Carta ao Papa Leão

De Martin Lutero. Wittenberg, 1520 d.C.

 

Em meio aos monstruosos males desta geração contra os quais já há três anos movo guerra, sou por vezes forçado a lembrar-me de ti, beatíssimo pai Leão. Em verdade, uma vez que tu sozinho és por toda parte considerado a causa do meu grito de guerra, eu jamais deixo de me recordar de ti; e embora eu tenha sido compelido, pela infundada ira de teus ímpios bajuladores contra mim, a apelar à vossa sede por um futuro concílio – fazendo pouco caso dos decretos fúteis de teus predecessores Pio e Júlio, que em sua estúpida tirania proibiram tal evento –, ainda assim, jamais estive eu tão alienado de meus sentimentos por vossa Santidade a ponto de não ter, com toda a minha força, em orações diligentes e clamores a Deus, procurado todos os melhores dons para ti e para a tua sede. Mas àqueles que tentaram me aterrorizar com a majestade do teu nome e da tua autoridade, a eles eu passei a desprezar e ao fim triunfei sobre todos. Uma coisa, porém, resta que não me permito menosprezar, e esta é a razão desta nova carta para vossa Santidade: a saber, que eu me vejo recriminado – e isto é imputado a mim como uma grande ofensa –, porque na minha impulsividade, dizem, eu não teria poupado nem mesmo a tua pessoa.

(…)

Assim, eu te rogo, excelentíssimo Leão, que aceites minha defesa feita nesta carta, e convença-te de que jamais eu pensei qualquer mal a respeito da tua pessoa; e também de que sou um homem que deseja que a benção eterna desça sobre os teus, e que não tenho nenhuma disputa com qualquer homem sobre sua moral pessoal, mas somente sobre o Verbo da Verdade. Em todas as outras coisas estou disposto a fazer concessões a qualquer um, mas eu não posso, nem quero, nem vou esquecer o Verbo. Quem pensa outra coisa a meu respeito, ou tomou minhas palavras em outro sentido ou não está pensando direito, e portanto não as tomou na verdade.

A tua sede, contudo, que é chamada a Cúria de Roma, e que nem o senhor nem qualquer um de teus homens pode negar ser mais corrupta do que qualquer Babilônia ou Sodoma, e, creio eu, de uma impiedade deveras desgraçada, desesperada e desesperançada, ela sim eu realmente abomino, e sinto como indigno que o povo de Cristo seja trapaceado sob teu nome e a pretexto da Igreja de Roma; e assim eu resisti, e resistirei até quando o espírito da fé viver em mim. Não que eu esteja lutando por impossibilidades, ou esperando que de meus labores sozinhos, contra a furiosa oposição de tantos bajuladores, qualquer bem possa ser feito nesta tumultuosa Babilônia; mas eu me sinto, sim, em débito para com meus irmãos, e me sinto obrigado a cuidar deles, a fim de que poucos sejam arruinados pelas pragas de Roma, ou de que ao menos a sua ruina não seja tão completa. Já há muitos anos que nada vem ao mundo de Roma – como tu bem sabes – a não ser o desperdício devastador de bens, de corpos e de almas, e os piores exemplos de todas as piores coisas. Estas coisas são mais claras que a luz para todos os homens; e a Igreja de Roma, outrora a mais santa de todas as Igrejas, se transformou no mais degenerado covil de bandidos, no mais dissoluto de todos os bordéis, no próprio reino do pecado, da morte e do inferno; tanto que sequer o Anticristo, se viesse a chegar, não saberia elaborar nada que pudesse adicionar à sua perversidade.

Enquanto isto tu, Leão, estás sentando como um cordeiro em meio aos lobos, como Daniel na cova dos leões, e, com Ezequiel, tu vives entre escorpiões. Que oposição poderás tu sozinho mover contra estes monstruosos males? Tomes para ti três ou quatro dentre os melhores e mais bem formados cardeais. Que são eles entre tantos? Todos vós morreríeis envenenados antes que fôsseis capazes de decidir por um remédio. Está tudo acabado para a Cúria de Roma; a ira de Deus desabou sobre ela até a raiz. Ela detesta os concílios; ela tem pavor de ser reformada; é incapaz de refrear a demência da sua impiedade; ela cumpre a sentença decretada sobre sua mãe, de quem foi dito, “Nós quisemos curar a Babilônia, mas ela não se cura; que seja abandonada”. Era teu dever e de teus cardeais aplicar um remédio a estes males, mas esta gota ri das mãos do médico, e a carroça não obedece as rédeas. Sob a influência deste sentimento, eu sempre lamentei que tu, excelentíssimo Leão, que és digno de uma geração melhor, tenhas sido feito pontífice na nossa. Pois a Cúria romana não é digna de ti e daqueles como tu, mas sim do próprio Satanás, que a bem da verdade é mais do que tu o soberano desta Babilônia.

Ah, quem dera deixasses de lado a glória que os teus mais desgraçados inimigos declaram ser tua, e vivesses antes do ofício de um padre de paróquia ou de tua herança paterna! Mas numa tal glória ninguém é digno de glória, exceto a raça do Iscariote, os filhos da perdição. Pois que mais se passa na tua cúria, Leão, a não ser que quanto mais sórdido e execrável é o sujeito, mais prosperamente ele pode utilizar o teu nome e a tua autoridade para arruinar as propriedades e as almas dos homens, para multiplicar seus crimes, para violentar a fé, a verdade e toda a Igreja de Deus? Oh, Leão!, a ti, que na realidade és o maior dos desventurados, sentado sobre o mais periclitante dos tronos, a ti eu digo a verdade, porque te quero bem; pois se São Bernardo sentiu compaixão pelo Papa Anastásio numa época em que a sé romana, ainda que já então venal, era ao menos governada com mais esperança do que hoje, por que então haveríamos de lamentar agora por aquela a quem tanta corrupção e ruína foram acrescentadas em trezentos anos?

Acaso não é verdade que não há coisa sob os vastos céus mais corrupta, mais pestilenta, mais detestável que a Cúria de Roma? Ela ultrapassa incomparavelmente a impiedade dos turcos, tanto que a verdade é que ela, outrora a própria porta do paraíso, é agora uma espécie de boca aberta do inferno, e tão escancarada que, mesmo sob a iminente ira de Deus, não pode ser fechada, só restando um caminho possível para os pobres de nós, simples fiéis: alertar e resgatar uns poucos, se pudermos, deste abismo romano.

Vede, Leão, meu pai, com que propósito e sob qual princípio eu investi contra esta sede da pestilência. Estou longe de ter experimentado qualquer cólera contra a tua pessoa e até ansiei por ganhar teu favor e auxiliar a tua prosperidade, arremetendo ativa e vigorosamente contra este teu cárcere, antes, este teu inferno. Pois seja lá qual for o esforço que qualquer inteligência possa empregar contra a confusão desta Cúria vil, isto só pode ser benéfico para ti e para tua felicidade, e para muitos outros como tu. Aqueles que a agridem estão cumprindo o teu dever; aqueles que de todas as maneiras a abominam estão glorificando Cristo; em resumo, eles são cristãos que não são romanos.

Mas para dizer ainda mais, sequer isto jamais entrou em meu coração: a saber, detratar a Cúria de Roma ou mesmo polemizar a seu respeito. Pois, vendo que todos os remédios para a sua saúde eram desesperados, eu a olhei com repugnância, e, entregando a ela minha declaração de divórcio, disse-lhe, “Quem é injusto, que seja ainda mais; e quem é imundo, seja ainda mais”, desistindo no mesmo instante do estudo pacífico e tranquilo da literatura sagrada, para que assim eu pudesse ser de alguma utilidade para os irmãos junto a mim.

(…)

Portanto, Leão, meu Pai, está atento ao canto daquelas sereias que te querem não um simples homem, mas em parte um deus, tal que possas ordenar e exigir o que bem entenderes. Isto não acontecerá, e tu não vencerás. Tu, que és o servo dos servos, e mais do que qualquer outro homem estás na mais lamentável e temerária das posições. Que estes homens não te ludibriem, eles que te proclamam o suserano de todo o mundo; que não permitem a ninguém ser cristão sem a tua autoridade; que balbuciam sobre teres poder sobre o céu, o inferno e o purgatório. Estes homens são teus inimigos e estão buscando a tua alma para destruí-la; como diz Isaías, “Meu povo, aqueles que te chamam santo estão te enganando”. Os que te solevam acima dos concílios e da Igreja universal estão em erro; os que atribuem somente a ti o direito de interpretar a Escritura estão em erro. Todos estes homens estão apenas tentando despejar suas próprias iniquidades na Igreja sob teu nome e, ai de nós!, Satanás conquistou muita coisa através deles no tempo de teus predecessores.

Em resumo, não te fies de ninguém que te exalta, mas naqueles que te humilham. Pois este é o juízo de Deus: “Ele abateu o poderoso de seu trono, e exaltou os humildes”. Vê quão diferente era Cristo dos seus sucessores, embora todos tenham se acreditado seus vicários. A bem da verdade, eu temo que muitos e muitos deles tenham sido seus vicários num sentido bastante grave, pois um vicário representa um príncipe que está ausente. Ora, se um pontífice reina enquanto Cristo está ausente e não habita em seu coração, que outra coisa ele é senão o vicário de Cristo? E se é assim, que é esta Igreja senão uma multidão sem Cristo? Quem é verdadeiramente este vicário senão o Anticristo e um ídolo? Com quanto mais razão não falaram os apóstolos ao se chamarem a si mesmos servos de um Cristo presente e não vicários de um ausente!

Talvez eu esteja sendo vergonhosamente petulante dando-me ares de ensinar a uma tão grande cabeça, pela qual todos os homens deveriam ser ensinados, e da qual, como estes canalhas junto a ti alardeiam, os tronos dos juízes deveriam receber suas sentenças; mas eu imito São Bernardo em seu livro das Considerações dirigido ao Papa Eugênio, um livro que deveria ser conhecido de cor por todo pontífice. Faço-o não por um desejo qualquer de ensinar, mas por dever, por aquela simples e fiel solicitude que nos ensina a temer por aquilo que parece seguro aos nossos próximos, e não permite considerações sobre honrarias ou desonras, ocupando-se somente dos riscos e proveitos para os outros. Pois uma vez que sei, Santidade, que és levado e agitado pelas ondas em Roma, de tal modo que as profundezas do mar te arremetem com infinitos perigos, e que estás trabalhando sob condições tão miseráveis a ponto de necessitar da mais mínima colaboração do menor dos irmãos, não me parece que ajo inadequadamente se ignoro a tua majestade enquanto eu não tiver consumado o dever da caridade. Não pretendo adulá-lo num momento tão grave e perigoso; e se nisso não vês que sou teu amigo e teu mais fiel e dedicado servo, há Alguém que vê e julga.

Finalmente, a fim de não me aproximar de mãos vazias, Pai santíssimo, eu te envio um pequeno tratado Sobre a Liberdade Cristã, dedicado ao teu nome, como um bom augúrio rumo ao estabelecimento da paz e da salutar esperança. Por ele hás de perceber a quais tarefas eu teria preferido me dedicar, com muito mais proveito, se assim me fosse permitido, ou se me tivesse sido permitido por teus pérfidos bajuladores. É coisa pouca quando visto de fora, mas, salvo engano, verás, se compreenderes seu sentido, que é um sumário da vida cristã coligido num compasso breve. Eu, na minha pobreza, não tenho outra coisa com que te presentear, nem tu precisas de nada mais a não ser enriquecer-te com dons espirituais. Eu me recomendo à vossa Paternidade e à vossa Santidade; que o Senhor Jesus Cristo as preserve para sempre. Amém.