Extratos do ensaio homônimo de Marie le Jars de Gournay. Île-de-France, 1622 d.C.
Tradução de Marcelo Consentino
A maior parte das pessoas que tomam a causa das mulheres contra aquela orgulhosa preferência que os homens se atribuem, lhes dão o valor todo, redirecionando a preferência a elas. Eu que fujo de todos os extremos, eu me contento de as igualar aos homens: opondo-se a natureza, nessa questão, tanto à superioridade quanto à inferioridade. Que digo, não basta a algumas pessoas preferir o sexo masculino, se eles não as confinam como num cárcere irrefragável à roca, sim, mesmo à roca somente. Mas aquilo que pode consolá-las contra esse desprezo, é que ele não é praticado salvo por aqueles dentre os homens aos quais elas menos quereriam se assemelhar: pessoas que confeririam verossimilhança às reprimendas que se poderia vomitar sobre o sexo feminino, se a ele pertencessem, e que sentem em seu coração não poderem se recomendar salvo pelo crédito de outros. Por terem ouvido trombetear pelas ruas que às mulheres falta dignidade, e falta também suficiência, faltando com efeito o temperamento e os órgãos para se chegar a isso, a eloquência deles triunfa em pregar estas máximas: e tanto mais opulentamente na medida em que dignidade, suficiência, órgãos e temperamento são belas palavras – não tendo aprendido de outra parte, que a primeira qualidade de um homem estúpido, é caucionar as coisas sob a fé popular e por ouvir dizer. Vede tais espíritos compararem estes dois sexos: a mais alta suficiência a seu ver onde as mulheres podem chegar, é se assemelhar ao comum dos homens: tão longe estão de imaginar que uma grande mulher possa se dizer grande homem, mudado o sexo, quanto de consentir que um homem possa se elevar ao patamar de um Deus. Gente mais valente que Hércules verdadeiramente, que não abateu mais que doze monstros em doze combates; ao passo que com uma só palavra eles abatem a metade do Mundo. Mas quem acreditará que aqueles que se querem elevar e fortificar pela fraqueza de outrem, podem se elevar e fortificar pela sua própria força? E o melhor é que eles pensam estar quites de seu descaramento ao vilipendiar este sexo, usando de um descaramento semelhante para se louvar e se dourar a si mesmos. . . . E se eu julgo bem, seja a dignidade, seja a capacidade das mulheres, eu não pretendo nesse momento prová-las através de razões, porque os obstinados poderiam debatê-las, nem através de exemplos, posto que são demasiado comuns; mas somente pela autoridade de Deus mesmo, dos arcobotantes de sua Igreja e desses grandes homens que serviram de luz ao Universo. Desfilemos essas gloriosas testemunhas à nossa frente, e reservemos Deus, depois os Santos Padres de sua Igreja, à intimidade, qual um tesouro.
Platão a quem ninguém questionou o título de divino, e consequentemente Sócrates seu intérprete e avatar em seus Escritos (quando não o é do próprio Sócrates, seu mais divino preceptor) lhes designa os mesmos direitos, faculdades e funções em suas Repúblicas e por toda outra parte. Considera, além disso, que elas superaram muitas vezes todos os homens de suas Pátria – como de fato elas inventaram parte das mais belas artes, ultrapassaram, de fato ensinaram catedraticamente e soberanamente acima de todos os homens sobre todos os tipos de perfeições e virtudes, nas mais famosas cidades antigas entre outras Alexandria, primeira do Império depois de Roma. Donde se chega que estes dois filósofos, milagres da Natureza, acreditaram dar mais lustre a discursos de grande peso, se pronunciados em seus livros pela boca de Diotima de Aspásia – Diotima que aquele último não hesitava em chamar sua mestra e preceptora, em algumas das mais altas ciências, ele, preceptor e mestre do gênero humano. . . .
Ora, se as mulheres chegam com menos frequência que os homens aos graus de excelência, é de se maravilhar que a falta de uma boa instrução, de fato a afluência da má, expressa e professada, não faça pior, impedindo-as de poder chegar por completo. Acaso se vê aí mais diferença entre os homens e elas do que entre elas e elas mesmas, conforme a instrução que receberam, conforme elas são criadas em cidade ou vilarejo, ou conforme as Nações? E por que a instrução ou educação delas nos negócios e nas letras tal qual os homens, não preencheriam esse vazio que se mostra ordinariamente entre as cabeças dos mesmos homens e as suas – uma vez que a educação é tão importante que mesmo em uma só de suas ramificações, como o comércio do mundo, abundante entre as francesas e inglesas, e carente entre as italianas, estas são em geral tão ultrapassadas por aquelas? Digo em geral porque em particular as mulheres da Itália por vezes triunfam, e tiramos delas duas rainhas, a cuja prudência a França deve muito. Por que, com efeito, a educação não conquistaria esse resultado, de preencher a distância que se vê entre os intelectos dos homens e das mulheres; visto que no exemplo acima o menos supera o mais, pela assistência de uma só de suas parcelas, falo desse comércio e dessa conversação – o ar das italianas sendo mais sutil e próprio a sutilizar os espíritos, como se mostra entre os seus homens, confrontados comumente contra aqueles dos franceses e ingleses?
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De resto o animal humano não é nem homem nem mulher, se bem entendido, sendo os sexos feitos não de maneira simples, mas secundum quid, como falam os escolásticos: ou seja, somente para a propagação. A única forma e diferença deste animal, não consiste senão na alma humana. E se é permitido rir en passant, não será fora de lugar aquele gracejo que nos ensina que não há nada mais semelhante ao gato sobre uma janela, que a gata. O homem e a mulher são de tal forma unos, que se o homem é mais do que a mulher, a mulher é mais do que o homem. O homem foi criado macho e fêmea, diz a Escritura, não considerando esses dois senão um. Daí que Jesus Cristo seja chamado filho do homem, ainda que não o seja senão da mulher. Assim fala depois o grande São Basílio: A virtude do homem e da mulher é a mesma coisa, posto que Deus lhes conferiu a mesma criação e a mesma honra: masculum et foeminam fecit eos. Ora, naqueles cuja Natureza é una e mesma, é preciso que as ações também o sejam, e que a estima e o louvor devidos sejam iguais, ou que as obras sejam iguais. Eis, pois, a depoimento desse potente pilar e venerável testemunha da Igreja. . . .
Quanto ao feito de Judite eu não me dignaria a mencioná-lo se ele fosse particular, ou seja dependente do movimento e da vontade de sua autora – eu já não falarei mais de outros desse calibre; ainda que sejam imensos em quantidade, como são também heróicos em qualidades de todos os tipos, tanto quanto aqueles que coroam os mais ilustres dos homens. Eu não registro os feitos privados, por temor de que eles pareçam, não vantagens e dons do sexo, e sim ebulições de um vigor privado e especial. Mas aquele de Judite merece um lugar aqui, por ser verdade que seu desígnio recaiu sobre o coração de uma jovem donzela, entre tantos homens vis e fracos de coração, em tal necessidade, em tão alta e difícil empresa, e por tais frutos, tal como a salvação de um Povo e de uma Cidade fiel a Deus – parece antes ser uma inspiração e prerrogativa divina para com as mulheres, que um gesto puramente voluntário. Como também parece ter sido aquele da Donzela de Orleans [Joana d’Arc], acompanhado mais ou menos das mesmas circunstâncias, mas de mais ampla e larga utilidade, estendendo-se até a salvação de um grande Reino e de seu Príncipe.
Esta ilustre Amazona instruída aos cuidados de Marte,
Rompeu esquadrões e infortúnios por toda parte:
Vestindo o duro peitoral sobre seu redondo seio,
Cujo mamilo púrpura cintila de graças cheio:
Para com glórias e lauréis seu chefe coroar,
Virgem, os mais famosos guerreiros ela ousa enfrentar.
Acrescentemos que a Madalena é a única alma a quem o Redentor chegou a pronunciar a seguinte palavra, e prometeu a seguinte augusta graça: Em todos os lugares onde se pregará o Evangelho se falará de ti. Jesus Cristo, de resto, declara sua mui feliz e gloriosa ressurreição às damas primeiro, a fim de lhes tornar, diz um venerável Pai antigo, Apóstolas para os próprios Apóstolos – isso, como se sabe, com a missão expressa: Vai, diz ele àquela mesma, e relata aquilo que tu viste. . . . E se os homens se jactam de que Jesus Cristo seja nascido de seu sexo, responda-se que assim era preciso por necessária decência, pois ele não poderia, sem escândalo, se misturar jovem em todas as horas do dia e da noite entre as massas, com o fim de converter, socorrer e salvar o gênero humano, se ele fosse do sexo das mulheres – notadamente dada a malignidade dos Judeus. E se alguém for ademais tão tolo a ponto de imaginar o masculino e o feminino em Deus – pois ainda que seu nome pareça soar no masculino não há consequente necessidade de aceitação de um sexo mais do que outro para honrar a encarnação de seu filho – esse alguém mostra à plena luz do dia que é tão mau Filósofo quanto Teólogo. De resto, a vantagem que têm os homens pela encarnação dele em seu sexo (se acaso podem tirar uma vantagem, vista a necessidade apontada acima) é compensada por sua concepção preciosíssima no corpo de uma mulher, pela inteira perfeição desta mulher, única a levar o nome de perfeita entre todas as criaturas puramente humanas, depois da queda de nossos primeiros pais, e por sua assunção única em forma humana também. Finalmente, se a Escritura declarou o marido chefe da mulher, a maior estupidez que o homem pode cometer é tomar isso por um privilégio de dignidade. Pois vistos os exemplos, autoridades e razões apontadas neste discurso, pelo qual a igualdade de graças e favores de Deus para com os dois sexos foi provada, de fato a sua unidade mesma, e visto que Deus pronunciou “Os dois serão um” e pronunciou ainda “O homem deixará pai e mãe para se unir à sua mulher”, parece que tal declaração não é feita senão pela necessidade expressa de nutrir a paz no matrimônio. Tal necessidade requer, sem dúvida, que uma das partes ceda à outra, e a presença das forças do macho não poderia suportar que a submissão viesse de sua parte. E ainda que fosse verdade, como alguns sustentam, que esta submissão foi imposta à mulher como castigo pelo pecado da maçã, isso ainda está bem longe de nos levar a concluir pela suposta preferência de dignidade no homem. Se acreditarmos que a Escritura ordena que ela ceda ao homem, como indigna de se contrapor a ele, vede o absurdo que se seguiria: a mulher se veria digna de ser feita à imagem do Criador, de gozar da santíssima Eucaristia, dos mistérios da Redenção, do Paraíso e da visão, mesmo da posse de Deus, mas não das vantagens e privilégios do homem: não significaria isso declarar que o homem é mais precioso e elevado que tais coisas, e portanto cometer a mais grave das blasfêmias?
Tradução: Marcelo Consentino
Original: Egalité des Hommes et des Femmes.
Ilustração: Detalhe de A expulsão do Jardim do Eden, afresco de Masaccio da Igreja Santa Maria del Carmine em Florença (1425)