Das Histórias de Polibius. Roma, século II a.C.
Na Constituição romana a partilha de poder por todo o Estado foi regulamentada com tamanho escrúpulo em relação à igualdade e ao equilíbrio que ninguém, sequer um nativo, pode dizer com certeza se a Constituição como um todo é uma aristocracia ou uma democracia ou uma monarquia. E não surpreende, pois se restringirmos a nossa observação ao poder dos cônsules seremos inclinados a olhá-la como monárquica e régia; se para o do Senado, como aristocrática; e finalmente se olharmos para o poder possuído pelo povo, parecerá mais como uma democracia. Quais foram e, com pequenas modificações, são exatamente os poderes de cada uma destas partes, eu exporei a seguir.
Os cônsules, antes comandantes das legiões, permanecem em Roma e são os supremos soberanos da administração. Todos os outros magistrados, exceto os tribunos, estão sob eles e obedecem suas ordens. Eles introduzem embaixadores estrangeiros ao Senado, trazem-lhe assuntos que requerem deliberação, e providenciam a execução de seus decretos. Se, mais uma vez, há qualquer assunto de Estado que requer a anuência do povo, é sua incumbência velar por ele, convocar assembleias, trazer propostas a elas, e cuidar da execução dos decretos do povo. Nas preparações para a guerra também, e, numa palavra, em toda a administração de uma campanha, eles têm poder absoluto. Cabe a eles impor aos aliados os encargos que julgarem adequados, apontar os tribunos militares, providenciar o recrutamento de soldados e selecionar os mais aptos. Além disso, eles tem poder absoluto de infligir castigos a todos aqueles sob seu comando enquanto estão em serviço; e eles têm a autoridade de despender tantos recursos públicos quanto quiserem, sendo acompanhados pelo questor, que está totalmente sob suas ordens. Um simples exame destes poderes justificaria a descrição dessa Constituição como puramente monárquica e régia. E a verdade de minha descrição não será afetada se quaisquer das instituições que eu enumerei forem alteradas em nosso tempo, ou de nossa posteridade, e as mesmas observações se aplicam ao que se segue.
O Senado tem antes de mais nada o controle do tesouro, e regula tanto a arrecadação quanto as despesas. Pois os questores não podem empregar o dinheiro público nos vários departamentos do Estado sem um decreto do Senado, exceto para o serviço dos cônsules. O Senado controla também aquela que é de longe a maior e mais importante despesa, a saber, aquela empregada pelos censores a cada cinco anos para o reparo ou a construção de edifícios públicos; este dinheiro não pode ser utilizado pelos censores exceto sob a anuência do Senado. Similarmente, todos os crimes cometidos na Itália que requerem uma investigação pública, tais como os crimes de lesa-pátria, conspiração, envenenamento, ou homicídio doloso, estão nas mãos do Senado. Além disso, se qualquer indivíduo ou povo entre os aliados italianos solicitam que uma controvérsia seja dirimida, ou que uma pena seja executada, ou que alguma proteção seja garantida – tudo isso é província do Senado. Ou ainda, fora da Itália, se é necessário enviar uma embaixada para reconciliar comunidades beligerantes, ou para relembrá-los de seus deveres, ou, às vezes, para impor exigências sobre eles, ou receber sua submissão, ou finalmente para proclamar guerra contra eles – isto também é encargo do Senado. Igualmente, a recepção a ser dada a embaixadores estrangeiros a Roma, e a resposta a lhes ser entregue, são decisões do Senado. Em tais questões o povo não tem qualquer parte. Consequentemente, alguém que visite Roma quando os cônsules não estão na cidade, pensaria que a sua Constituição é a de uma completa aristocracia: e esta é a ideia compartilhada por muitos gregos e por muitos reis, do fato de que quase todos os negócios que eles têm em Roma foram regulados pelo Senado.
Depois disso, é-se naturalmente inclinado a se perguntar qual parte tem o povo na Constituição, quando o Senado tem tantas funções, especialmente o controle da arrecadação e das despesas do tesoureiro; e quando os cônsules, mais uma vez, tem poder absoluto sobre os detalhes da preparação militar e absoluta autoridade no campo de batalha. Há, no entanto, uma parte reservada ao povo, e da maior importância. Pois o povo é a única fonte de honra e ignomínia, e é exclusivamente por estas duas coisas que dinastias e constituições e, numa palavra, a sociedade humana se mantém unida; pois onde a distinção entre as duas não é nitidamente traçada, tanto na teoria quanto na prática, aí nenhum empreendimento pode ser adequadamente administrado – como, de fato, podemos esperar quando ao bom e ao mau se confere a mesma honra. O povo, desta forma, é a única corte a quem cabe decidir questões de vida e morte, mesmo nos casos em que a punição é meramente pecuniária, se a soma em questão é suficientemente relevante, e especialmente quando o acusado tiver sido investido das mais altas magistraturas. E em relação a esta composição, há um ponto que merece especial atenção e registro. Os homens julgados por penas capitais em Roma, enquanto a sentença está em fase de votação – se mesmo uma única das tribos cujos votos são necessários para ratificar a sentença não tiver votado –, têm o privilégio de partir e condenar a si mesmos ao exílio voluntário. Tais homens estão a salvo em Nápoles, Preneste ou Tibur, e outras cidades com as quais este estatuto foi plenamente sacramentado por um juramento.
Mais uma vez, é o povo que confere a quem merece os cargos, os quais são os mais honrados prêmios da virtude. Ele também tem o poder absoluto de aprovar ou rejeitar leis, e, mais importante do que tudo, é o povo que delibera pela guerra ou pela paz. E quando os termos foram estabelecidos para alguma aliança, suspensão das hostilidades ou tratados, é o povo que os ratifica ou os reverte. Estas considerações, mais uma vez, poderiam levar alguém a afirmar que o poder soberano do Estado é o do povo, e que a sua constituição é uma democracia.
Esta é, portanto, a distribuição de poder entre as várias partes do Estado. Eu devo agora mostrar como estas partes podem, se o quiserem, opor-se ou apoiar-se umas às outras.
Assim o cônsul, após ter iniciado uma expedição com os poderes que descrevi, é, para todos os efeitos, absoluto na administração do empreendimento em questão; ainda assim ele precisa do suporte do povo e do Senado, e sem eles é totalmente incapaz para levar o assunto a um termo bem sucedido. Pois obviamente ele deve ter mantimentos enviados às suas legiões de tempos em tempos, mas sem um decreto do Senado eles não podem ser supridos nem com comida nem com uniformes nem com salários, de modo que todos os planos de um comandante serão fúteis se o Senado estiver resolvido a recuar ante algum perigo ou a oferecer empecilhos aos seus planos. E, de novo, se um cônsul levará qualquer empresa a uma conclusão ou não, isso depende inteiramente do Senado, pois ele tem autoridade absoluta no fim do ano para enviar outro cônsul e substitui-lo, ou para prorrogar o mandato do atual. Mais uma vez, mesmo ao sucesso dos generais o Senado tem o poder de acrescentar distinção e glória, ou por outro lado de obscurecer seus méritos e atenuar o seu crédito. Pois estas grandes conquistas são levadas em forma tangível ante os olhos dos cidadãos por aquilo que chamam “triunfos.” Mas estes triunfos os comandantes não podem celebrar com a requerida pompa, ou em certos casos sequer os podem celebrar, a menos que o Senado aquiesça e lhes ceda os recursos necessários. Quanto ao povo, os cônsules são eminentemente obrigados a cortejar seus favores, por mais distantes que sejam os seus empreendimentos, pois é o povo, como eu disse acima, que ratifica, ou se recusa a ratificar, termos de paz e tratados, mas acima de tudo porque ao entregarem seu cargo eles são obrigados a prestar contas de sua gestão. Por isso, em hipótese alguma é seguro para os cônsules negligenciar seja o Senado seja a boa vontade do povo.
Quanto ao Senado, que possui o poder imenso que eu descrevi, em primeiro lugar ele é obrigado nos negócios públicos a tomar a multidão em conta, e respeitar os desejos do povo; e não pode executar penas por ofensas contra a República que sejam puníveis com a morte, a menos que o povo primeiro ratifique seus decretos. Igualmente, mesmo em questões que afetam diretamente os senadores – por exemplo, no caso de uma lei que reduza a autoridade tradicional do Senado, ou prive os senadores de certas dignidades e ofícios, chegando eventualmente desapropriá-los de algum bem – mesmo nesses casos cabe exclusivamente ao povo aprovar ou rejeitar a lei. Mas mais importante do que tudo é o fato de que se um único tribuno da plebe interpõe o seu veto, o Senado não somente é incapaz de promulgar o decreto, mas não pode sequer realizar uma sessão plenária, seja formal ou informal. Ora, os tribunos sempre são obrigados a seguir as deliberações do povo, e acima de todas as coisas de velar por seus anseios; portanto, dadas todas estas razões, o Senado teme a multidão, e não pode negligenciar os sentimentos do povo.
Do mesmo modo, o povo, de sua parte, está longe de ser independente do Senado, e é obrigado a levar suas diretrizes em consideração tanto coletiva quanto individualmente. Pois concessões, muito numerosas para serem contadas, são celebradas pelos censores em todas as partes da Itália para a manutenção ou para a construção de edifícios públicos; há ainda recursos relativos a muitos rios, docas, jardins, minas e terra – tudo, em uma palavra, que cai sob o controle do governo romano –, e em tudo isso o povo de um modo geral está envolvido empregado, de modo que dificilmente se encontrará um homem, por assim dizer, que não tenha interesse nessas concessões e que não lucre com elas. Pois alguns compram as concessões dos censores para si mesmos, outros celebram parcerias com eles, enquanto outros ainda se fazem fiadores dessas concessões ou ainda solicitam ao tesouro que os façam proprietários delas. Pois bem, sobre todas essa transações o Senado tem controle absoluto. Ele pode conceder um determinado período de tempo, e no caso de um acidente imprevisto pode liberar os contratantes de parte de suas obrigações, ou liberá-los por completo caso sejam totalmente incapazes de cumpri-las. E há muitos detalhes nos quais o Senado pode infligir grandes empecilhos, ou, por outro lado, oferecer grandes indulgências aos contratantes. Mas o ponto mais importante de todos é que na maioria dos julgamentos, sejam públicos ou privados, nos quais as acusações sejam demasiado graves, os juízes são recrutados de seus membros. Consequentemente todos os cidadãos estão deveras à sua mercê e, prevendo situações em que possam vir a precisar de seu auxílio, são cautelosos ao resistir ou se opor abertamente à sua vontade. E por uma razão similar os homens não se apressam em resistir à vontade dos cônsules, porque um ou todos podem vir a se tornar súditos de sua autoridade absoluta durante uma campanha.
O resultado desse poder das diversas classes tanto para o auxílio quanto para o prejuízo mútuo, é uma coesão suficientemente firme para todas as emergências, e portanto a melhor constituição possível. Pois sempre que alguma ameaça externa os compele a se unirem e trabalharem juntos, a força desencadeada pelo Estado é tão extraordinária que todas as coisas necessárias são infalivelmente executadas pela ardente rivalidade demonstrada por cada classe para devotar toda a sua mente às exigências da hora, e para assegurar que qualquer determinação não venha a falhar por falta de prontidão; ao mesmo tempo em que cada indivíduo trabalha, tanto privadamente quanto publicamente, para o sucesso do empreendimento em questão. Assim, a constituição peculiar deste Estado faz com que ele seja irresistível, e seguro para obter seja lá o que ele se determinar a obter. E mesmo quando estas ameaças externas passam, e o povo goza novamente de sua boa fortuna e do fruto de suas vitórias, corrompendo-se, como costuma acontecer, pela lisonja e pelo ócio, e revelando uma tendência à violência e à arrogância – mesmo, e mais do que nunca, nessas circunstâncias essa Constituição mostra ter em si o poder de corrigir os abusos. Pois quando qualquer uma das três classes se faz prepotente, manifestando uma inclinação ao conflito e à usurpação, a interdependência de todas as três, e a possibilidade das pretensões de cada uma delas serem reprimidas pelas outras duas, acabam por manter sob controle tal inclinação; e assim o equilíbrio necessário é mantido na medida em que a impulsividade de uma parte é coibida pelo temor da outra.