O fim do cavalheirismo. Edmund Burke, Londres, 1790 d.C.
Em 1790, a pedido de seu amigo Monsieur de Menonville, um jovem deputado da nobreza na Assembleia Nacional francesa, Edmund Burke, membro da Casa dos Comuns no Parlamento britânico, escreve em uma correspondência longa e torrencial suas Reflexões sobre a Revolução na França, logo publicadas como livro. Neste momento, o Rei e a Rainha da França estavam confinados em prisão domiciliar no Palácio das Tuileries em Paris, após terem sido detidos em Versalhes alguns meses após queda da Bastilha e a abolição dos direitos feudais. Apesar das tentativas de Maria Antonieta de permanecer afastada do olhar público, ela foi falsamente acusada, entre outras coisas, de ter um caso com o seu guardião, o General Lafayette, assim como com a baronesa “Lady Sophie Farrell”, célebre à época por seu lesbianismo, e, finalmente, durante seu julgamento, de praticar incesto com seu filho.
Faz agora dezesseis ou dezessete anos desde que eu vi a Rainha da França, então dauphine, em Versalhes; e certamente jamais brilhou nesta órbita, que ela mal parecia tocar, uma visão mais deleitável. Eu a vi logo acima do horizonte, decorando e celebrando a esfera elevada para a qual ela acabara de se mover, cintilando como a estrela da manhã plena de vida e esplendor e alegria.
Oh, que revolução! e que coração devo ter, para contemplar sem emoção tal elevação e tal queda! Eu sequer podia sonhar, quando ela acrescentava títulos de veneração àqueles do entusiástico, distante, respeitoso amor, que ela alguma vez seria obrigada a portar o afiado antídoto contra a desgraça oculta naquele ventre; Eu sequer poderia sonhar que eu viveria para ver tais desastres precipitados sobre ela, em uma nação de homens galantes, em uma nação de homens de honra, e de cavalheiros! Eu pensaria que dez mil espadas saltariam de suas bainhas, para vingar um simples olhar que a ameaçasse com um insulto! Mas a era do cavalheirismo se foi; a dos sofistas, economistas, e calculadores venceu, e a glória da Europa está extinta para sempre. Nunca, nunca mais, olharemos aquela generosa lealdade ao ranque e ao sexo, aquela orgulhosa submissão, aquela digna obediência, aquela subordinação do coração, que manteve viva, mesmo na própria servidão, o espírito de uma liberdade exaltada! A graça gratuita da vida, a defesa barata das nações, a nutrição de sentimentos másculos e empreendimentos heroicos se foi. Se foi, aquela sensibilidade de princípio, aquela castidade de honra, que sentia uma mancha como uma chaga, que inspirava a coragem enquanto mitigava a ferocidade, que enobrecia tudo aquilo que tocava, e sob a qual o vício mesmo perdeu o seu mal, perdendo toda a sua grosseria.
Este sistema mesclado de opinião e sentimento teve sua origem na antiga cavalaria; e o princípio, ainda que variado em sua aparência pelo estado variante dos afazeres humanos, subsistiu e influenciou através de uma longa sucessão de gerações até mesmo o tempo no qual vivemos. Se vier alguma vez a ser totalmente extinto, temo que a perda será grande. É isto que deu o seu caráter à Europa moderna. É isto que a distinguiu sob todas as suas formas de governo, e a distinguiu para a sua vantagem, dos estados da Ásia e possivelmente daqueles estados que floresceram nos mais brilhantes períodos do mundo antigo. Era isso que, sem confundir os ranques, produziu uma nobre igualdade e a estendeu a todas as gradações da vida social. Foi essa opinião que mitigou reis em companheiros e ergueu homens privados para serem parceiros de reis. Sem força ou oposição, subjugou a ferocidade do orgulho e do poder, obrigou os soberanos a se submeter ao colarinho suave da estima social, compeliu a rude autoridade a servir à elegância, e deu uma dominação, conquistadora de leis, a ser subjugada às maneiras.
Mas agora tudo mudará. Todas as agradáveis ilusões que fizeram o poder gentil e a obediência liberal, que harmonizava os diferentes tons da vida, e que, por uma assimilação temperada, incorporou à política os sentimentos que embelezam e amaciam a sociedade privada, devem ser dissolvidos por esta nova conquista do império de luz e razão. Todas as roupagens decentes da vida estão para ser rudemente rasgadas. Todas as ideias superpostas, fornecidas do guarda-roupa de uma imaginação moral, que o coração possui e que o entendimento ratifica como necessárias para cobrir os defeitos de nossa nua, trêmula natureza, e para elevá-la à dignidade em nossa estima, estão para ser explodidas como ridículas, absurdas e ultrapassadas.
Neste esquema de coisas, um rei não passa de um homem, uma rainha não passa de uma mulher; uma mulher não passa de um animal, e um animal não da mais alta ordem. Toda homenagem prestada em geral ao sexo enquanto tal, e sem perspectivas distintas, deve ser vista como romance e loucura. Regicídio, e parricídio, e sacrilégio são todos nada mais do que ficções da superstição, corrompendo a jurisprudência ao destruir sua simplicidade. O assassinato de um rei, ou de uma rainha, ou de um bispo, ou de um pai são somente homicídio comum; e se o povo é por algum acaso ou de algum modo beneficiado, um tipo de homicídio deveras perdoável, e no qual não deveríamos empregar um escrutínio muito severo.
A última carta de Marie-Antoinette. Paris, 1793 d.C.
Em 1793, após ser capturada em Varennes numa tentativa de fuga, Maria Antonieta é condenada pelo Tribunal revolucionário, como seu marido, por traição. No dia 16 de outubro, em meio aos gritos de uma multidão enfurecida, ela sobe ao cadafalso com calma e dignidade, costas eretas, cabeça erguida, sem sinal de medo, em contraste a muitos dos que a acusaram e que logo após seriam guilhotinados aos gritos e prantos. Do seu cárcere ela escreve esta derradeira mensagem à cunhada, Madame Elizabeth da França. A carta nunca chegaria às mãos da destinatária, também ela executada logo depois.
É a vós, minha irmã que eu escrevo pela última vez.
Eu acabo de ser condenada não a uma morte vergonhosa – ela só o é para os criminosos – mas a me reunir ao vosso irmão. Como ele inocente, eu espero mostrar a mesma firmeza que ele nos seus últimos momentos. Eu estou calma como se está quando a consciência não reprova nada; eu sinto uma profunda amargura por abandonar meus pobres filhos. Vós sabeis que eu não existia senão para eles e para vós, minha boa e terna irmã. Vós que tendes por vossa amizade sacrificado tudo para estar conosco, em que posição eu vos deixo! Eu soube pelo próprio pleiteante do processo que minha filha foi separada de vós. Ai! A pobre menina, eu não ouso lhe escrever, ela não receberá minha carta. Eu não sei sequer se esta vos chegará. Recebei para eles dois aqui minha benção. Eu espero que um dia, quando eles forem maiores, eles possam se reunir convosco e gozar totalmente em vossos ternos carinhos. Que eles pensem ambos naquilo que jamais cessei de lhes inspirar, que os princípios e a execução exata de seus deveres, são a primeira base da vida, que sua amizade e sua confiança mútuas farão nela a felicidade; que minha filha sinta que na idade que ela tem, ela deve sempre ajudar seu irmão, pelos conselhos que a experiência que ela terá a mais do que ele e sua amizade poderão lhe inspirar; que meu filho por sua vez, renda à sua irmã todos os cuidados, todos os serviços que a amizade pode inspirar; que eles sintam enfim todos os dois que em qualquer posição que eles possam se encontrar, eles não serão jamais verdadeiramente felizes salvo por sua união; que eles tomem o nosso exemplo. Quanto em nossas misérias, nossa amizade nos deu de consolação, e na felicidade gozamos duplamente quando podemos dividi-la com um amigo, e onde encontrar mais terno, mais caro do que em sua própria família? Que meu filho não esqueça jamais as últimas palavras de seu pai que eu lhe repito expressamente: que ele não busque jamais vingar nossa morte. (…)
Resta-me vos confiar ainda meus últimos pensamentos. Eu gostaria de os ter escrito desde o começo do processo, mas, além de não me deixarem escrever, o passo foi tão rápido que eu não teria realmente o tempo.
Eu morro na religião católica, apostólica e romana, naquela de meus pais, naquela em que fui criada, e que eu sempre professei. Não tendo nenhuma consolação espiritual a esperar, não sabendo se existem ainda aqui padres desta religião, e de resto o lugar onde estou os exporia demais se eles aqui entrassem uma vez. Eu peço sinceramente perdão a Deus por todas as faltas que pude cometer desde que existo. Eu espero que, em Sua bondade, Ele queira receber bem minha alma em Sua misericórdia e Sua bondade. Eu peço perdão a todos aqueles que eu conheci e a vós minha irmã, em particular, por todas as penas que, sem querer, eu tenha porventura causado. Eu perdoo a todos os meus inimigos e o mal que eles me fizeram. Eu digo aqui a minhas tias e a todos os meus irmãos. Eu tive amigos; a ideia de ser separada deles para sempre e suas penas são uma das maiores aflições que eu carrego ao morrer. Que eles saibam ao menos que até o meu último momento, eu pensei neles.
Adeus, minha boa a terna irmã. Que esta carta possa vos chegar. Pensai sempre em mim; eu vos beijo com todo o meu coração, assim como a estas pobres e queridas crianças. Meu Deus! como é dilacerante deixá-las para sempre! Adieu, adieu, eu não me ocuparei mais senão de meus deveres espirituais. Como eu não sou livre em minhas ações, alguém me trará talvez um padre, mas eu protesto aqui que eu não lhe direi uma só palavra e que eu o tratarei como um ser absolutamente estrangeiro.