recear dos selvagens, achava-me no acabrunhamento mais triste, quando de repente me vaio ao espírito esta passagem das Santas Escrituras: “Invoca-me no dia da desgraça, e eu te livrarei, e ti me glorificarás.”
Assim me levanto, não só cheio de nova coragem, mas ainda decidido a pedir a Deus a minha salvação pelas orações mais fervorosas; quando as acabei, pequei na Bíblia, e abrindo-a, as primeiras palavras que me saltaram aos olhos foram estas: Pensa no Senhor, e tem bastante coragem, que ele te fortificará o coração. A consolação que tive com isso foi inexprimível: enchey a minha alma de reconhecimento pela Divindade e dissinpou absolutamente meus terrores.
No meio deste fluxo e refluxo de pensamentos e de inquietações, veio-me um dia a ideia que o motivo do meu receio não passava talvez duma quimera, e que o vestígio que eu notara podia ser muito bem o vestígio de meu próprio pé. Talvez, disse eu, saindo do meu barco, tivesse tomado o mesmo caminho que ao entrar; os meus próprios vestígios assustaram-me, fiz o papel desses doidos que fazem histórias de espectros e de aparições, e que em seguida estão mais assustados com as suas fábulas que os seus leitores.
Retomei coragem e saí do meu retiro para continuar no meu trabalho ordinário. Não saíra do meu castelo havia três dias e outras tantas noites, e começava a sofrer fome, pois que apenas tinha em minha casa algumas bolachas e água; lembrei-me então que as minhas cabras tinham necessidade que se lhe tirasse o leite, o que era de ordinário o meu divertimento da tarde. Não tinha razão para estar assim; os pobres animais tinham sofrido muito, muitos estavam doentes, e o leite da maior estava seco. Animando-me pois pelo pensamento que eu tivera medo apenas da minha própria sombra, fui à minha cabana de campo para mungir o meu rebanho; mas tomar-me-iam por um homem agitado pela pior consciência, ao ver com que receio eu caminhava, quantas vezes olhava para trás, como eu descansava de quando em quando no chão o meu cântaro de leite, e corria com tanta ligeireza como se tratasse de salvar a minha vida.
Contudo, tendo estado assim dois ou três dias, tornei-me mais atrevido, e conformei-me no sentimento de que fora engano da minha imaginação. Não podia estar contudo plenamente convencido disso antes de ir a esse lugar e de medir a pegada que me dera tanta inquietação. Logo que me achei no lugar em questão, vi evidentemente que não era possível que tivesse saído do meu barco ali perto; além disso, achei a pegada em questão muito maior do que o meu pé, o que me encheu o coração de novas agitações. Um calafrio me percorreu o corpo, como se tivesse febre, e voltei para casa, persuadido de que tinham desembarcado homens nessa praia, ou então que a ilha era habitada, e que eu corria risco de ser atacado de improviso, sem saber de que maneira me precaver.
Este caos de pensamentos me fez estar acordado toda a noite; mas adormeci quando era quase dia: a fadiga da minha alma e a prostração do meu espírito deram-me um sono muito profundo. Quando acordei, achei-me muito mais sossegado, e comecei a raciocinar sobre o meu estado sossegadamente. Depois dum falatório comigo mesmo, conclui que uma ilha tão agradável, tão fértil, tão próxima do continente não devia ser deserta como eu a julgara; que na verdade não havia habitantes fixos, mas que segundo parecia vinham ali algumas vezes com embarcações, ou voluntariamente, ou quando para ali eram levados pela força dos ventos contrários. Da experiência de quinze anos, durante os quais eu sempre vivera sem descobrir somente a sombra duma criatura humana, julgava poder inferir que se de quando em quando a gente do continente era forçada a desembarcar na minha ilha, tornavam a embarcar logo que podiam, pois que até aqui não tinham achado conveniente estabelecerem-se ali.
Vi perfeitamente bem tudo o que tinha a recear: eram esses desembarques acidentais contra os quais a prudência queria que eu procurasse uma retirada segura. Comecei então a arrepender-me de ter furado a minha caverna tão depressa e de lhe ter dado uma saída no lugar onde a minha fortificação juntava o rochedo. Para remediar esse inconveniente, resolvi fazer uma segunda trincheira também em semicírculo, a alguma distância da minha muralha, no mesmo lugar onde doze anos antes plantara uma fileira de arvores. Pusera-as tão cerradas, que não me era preciso mais que um pequeno número de caniçadas entre duas para fazer delas uma fortificação suficiente. Achava-me assim defendido por duas trincheiras: a de fora era fortificada com peças de madeira, velhos cabos e tudo o que eu julgara próprio para a reforçar, e tornei-a da espessura de mais de dez pés à força de para ali levar terra e de lhe dar consistência a andar por cima. Pratiquei cinco aberturas bastante largas para por ali passar o braço, nas quais eu pus os cinco mosquetes que tirara do navio, como já disse e coloquei-os como canhões sobre espécies de carretas, de tal maneira que podia fazer fogo com toda a minha artilharia em dois minutos; fatiguei-me durante muitos meses por esse entrincheiramento na perfeição, e não descansei enquanto o não vi pronto. Acabada a obra, enchi um grande espaço de terra, fora da trincheira, de vergonteas de uma madeira semelhante ao vimeiro, própria para firmeza e para crescer em pouco tempo. Creio que enterrei na terra num ano só, mais de vinte mil, de modo que deixava um vazio bastante grande entre esses bosques e a minha trincheira, afim de que pudesse descobrir o inimigo, e que ele não pudesse armar-me emboscadas no meio dessas árvores novas.
Dois anos depois formavam já um bosquezinho espesso; e no fim de seis anos tinha diante da minha habitação uma floresta de tal espessura e de tão grande força, que era absolutamente impenetrável, e que alma viva não teria imaginado que escondesse a habitação duma criatura humana.
Como eu não deixara avenida para o meu castelo, servia-me para entrar nele e para dali sair de duas escadas; com a primeira subia até um sitio da rocha onde havia lugar para assentar a segunda, e depois de as retirar uma e outra não seria possível a ninguém chegar-se a mim sem correr os maiores perigos.
Além disso, quando alguém tivesse tido bastante felicidade para descer da rocha, encontrar-se-ia ainda para lá da minha trincheira exterior.
Foi assim que tomei para minha conservação todas as medidas que a prudência humana me podia sugerir, e verão em breve que essas precauções não eram absolutamente inúteis, apesar de então ser um vago receio que as inspirava.
Durante estas ocupações, não deixava de ter olho sobre os meus outros negócios; interessava-me sobretudo pelo meu pequeno rebanho de cabras, que começavam não só a ser de grande recurso para mim na presente ocasião, mas que, para o futuro, me faziam esperar a economia do meu chumbo, da minha pólvora e das minhas fadigas, que sem elas teria que empregar da caça das cabras selvagens.
Depois de madura deliberação, apenas achei dois meios de as abrigar de todo o perigo. O primeiro era abrir uma outra caverna debaixo da terra e fazê-las entrar para ali todas as noites, e o segundo, fazer outros dois ou três pequenos recintos afastados uns dos outros, e o mais escondidos possível, em cada um dos quais pudesse encerrar meia dúzia de cabras novas, afim de que se me acontecesse algum desastre ao rebanho em geral, me achasse em estado de o pôr novamente a pé em pouco tempo e com pouco trabalho: ainda que este ultimo partido fosse de execução longa e penosa, pareceu-me contudo o mais razoável. Para realizar esse desígnio, pus-me a percorrer todos os recantos da ilha, e logo encontrei um lugar tão abrigado como desejava. Era uma grande clareira cercada de espesso bosque e onde, como já disse, estivera a ponto de me perder um dia quando voltava da parte oriental da ilha. Oferecia uma espécie de parque com o qual a natureza fizera quase todas as despesas, e por consequência não exigia um trabalho tão rude como o que eu empregara nos outros meus recintos. Pus-me logo a trabalhar, e em menos dum mês ajudara tão bem a natureza, que as minhas cabras, que estavam já sofrivelmente domesticadas, podiam estar em segurança neste asilo.
O único vestígio dum homem custou-me todo esse trabalho, e havia já dois anos que eu vivia nesses transes mortais e no acabrunhamento natural dum homem cercado de perigos, e que deve esperar cada dia ser feito em pedaços e comido antes do fim da noite.
Depois de ter posto em segurança desta maneira parte da minha provisão viva, percorri toda a ilha para procurar um outro lugar próprio para receber igual depósito. Um dia, avançando eu para a ponta ocidental da ilha, mais longe do que o não fizera ainda, julguei avistar, duma altura em que estava, uma chalupa no mar; encontrara algumas lunetas num dos baús que salvara do navio, mas por desgraça não as tinha então comigo e não pude distinguir o objeto em questão, apesar de ter fatigado os olhos à força de ali os fixar. Assim fiquei na incerteza se era uma chalupa ou não, e isso fez-me tomar a resolução de nunca mais sair sem uma das minhas lunetas. Ao descer da colina, e ao achar-me num lugar onde nunca estivera, fiquei plenamente convencido de que um vestígio de homem não era coisa rara na minha ilha, e que se uma Providência particular me não tivesse lançado para o lado onde os selvagens nunca vinham, teria sabido que era muito frequente aos barcos do continente buscar enseada nessa ilha. Saberia mais que depois de algum combate entre os barcos de diferentes povoações, os vencedores conduziam os seus prisioneiros à minha praia, para os matarem e para os comerem como verdadeiros canibais que eram.
O que me instruiu do que acabo de dizer, foi um espetáculo que me encheu de espanto e terror: descobri a terra semeada de crânios, mãos, pés e outras ossadas humanas: notei ali perto os restos duma fogueira, e um banco cavado na terra, em forma de circuito, onde certamente esses abomináveis selvagens se tinham colocado para fazer o seu espantoso festim. Esta vista cruel suspendeu por algum tempo a ideia dos meus próprios perigos: todas as minhas apreensões eram abafadas pelas impressões que me dava essa brutalidade infernal. Ouvira falar disso muitas vezs, e contudo a vista não me chocou com isso menos do que se a coisa me não entrasse na imaginação; desviei os olhos desses horrores, senti cruéis pensamentos, e perderia os sentidos se a natureza não me tivesse aliviado por um vomito muito violento; quando voltei a mim, não me pude resolver a ficar nesse lugar e voltei para minha casa.
Quando me afastei desse horrível lugar, parei de repente, como um homem fulminado por um raio; voltando a mim, levantei os olhos ao céu e com o coração enternecido, como os olhos cheios de lágrimas, dei graças a Deus porque ele me fizera nascer numa parte do mundo estranha a tais abominações.
Com a alma cheia desses sentimentos, voltei para casa mais sossegado do que nunca estivera, porque me parecia certo que esses miseráveis nunca desembarcavam na ilha com o desígnio de nela fazerem algum saque, não tendo necessidade de alí procurar alguma coisa, pensamento no qual estavam talvez confirmados pelas carreiras que podiam ter feito nas florestas. Passara já dezoito anos sem encontrar ninguém, e podia esperar passar ainda outros tantos com a mesma felicidade, contanto que não me descobrisse eu próprio, o que não era de modo algum a minha intenção a não ser que achasse ocasião de travar conhecimento com uma melhor espécie de homens do que canibais. Contudo o horror que me ficou do seu brutal costume lançou-me numa espécie de melancolia que me teve durante dois anos encerrado nos meus “próprios domínios”, quero dizer com isto “o meu palácio, a minha cabana, e o meu novo recinto nos bosques”; não ia a este último lugar, que era a residência das minhas cabras, senão quando absolutamente necessário. Não cuidava também em ir examinar o estado do meu barco, e resolvi antes construir um outro; porque dar a volta ao rio com o antigo, afim de o aproximar da minha habitação, não devia pensar nisso, pois que era o verdadeiro meio de encontrar no mar esses abomináveis selvagens e de lhes cair nas mãos.
Enfim, o tempo e a certeza em que estava de que não corria risco algum de ser descoberto estabeleceram-me pouco a pouco no meu modo de viver ordinário, a não ser o estar eu sempre de olho à mira mais do que de antes, e que não disparava a minha espingarda com medo de não excitar a curiosidade dos selvagens, se por acaso se achassem na ilha. Era por consequência uma grande felicidade para mim o ter-me fornecido dum rebanho de cabras domesticadas, e de não sêr constrangido a ir á caça das cabras selvagens. Se apanhava algumas de vez em quando, era por meio de redes e armadilhas. Nunca saía contudo sem a minha espingarda, e como eu salvara três pistolas do navio, tinha sempre duas pelo menos que eu trazia ao meu cinto de pele de cabra.
Ajuntava-lhe ainda uma das minhas grandes facas que afiara. Imagina-se facilmente que nas minhas saídas tinha ares temíveis, se acrescentarem à descrição que já fiz acima da minha figura, as duas pistolas e esse grande sabre que me pendia ao lado sem bainha. Desde então, considerando a minha condição tranquilamente, comecei a achá-la suportável. Ainda que poucas coisas me faltassem, notei contudo com tristeza que os meus terrores e os cuidados que tivera com a minha conservação tinham esmagado a minha sutileza na procura das coisas que me podiam ser úteis; estes receios tinham-me feito desprezar, entre outras uma feliz ideia que me ocupara outrora, a saber: secar uma parte do meu grão e torná-lo próprio para fazer cerveja. Este projeto parecia-me extravagante a mim mesmo, por causa do que me faltava para chegar ao meu fim; não possuía toneis para conservar a minha cerveja, e, como já o disse, empregara trabalho de muitos meses para construir um sem resultado; de mais a mais, não tinha lúpulo para a tornar suscetível de se conservar, levedura para a fazer fermentar, e caldeirão para a fazer ferver. Não obstante todos estes inconvenientes, estou persuadido que sem as apreensões que me tinham causado os selvagens teria empreendido essa fabricação, e talvez com resultado, pois eu raras vezes abandonava um projeto quando uma vez me entrara na cabeça e que começara a pôr mãos a ele.
Mas agora o meu espírito inventivo voltara-se todo para outro lado, e pensava noite e dia no meio de destruir alguns desses monstros no meio dos seus divertimentos sanguinários, e de salvar as suas vítimas, se fosse possível.
Um dia, distingui na praia uns seis barcos; os selvagens estavam já em terra e fora do alcance da minha vista. Sabia que vinham ordinariamente cinco ou seis em cada barco, e por consequência o seu número transtornava todos os meus projetos. Que possibilidade havia para um homem só de combater com uns trinta? Contudo, depois de ter estado irresoluto durante alguns momentos, preparei tudo para o combate: escutei atentamente se ouvia algum ruído; depois, deixando as minhas duas espingardas ao pé da escada, coloquei-me de maneira que a minha cabeça não excedia o alto da escada. Dali avistei, por meio da minha luneta, que eram trinta pelo menos, que tinham acendido lume para preparar o seu festim, e que dançavam em volta da fogueira com mil posturas e mil gestos extravagantes, segundo o costume do país.
Um momento depois, vi-os tirarem dum barco dois miseráveis para os fazerem em pedaços. Um dos dois caiu logo por terra, desancado, creio eu, por uma pancada de massa ou dum sabre de madeira; e sem demora, dois ou três desses carrascos se lançaram a ele, abriram-lhe o corpo e prepararam todos os pedaços para a sua infernal cozinha; enquanto que a outra vítima estava ali ao pé, esperando que chegasse a sua vez de ser imolado. Este desgraçado achando-se então um pouco em liberdade, a natureza inspirou-lhe alguma esperança de se salvar, e desatou a correr com toda a ligeireza imaginável, em linha reta para o meu lado, quero dizer para o lado da praia que se dirigia para a minha habitação.
Confesso que fiquei terrivelmente aterrado ao vê-lo enfiar por esse caminho, sobretudo porque esperava que todo o bando o perseguiria, e esperei vê-lo verificar o meu sonho procurando um asilo no meu bosque, sem ter ocasião de crer que o resto do meu sonho se verificaria, também, e que os selvagens ali o não achassem. Fiquei todavia no mesmo lugar, e sosseguei logo, ao ver que apenas três homens o perseguiam, e que ele ganhava consideravelmente terreno sobre eles, de maneira que devia escapar-lhes indubitavelmente se ele sustentasse essa carreira somente durante uma meia hora.
Havia na praia, entre ele e o meu castelo, uma pequena baía onde ele devia ser apanhado necessariamente, a não ser que a atravessasse a nado; mas quando ele ali chegou, não esteve com hesitações, e apesar da maré estar então muito cheia, deitou-se nela, galgou a outra margem nuns trinta impulsos, o máximo, e depois tornou a correr com a mesma força do que dantes. Quando os seus inimigos chegaram ao mesmo sitio, notei que apenas dois sabiam nadar; e que o terceiro, depois de se ter demorado um pouco na margem, voltava lentamente para o lugar do festim, o que não era felicidade pequena para aquele que fugia. Observei ainda que os dois que nadavam levavam a atravessar essa água o dobro do tempo que o seu prisioneiro gastara. Vi então que era esta uma ocasião favorável para arranjar um companheiro e um criado, e que eu era chamado evidentemente pelo céu para salvar a vida desse pobre infeliz. Nesta persuasão, desci precipitadamente do rochedo para pegar nas minhas espingardas, e subindo com o mesmo ardor, avancei para o mar; não tinha muito que andar e depressa me lancei entre os perseguidores e o perseguido, tratando de lhe fazer entender pelos meus gritos que parasse. Fiz-lhe ainda sinal com a mão; mas creio que ao princípio tinha tanto medo de mim como daqueles de quem fugia. Avancei contudo sobre eles a passos lentos, e em seguida, lançando-me bruscamente sobre o primeiro, derrubei-o com uma coronhada; antes queria desfazer-me deles desta maneira do que fazendo fogo sobre eles, pois receava ser ouvido pelos outros, apesar disso ser muito difícil a tão grande distância, e também impossível aos selvagens saber o que significava esse ruído desconhecido. O segundo, ao ver cair o seu camarada, para como assustado; continuo a ir direito a ele, ao aproximar-me, vejo-o armado de um arco, cuja flecha ele aponta; o que me obriga a antecipá-lo, e lanço-o por terra, morto ao primeiro tiro. Quanto ao pobre fugitivo, posto visse os seus dois inimigos fora de combate, estava tão aterrado com o fogo e com o ruído que ouvira, que parou e ficou imóvel no mesmo lugar, e eu vi no seu ar desvairado mais vontade de fugir imediatamente do que aproximar-se. Faço-lhe novamente sinal que viesse a ter comigo; dá alguns passos, depois para ainda e continua esse mesmo manejo durante alguns momentos. Imaginava ele sem duvida que ia ser preso outra vez, e ser morto como seus dois inimigos. Enfim, depois de lhe ter feito sinal pela terceira vez, com a maneira mais própria para o sossegar, aventurou-se a vir ter comigo, pondo-se de joelhos a cada dez ou doze passos para me testemunhar o seu reconhecimento. Durante todo esse tempo eu sorria-lhe o mais graciosamente possível. Finalmente, quando chegou ao pé de mim, deita-se-me aos pés, beija o chão, pega num de meus pés e põe-no na sua cabeça, para me fazer compreender sem dúvida que me jurava fidelidade e que me prestava homenagem na qualidade de meu escravo. Levantei-o, fazendo-lhe carícias para o animar cada vez mais; mas o negócio não estava ainda acabado; vi logo que o selvagem que eu fizera cair com uma coronhada não estava morto, e que apenas estava atordoado; fi-lo notar ao meu escravo que, em resposta, pronunciou algumas palavras que não entendi e que não deixaram contudo de me encantar, como sendo o primeiro som de uma voz humana que ouvia depois de vinte e cinco anos. Mas não era tempo ainda de me abandonar a esse prazer; o selvagem em questão recobrara já bastantes forças para se pôr em pé, e o terror recomeçou a aparecer no ar do meu escravo; todavia, como me viu com ar de descarregar a minha outra espingarda sobre esse desgraçado, fez-me entender por sinais, que desejava que eu lhe emprestasse o meu sabre, o que lhe concedi. Mal pegara nele, lança-se sobre o seu inimigo e corta-lhe a cabeça num só golpe, tão depressa e tão habilmente como poderia fazer o mais hábil carrasco de toda a Alemanha. Era contudo a primeira vez na sua vida que ele vira uma espada, a não ser que se queira dar esse nome aos sabres de madeira que são armas ordinárias desses povos. Contudo, soube depois que esses sabres são de uma madeira tão dura e tão pesada, que eles sabem tão bem aguçá-los, que de um só golpe fazem voar uma cabeça em cima dos ombros.
Depois de ter feito essa expedição, vem ter comigo aos saltos e às gargalhadas para celebrar seu triunfo; põe a meus pés o meu sabre e a cabeça do selvagem. O que o embaraçava extraordinariamente, era a maneira como eu matara o outro índio a tão grande distância, e, mostrando-mo, pediu-me por sinais licença para o ver de perto. Ao aproximar-se, a sua surpresa aumenta: observa-o, volta-o ora dum lado, ora doutro; examina a ferida que a bala fizera exatamente no peito, e, que não parecia ter sangrado muito, porque o sangue espalhara-se para dentro. Depois de ter parado muito tempo a considerá-lo, veio ter comigo com o arco e as flechas do morto, e ou resolvido a ir-me embora, ordeno-lhe que me siga, fazendo-lhe entender que receava que os selvagens fossem logo seguidos dum maior numero. Fez-me depois sinal de que ia enterrar os dois que nós tínhamos matado, com medo de que os seus Camaradas ao vêr esses corpos conseguissem descobrir-nos. Deixei-o fazer isso, e num instante tinha aberto duas covas na areia onde os enterrou a ambos. Tomada esta precaução, levei-o comigo, não para o meu palácio, mas para a gruta que eu tinha na ilha; o que desmentiu o meu sonho que designara o meu bosque para asilo do meu escravo. Foi nesta gruta que eu lhe dei pão, um cacho de uvas secas, e água de que ele precisava principalmente, por estar muito sequioso pela fadiga de tão longa e tão rude carreira. Fiz-lhe sinal para ir dormir, mostrando-lhe um monte de palha de arroz, com um cobertor que muitas vezes me servia de leito a mim mesmo.
Era um rapazola bem reforçado, de vinte e cinco ar anos pouco mais ou menos; era perfeitamente bem feito; todos os seus membros, sem serem muito grossos, anunciavam um homem hábil e robusto; o seu ar másculo não apresentava sintoma algum de ferocidade: pelo contrário, via-se mas suas feições, sobretudo quando sorria, essa doçura e esse agrado que é particular aos europeus. Não tinha os cabelos semelhantes à lã frisada, mas sim negros e compridos; a sua fronte era grande e elevada, aos seus olhos brilhantes e cheios de fogo. A sua tez não era negra, mas muito acobreada; sem ter nada dessa desagradável cor estanhada dos habitantes do Brasil e da Virgínia, aproximava-se mais duma ligeira cor de azeitona, de que não é fácil dar uma ideia exata mas que o parecia ter alguma cousa de agradável. Tinha o rosto redondo e o nariz bem, feito a boca bonita, os lábios delgados, os dentes bem enfileirados e brancos como o marfim. Depois de ter mais dormitado que dormido durante meia hora, acorda e sai da gruta para vir ter comigo; porque neste intervalo eu tinha ido mungir as minhas cabras, que estavam num recinto ali perto. Veio correndo para mim, lança-se a meus pés com todos os sinais de uma alma verdadeiramente reconhecida, renova a cerimônia de me jurar fidelidade, pondo o meu pé sobre a sua cabeça. Eu compreendia a maior parte das coisas pelos seus gestos, e fiz quanto podia para lhe dar a conhecer que estava contente com ele.
Comecei em pouco tempo a falar-lhe, e ele aprendeu a falar comigo por seu turno; primeiro ensinei-lhe que ele se chamaria Sexta-feira, nome que lhe dei em memoria do dia em que caíra em meu poder. Ainda lhe ensinei a chamar-me seu Senhor, e a dizer a proposito sim e não. Em seguida dei-lhe leite num vaso de barro; bebi primeiro, e molhei nele o pão: tendo-me imitado, fez-me sinal que gostara. Fiquei com ele toda a noite seguinte na gruta; mas apenas o dia despontou, fiz-lhe compreender que me seguisse, e que eu lhe daria vestuário, o que pareceu regozijá-lo, porque estava completamente nu. Ao passar pelo lugar onde enterrara os dois selvagens, mostrou-mo assim como os sinais que ali deixara para o reconhecer, manifestando a ideia de os desenterrar e de os comer. Tomei ar de zangado; exprimi-lhe o horror que tinha de tal pensamento; e ordenei-lhe que se afastasse desses cadáveres, o que ele fez imediatamente. Levei-o em seguida ao alto da colina, para ver se os inimigos tinham partido, e com minha luneta não descobri senão o lugar onde tinham estado.