Tragicomédia em dois atos de Samuel Beckett. Paris, 1953 d.C.
Tradução de Fábio de Souza Andrade para a Cosac Naify.
Estrada no campo. Árvore. Entardecer.
Sentado sobre uma pedra, Estragon tenta tirar a bota. Faz força com as duas mãos, gemendo. Para, exausto; descansa, ofegante; recomeça. Mais uma vez.
Entra Vladimir.
ESTRAGON (Desistindo de novo) Nada a fazer.
VLADIMIR (aproximando-se a passos curtos e duros, joelhos afastados) Estou quase acreditando. (Fica imóvel) Fugi disso a vida toda. Dizia: Vladimir, seja razoável, você ainda não tentou de tudo. E retomava a luta. (Encolhe-se, pensando na luta. Vira-se para Estragon) Veja só! Você, aqui, de volta.
ESTRAGON: Estou?
VLADIMIR: Que bom que voltou. Pensei que tivesse partido para sempre.
ESTRAGON: Eu também.
VLADIMIR: Temos de comemorar, mas como? (Pensa) Levante que lhe dou um abraço. (Oferece a mão a Estragon)
ESTRAGON: (Irritado) Daqui a pouco, daqui a pouco.
Silêncio.
VLADIMIR: (magoado, com frieza) Pode-se saber onde o senhor passou a noite?
ESTRAGON: Numa vala.
VLADIMIR: (espantado) Numa vala! Onde?
ESTRAGON: (sem indicar) Logo ali.
VLADIMIR: E eles não bateram em você?
ESTRAGON: Bateram, mas não demais.
VLADIMIR: Os mesmos de sempre?
ESTRAGON: Os de sempre? não sei.
Silêncio.
VLADIMIR: Quando paro para pensar… estes anos todos… não fosse eu… o que teria sido de você…? (Com firmeza) Não seria mais do que um montinho de ossos, neste exato momento, sem sombra de dúvida.
ESTRAGON: (ofendido) E dai?
VLADIMIR: (melancólico) É demais para um homem só. (Pausa. Com vivacidade) Por outro lado, qual a vantagem de desanimar agora, é o que sempre digo. Deveríamos ter pensado nisso milênios atrás, em 1900.
ESTRAGON: Chega. Ajude aqui a tirar esta porcaria.
VLADIMIR: De mãos dadas, pular do alto da torre Eiffel, os primeiros da fila. Éramos gente distinta, naquele tempo. Agora é tarde demais. Não nos deixariam nem subir. (Estragon luta com a bota) O que você está fazendo?
ESTRAGON: Tirando minha bota. Nunca aconteceu com você?
VLADIMIR: Sapatos a gente tira todos os dias, cansei de explicar. Por que você não me houve?
ESTRAGON: (cansado) Me ajude!
VLADIMIR: Dói?
ESTRAGON: Dói! Ele quer saber se dói!
VLADIMIR: (colérico) Tirando você, ninguém sofre. Eu não conto. Queria ver se você estivesse no meu lugar, o que você diria.
ESTRAGON: Doeu?
VLADIMIR: Doeu! Ele quer saber se doeu!
ESTRAGON: (apontando com o indicador) De qualquer modo, você bem que poderia fechar os botões.
VLADIMIR: (inclinando-se) É verdade. (Abotoa-se) Nunca descuide das pequenas coisas.
ESTRAGON: O que você queria? Você sempre espera até o último minuto.
VLADIMIR: (sonhador) O último minuto… (Medita) Custa a chegar, mas será maravilhoso. Quem foi que disse isso?
ESTRAGON: Por que você não me ajuda?
VLADIMIR: Às vezes até sinto que está vindo. Então fico todo esquisito. (Vladimir tira o chapéu, examina o interior com o olhar, vasculha-o com a mão, sacode-o, torna a vesti-lo) Como se diz? Aliviado e ao mesmo tempo… (busca a palavra) apavorado. (Enfático) A-P-A-V-O-R-A-D-O. (Tira o chapéu mais uma vez, examina o interior com o olhar) Essa agora! (Bate no chapéu, como quem quer fazer que algo caia, examina o interior com olhar, torna a vesti-lo) Enfim… (Com esforço extremo, Estragon consegue tirar a bota. Examina seu interior com o olhar, vasculha-a com a mão, sacode-a, procura ver se algo caiu ao redor, no chão, não encontra nada, vasculha o interior com a mão mais uma vez, olhar ausente) E então?
ESTRAGON: Nada.
VLADIMIR: Deixe ver.
ESTRAGON: Não há nada para ver.
VLADIMIR: Tente calçar de novo.
ESTRAGON: (tendo examinado o pé) Vou deixar tomando um ar.
VLADIMIR: Eis o homem: jogando nos sapatos a culpa dos pés. (Tira o chapéu, examina o interior com o olhar, vasculha-o com a mão, sacode-o, bate nele, sopra no interior, torna a vesti-lo) Alarmante, isto está ficando alarmante. (Silêncio. Estragon mexe o pé, separando os dedos para que respirem melhor) Um dos ladrões foi salvo. (Pausa) É uma estatística razoável. (Pausa) Gogô?
ESTRAGON: O quê?
VLADIMIR: E se nos arrependêssemos?
ESTRAGON: Do quê?
VLADIMIR: Ahnnn… (Reflete) Não precisamos entrar em detalhes.
ESTRAGON: De termos nascido?
Vladimir rompe numa gargalhada, prontamente contida, levando as mãos ao púbis, rosto caído.
VLADIMIR: Nem rir ousamos mais.
ESTRAGON: Terrível privação.
VLADIMIR: Apenas sorrir. (Seu rosto abre-se num sorriso máximo que se fixa, dura um certo tempo, depois se desfaz repentinamente) Não é a mesma coisa. Enfim… (Pausa) Gogô?
ESTRAGON: (irritado) O quê?
VLADIMIR: Você já leu a Bíblia?
ESTRAGON: A Bíblia…? (Pensa) Devo ter passado os olhos.
VLADIMIR: Lembra dos Evangelhos?
ESTRAGON: Lembro dos mapas da Terra Santa. Coloridos. Bem bonitos. O mar Morto de um azul bem claro. Dava sede só de olhar. É para lá que vamos, eu dizia, é para lá que vamos na lua de mel. E como nadaremos. E como seremos felizes.
VLADIMIR: Você devia ter sido poeta.
ESTRAGON: E fui. (Indicando os farrapos com um gesto) Não está na cara?
Silêncio.
VLADIMIR: Onde é que eu estava? E seu pé, que tal?
ESTRAGON: Inchado.
VLADIMIR: Ah, é, os dois ladrões. Você se lembra da história?
ESTRAGON: Não.
VLADIMIR: Quer que eu conte?
ESTRAGON: Não.
VLADIMIR: Ajuda a passar o tempo. (Pausa) Dois ladrões, crucificados lado a lado com o nosso Salvador. Um deles…
ESTRAGON: Nosso quê?
VLADIMIR: Nosso Salvador. Dois ladrões. Dizem que um deles se salvou e outro… (Busca o contrário de “salvar-se”) se perdeu.
ESTRAGON: Se salvou do quê?
VLADIMIR: Do inferno.
ESTRAGON: Vou embora. (Ele não se move).
VLADIMIR: E no entanto… (Pausa) Como é que… não estou te enchendo, tô?
ESTRAGON: Não estou ouvindo.
VLADIMIR: Como é possível que, dos quatro evangelistas, só um fale em ladrão salvo? Todos os quatro estavam lá – ou por perto – e apenas um fala em ladrão salvo. (Pausa) Vamos lá, Gogô, minha deixa, não custa, uma vez em mil…
ESTRAGON: Estou ouvindo.
VLADIMIR: Um em quatro. Dos outros três, dois nem falam disso e o terceiro diz que eles o xingaram, os dois.
ESTRAGON: Quem?
VLADIMIR: O quê?
ESTRAGON: Que confusão! (Pausa) Xingaram quem?
VLADIMIR: O Salvador.
ESTRAGON: Por quê?
VLADIMIR: Porque não quis salvá-los.
ESTRAGON: Do inferno?
VLADIMIR: Não, tonto. Da morte.
ESTRAGON: E daí?
VLADIMIR: Então os dois devem ter ido pro inferno.
ESTRAGON: E então?
VLADIMIR: Mas um dos quatro diz que um foi salvo.
ESTRAGON: E daí? Não chegaram a um acordo e ponto.
VLADIMIR: Todos os quatro estavam lá. E só um fala em ladrão salvo. Por que acreditar nele e não nos outros?
ESTRAGON: Quem acredita nele?
VLADIMIR: Todo mundo. Foi a versão que vingou.
ESTRAGON: O povo é de uma burrice.
Levanta-se com esforço, vai mancando em direção à coxia esquerda, para, olha ao longe, mãos espalmadas sobre os olhos, dá a volta, vai em direção à coxia direita, olha ao longe. Vladimir acompanha-o com os olhos, depois vai apanhar a bota, examina o interior com o olhar, larga-a precipitadamente.
VLADIMIR: Pfuh. (Cospe no chão)
Estragon volta ao centro do palco, olha em direção ao fundo.
ESTRAGON: Lugar encantador. (Estragon caminha em direção à boca de cena, junto à plateia) Esplêndido espetáculo. (Volta-se para Vladimir) Vamos embora.
VLADIMIR: A gente não pode.
ESTRAGON: Por quê?
VLADIMIR: Estamos esperando Godot.
ESTRAGON: É mesmo. (Pausa) Tem certeza de que era aqui?
VLADIMIR: O quê?
ESTRAGON: Que era para esperar.
VLADIMIR: Ele disse: perto da árvore. (Olham para a árvore) Está vendo mais alguma coisa?
ESTRAGON: É o quê?
VLADIMIR: Um chorão, eu acho.
ESTRAGON: E as folhas?
VLADIMIR: Deve estar morto.
ESTRAGON: Chega de choro.
VLADIMIR: A menos que não seja época.
ESTRAGON: Para mim, parece mais um arbusto.
VLADIMIR: Um arbúsculo.
ESTRAGON: Um arbusto.
VLADIMIR: Um… (Recobra-se) O que você está querendo dizer? Que erramos de lugar?
ESTRAGON: Ele devia estar aqui.
VLADIMIR: Não deu certeza de que viria.
ESTRAGON: E se não vier?
VLADIMIR: Voltamos amanhã.
ESTRAGON: E depois de amanhã.
VLADIMIR: Talvez.
ESTRAGON: E assim por diante.
VLADIMIR: Ou seja…
ESTRAGON: Até que ele venha.
VLADIMIR: Você é implacável.
ESTRAGON: Já viemos ontem.
VLADIMIR: Ah, não, aí é que você se engana.
ESTRAGON: Então, fizemos o que, ontem?
VLADIMIR: Ontem? O que fizemos ontem?
ESTRAGON: É.
VLADIMIR: Pelo amor… (Bravo) Com você por perto, nada de certo.
ESTRAGON: Por mim, estávamos aqui.
VLADIMIR: (olha ao redor) o lugar parece familiar.
ESTRAGON: Não foi isso que eu disse.
VLADIMIR: Bom?
ESTRAGON: Dá na mesma.
VLADIMIR: Tudo igual… essa árvore… (voltando-se para a plateia)… esse brejão.
ESTRAGON: Tem certeza de que era hoje à tarde.
VLADIMIR: O quê?
ESTRAGON: Que era para esperar.
VLADIMIR: Ele disse sábado. (Pausa) Acho.
ESTRAGON: Depois do batente.
VLADIMIR: Devo ter anotado. (Procura nos bolsos, repletos de porcarias de todo tipo)
ESTRAGON: Mas que sábado? E hoje é sábado? Não seria domingo? Ou segunda? Ou sexta?
VLADIMIR: (olhando pressuroso ao redor, como se a data pudesse estar inscrita na paisagem) Não é possível.
ESTRAGON: Ou quinta?
VLADIMIR: O que vamos fazer?
ESTRAGON: Se ontem ele esteve aqui à toa, hoje com certeza não volta.
VLADIMIR: Mas você disse que ontem viemos nós.
ESTRAGON: Posso estar enganado. (Pausa) E se ficássemos calados um instante, tudo bem?
VLADIMIR: (baixo) Tudo bem. (Estragon senta-se de novo. Vladimir zanza agitado pelo palco, parando ocasionalmente para investigar o horizonte. Estragon adormece. Vladimir para à frente de Estragon) Gogô… (Silêncio) Gogô?
Estragon acorda sobressaltado.
ESTRAGON: (dando-se conta do horror da situação) Estava dormindo. (Em tom de recriminação) Por que você nunca me deixa dormir?
VLADIMIR: Estava me sentindo só.
ESTRAGON: Tive um sonho.
VLADIMIR: Não me conte!
ESTRAGON: Sonhei que…
VLADIMIR: NÃO ME CONTE!
ESTRAGON: (Estragon faz um gesto indicando o universo) Esse Universo basta para você? (Silêncio) Nada gentil, Didi. Para quem você quer que eu conte meus pesadelos particulares. Você sabe muito bem que não suporto isso.
VLADIMIR: Que eles continuem particulares. Você sabe muito bem que não suporto isso.
ESTRAGON: (com frieza) De vez em quando me pergunto se não seria melhor nos separarmos.
VLADIMIR: Você não iria longe.
ESTRAGON: O que, de fato, seria um contratempo e tanto. (Pausa) Não é mesmo, Didi? Um contratempo e tanto. Considerando a beleza do caminho. (Pausa) E a bondade dos viajantes. (Pausa. Com brandura) Não é, Didi?
VLADIMIR: Calma.
ESTRAGON: (com volúpia) Calma… calma… (Sonhador) Os ingleses dizem caaaalma. É uma gente caaaalma. (Pausa) Você conhece a piada do inglês no bordel?
VLADIMIR: Conheço.
ESTRAGON: Então me conte.
VLADIMIR: Chega.
ESTRAGON: Um inglês de porre chega ao bordel. A cafetina pergunta se ele prefere loira, morena ou ruiva. Continue.
VLADIMIR: Chega!
Vladimir sai. Estragon levanta-se e o segue até o limite do palco. Mímica de Estragon análoga aos gestos de torcedores de boxe incentivando um pugilista. Vladimir volta, passa à frente de Estragon, atravessa o palco, olhos baixos. Estragon ensaia alguns passos em sua direção, para.
ESTRAGON: (com doçura) Queria falar comigo? (Vladimir não responde. Estragon dá um passo na sua direção) Você tinha alguma coisa para me dizer? (Silêncio. Outro passo adiante) Diga, Didi.
VLADIMIR: (sem se voltar) Não tenho nada a dizer.
ESTRAGON: (passo adiante) Ficou bravo? (Silêncio. Passo adiante) Desculpe! (Silêncio. Passo adiante. Toca-lhe o ombro) Deixe disso, Didi (Silêncio) Aperte aqui! (Vladimir vira-se) Um abraço! (Vladimir vacila) Não seja teimoso! (Vladimir cede. Abraçam-se. Estragon recua) Você fede a alho!
VLADIMIR: É bom para os rins. (Silêncio. Estragon olha atentamente para a árvore) E o que fazemos agora?
ESTRAGON: Esperamos.
VLADIMIR: Sei, mas enquanto esperamos?
ESTRAGON: E se a gente se enforcasse?
VLADIMIR: Um jeito de ter uma ereção?
ESTRAGON: (excitado) Uma ereção?
VLADIMIR: Com tudo que se segue. Onde cair, a mandrágora brota. É por isso que a raiz grita, quando arrancada. Você não sabia?
ESTRAGON: À forca sem demora!
VLADIMIR: Num galho? (Aproximam-se da árvore, olhar atento) Não dá para confiar.
ESTRAGON: Podemos tentar.
VLADIMIR: Tente.
ESTRAGON: Depois de você.
VLADIMIR: Nada disso, você primeiro.
ESTRAGON: Por quê?
VLADIMIR: Você é mais leve.
ESTRAGON: Isso mesmo.
VLADIMIR: Não entendo.
ESTRAGON: Pense um pouco, use a cabeça.
Vladimir usa a cabeça.
VLADIMIR: (finalmente) Não entendo.
ESTRAGON: Vou explicar. (Pensa) O galho… o galho… (Colérico) Tente entender!
VLADIMIR: Você é minha última esperança.
ESTRAGON: (com esforço) Gogô leve, galho não quebra, Gogô morto. Didi pesado, galho quebra, Didi sozinho. (Pausa) Enquanto que… (Busca a palavra certa)
VLADIMIR: Não tinha pensado nisto.
ESTRAGON: (achando) Quem pode o mais, pode o menos.
VLADIMIR: Mas será que eu sou mais pesado?
ESTRAGON: Você disse. Eu não sei nada. Há uma chance em duas. Mais ou menos.
VLADIMIR: Então, que fazemos?
ESTRAGON: Nada. É o mais prudente.
VLADIMIR: Esperar para ver o que ele nos diz.
ESTRAGON: Quem?
VLADIMIR: Godot.
ESTRAGON: Isso!
VLADIMIR: Vamos esperar até estarmos completamente seguros.
ESTRAGON: Por outro lado, talvez fosse melhor malhar o ferro antes que esfrie.
VLADIMIR: Estou curioso para saber o que ele vai propor. Sem compromisso.
ESTRAGON: O que era mesmo que queríamos dele?
VLADIMIR: Você não estava junto?
ESTRAGON: Não prestei muita atenção.
VLADIMIR: Ah, nada de muito específico.
ESTRAGON: Um tipo de prece.
VLADIMIR: Isso!
ESTRAGON: Uma vaga súplica.
VLADIMIR: Exatamente!
ESTRAGON: E o que ele respondeu?
VLADIMIR: Que ia ver.
ESTRAGON: Que não podia prometer nada.
VLADIMIR: Que precisava pensar mais.
ESTRAGON: Dormir sobre o assunto.
VLADIMIR: Consultar a família.
ESTRAGON: Os amigos
VLADIMIR: Os agentes.
ESTRAGON: Os correspondentes.
VLADIMIR: Os registros.
ESTRAGON: O saldo do banco.
VLADIMIR: Antes de se pronunciar.
ESTRAGON: Nada mais normal.
VLADIMIR: Não é mesmo?
ESTRAGON: A mim, parece.
VLADIMIR: Também a mim.
Silêncio.
ESTRAGON: (ansioso) E a gente?
VLADIMIR: Como?
ESTRAGON: Eu disse: e a gente?
VLADIMIR: Não entendo.
ESTRAGON: Qual é o nosso papel nisso tudo?
VLADIMIR: Papel?
ESTRAGON: Não se apresse.
VLADIMIR: Qual é o nosso papel? O de suplicantes.
ESTRAGON: É tão ruim assim?
VLADIMIR: O senhor tem mais alguma exigência a fazer?
ESTRAGON: E os nossos direitos? Evaporaram?
Riso de Vladimir, abruptamente abortado, como antes. Mesma rotina, menos o sorriso.
VLADIMIR: Você me faria rir, se não fosse proibido.
ESTRAGON: Nós os perdemos?
VLADIMIR: (nitidamente) acabamos com eles.
Silêncio. Permanecem imóveis, braços pendentes, cabeças caídas, joelhos arqueados.
ESTRAGON: (com fraqueza) Não estamos amarrados? (Pausa) Estamos?
VLADIMIR: (levantando a mão) Escute!
Escutam, grotescamente estáticos.
ESTRAGON: Não estou ouvindo nada.
VLADIMIR: Psss! (Escutam. Estragon perde o equilíbrio, quase cai. Agarra o braço de Vladimir, que balança. Escutam, encostados um ao outro, olhos nos olhos) Nem eu.
Suspiros de alívio. Distensão. Separam-se.
ESTRAGON: Você me assustou.
VLADIMIR: Pensei que fosse ele.
ESTRAGON: Quem?
VLADIMIR: Godot.
ESTRAGON: Pfuh! O vento nos caniços.
VLADIMIR: Podia jurar que eram gritos.
ESTRAGON: E por que ele gritaria?
VLADIMIR: Com o cavalo.
Silêncio.
ESTRAGON: Vamos embora.
VLADIMIR: Para onde? (Pausa) Pode ser que hoje à noite durmamos na casa dele, aquecidos, secos, de barriga cheia, sobre a palha. Vale a pena esperar, não vale?
ESTRAGON: Não a noite inteira.
VLADIMIR: Ainda é dia.
Silêncio.
ESTRAGON: Estou com fome.
VLADIMIR: Quer uma cenoura?
ESTRAGON: Não tem outra coisa?
VLADIMIR: Talvez eu tenha uns nabos.
ESTRAGON: Me dê uma cenoura. (Vladimir vasculha os bolsos, tira um nabo e o entrega a Estragon) Obrigado. (Dá uma mordida. Reclama) É um nabo!
VLADIMIR: Ah, desculpe! Podia jurar que era uma cenoura. (Vasculha os bolsos mais uma vez, só encontra nabos) Aqui só ficaram nabos. (Continua procurando) Você deve ter comido a última. (Procura) Espere, olhe aqui. (Tira por fim uma cenoura e a entrega a Estragon) Pronto, meu caro. (Estragon seca a cenoura na manga e começa a comer) Me devolva o nabo. (Estragon devolve o nabo) Faça durar, não sobrou mais.
ESTRAGON: (mastigando) Eu fiz uma pergunta.
VLADIMIR: Ah.
ESTRAGON: Você me respondeu?
VLADIMIR: Que tal a cenoura?
ESTRAGON: Adocicada.
VLADIMIR: Melhor assim, melhor assim. (Pausa) O que você queria saber?
ESTRAGON: Não lembro mais. (Mastiga) É isso que me aborrece. (Contempla a cenoura com admiração, girando-a no ar com a ponta dos dedos) Uma delícia, a sua cenoura. (Chupa meditativo uma ponta da cenoura) Espere, estou lembrando. (Arranca um pedaço)
VLADIMIR: E então?
ESTRAGON: (de boca cheia, distraído) Não estamos amarrados?
VLADIMIR: Não entendi uma palavra.
ESTRAGON: (mastiga, engole) Perguntei se estamos amarrados.
VLADIMIR: Amarrados?
ESTRAGON: A-mar-ra-dos.
VLADIMIR: Amarrados, como?
ESTRAGON: Pés e mãos.
VLADIMIR: Mas a quem? Por quem?
ESTRAGON: Ao seu homem.
VLADIMIR: A Godot? Amarrados a Godot? Que ideia! De maneira nenhuma! (Pausa) Não… ainda.
ESTRAGON: O nome dele é Godot?
VLADIMIR: Acho que sim.
ESTRAGON: Veja só! (Ergue pelo talo o que sobrou da cenoura e faz girar o resto diante dos olhos) Que engraçado, quanto mais vai, pior fica.
VLADIMIR: Comigo é o contrário.
ESTRAGON: O que quer dizer isto?
VLADIMIR: Vou me acostumando aos poucos.
ESTRAGON: (depois de pensar bastante) E isso é o contrário?
VLADIMIR: Questão de temperamento.
ESTRAGON: De caráter.
VLADIMIR: Não tem jeito.
ESTRAGON: Não adianta se debater.
VLADIMIR: Somos o que somos.
ESTRAGON: Não adiante se contorcer.
VLADIMIR: Pau que nasce torto…
ESTRAGON: Nada a fazer. (Oferece o resto da cenoura a Vladimir) Quer matar?
Um grito terrível ressoa, bem próximo. Estragon larga a cenoura. Ficam paralisados, depois correm para a coxia. Estragon para a meio caminho, retorna, pega a cenoura, enfia-a no bolso, precipita-se em direção a Vladimir que o espera, para de novo, retorna, pega a bota, depois corre para junto de Vladimir. Abraçados, cabeças nos ombros, fugindo da ameaça, esperam.