Extratos em prosa da Chanson de Roland redigida em francês antigo por um poeta anônimo com base nas tradições orais sobre o cavaleiro carolíngio Hruodland, o Valente, também conhecido como Orlando ou Roldán. Século XI d.C.
Por volta do ano 770 Carlos Magno comanda seu exército numa expedição contra os muçulmanos na Espanha. Depois de sete anos, a última cidade a resistir é Saragossa, sob o comando do rei Marsílio, que na iminência da catástrofe envia mensageiros ao Imperador, oferecendo tesouros, reféns e sua conversão ao cristianismo, caso os francos retornassem à França. Carlos aceita o pacto e confere ao seu sobrinho e primeiro capitão Roland a missão de concluí-lo, enquanto ele conduz a retirada das tropas pelos Pirineus. Roland nomeia de boa-fé seu padrasto Ganelon como emissário junto à Marsílio. Ganelon, porém, pérfido e ressentido, suspeita tratar-se de uma missão suicida e, decidido a se vingar de Roland, informa aos sarracenos um meio de emboscar a retaguarda deixada por Carlos no desfiladeiro de Roncevaux. Como previsto por Ganelon, enquanto Carlos atravessava a fronteira rumo à França, no comando da retaguarda estava Roland, com sua legendária espada Durendal e seu berrante de alerta, secundado pelo amigo Olivier, irmão de sua noiva Aude, e pelo Arcebispo Turpin.
A Traição
– Senhor e companheiro – disse Olivier – creio que talvez tenhamos de combater com os sarracenos.
Roland respondeu-lhe:
– Que Deus nos permita! Não devemos arredar pé daqui para batalharmos pelo nosso rei. Pelo nosso senhor devemos sofrer privação e suportar todo o calor e todo o frio. Os pagãos não têm razão e os cristãos têm por seu lado o direito. Nunca o mau exemplo partirá de mim.
Olivier sobe numa colina elevada. Olha para a direita e vê o exército pagão vindo pelo vale esverdeado. Chama o seu companheiro Roland:
– Vem se aproximando, diz ele, um grande rumor do lado da Espanha. Quantas couraças brancas e quantos elmos flamejantes! Foi Ganelon que nos traiu, foi ele que nos denunciou ao rei.
– Cala-te Olivier – responde o conde Roland –; é meu padrasto, não quero que digas dele nem uma palavra.
Olivier subiu a uma colina donde via bem o reino de Espanha e os sarracenos que se reuniram em tão grande número, com os elmos reluzentes, cobertos de ouro e de pedrarias, e os escudos e as couraças bordadas e recamadas de ouro e as alabardas e as bandeiras atadas às lanças. Mas não pôde contar os batalhões. Eram tantos que não sabia o número deles. Desce da colina e vem contar o que vira aos franceses:
– Vi tantos pagãos – diz Olivier – como nenhum homem jamais viu. São bem uns cem mil, com os seus escudos, os seus elmos enlaçados, as suas couraças brancas, as suas lanças eretas, as suas alabardas reluzentes. Tereis uma batalha, como nenhuma outra houve no mundo. Senhores franceses, que Deus vos dê a sua força.
E os franceses respondem:
– Ai daquele que foge! Mas para morrer nenhum vos há de faltar.
– Os pagãos têm grande força – diz Olivier – e os nossos franceses parecem-me tê-la bem pouca. Companheiro Roland, tocai o vosso berrante: Carlos o ouvirá e fará voltar o seu exército.
Roland responde:
– Seria preciso que eu enlouquecesse, e se o fizesse, a doce França perderia o meu renome. Não! logo os ferirei com grandes golpes de Durendal. A bainha ficará tinta de sangue até ao ouro do punho; os nossos franceses bater-se-ão também com coragem. Os traidores pagãos vieram a estes desfiladeiros para sua perda. Juro-vos que todos estão condenados à morte.
– Companheiro Roland, tocai o berrante. Carlos o ouvirá e fará voltar o grande exército. O rei virá socorrer-nos com seus barões.
– Não será por mim que meus pais serão censurados ou que a doce França há de cair em vilipêndio. Eu hei de ferir corajosamente com Durendal, a minha boa espada que trago à cinta; vereis a sua lâmina toda ensanguentada. Os traidores pagãos vieram se reunir aqui para sua desgraça; eu vos juro que todos hão de sofrer a morte.
– Companheiro Roland, tocai o vosso berrante. Se o som chegar a Carlos, que agora atravessa os desfiladeiros, eu vos juro, os franceses retornarão.
– Praza a Deus – responde Roland – que nunca seja dito por nenhum homem vivo que por pagãos soei o alarme. Os meus pais não terão que se envergonhar. Quando estiver na grande batalha hei de dar mil e setecentos golpes. Heis de ver o aço de Durendal encharcado em sangue. Os franceses são bons; lutarão valentemente; os de Espanha não terão remédio contra a morte.
Olivier diz:
– Não entendo o que há de mau nisso. Vi os sarracenos de Espanha; os vales e as montanhas estão cobertos por eles, e os charcos e todas as planícies. Grande é o exército desta gente estrangeira, e nós temos muito poucos homens.
Roland responde:
– O meu ardor é ainda maior. Deus não queira, nem os seus santos anjos, que por minha causa a França perca o seu valor! Mais vale morrer, do que ficarmos para nos cobrirmos de vergonha. Quanto mais batalharmos, mais o imperador nos amará!
Roland é bravo e Olivier sensato; e ambos têm uma maravilhosa coragem. Pois que estão a cavalo e armados, por medo da morte não se esquivarão à batalha. Os condes são intrépidos e as suas palavras altivas. Os traidores pagãos vem cavalgando com grande furor.
Olivier diz:
– Roland, olhai, eles estão já muito perto, mas Carlos está bem longe de nós. Não quisestes tocar o vosso berrante; se o rei aqui estivesse, não nos aconteceria mal, mas aqueles que estão além não merecem censuras. Olhai para os desfiladeiros de Aspre, ali podeis ver a vanguarda; mas quem faz esta campanha não fará nunca mais outra.
Roland responde:
– Não digas tal vilania. Maldito seja aquele cujo coração se acovarda! Nós não arredaremos pé deste lugar.
Quando vê que se vai travar a batalha, torna-se mais altivo que um leão ou um leopardo. Lança conclamações os franceses, depois interpela Olivier:
– Companheiro, não fales assim. Pelo nosso senhor devemos sofrer grandes males e suportar os maiores frios e os maiores calores. Devemos perder o nosso sangue e a nossa carne. Fere com o teu machado e eu ferirei com Durendal, a boa espada que o rei me deu. Se eu morrer, quem ficar com ela poderá dizer que foi de um nobre vassalo.
O arcebispo Turpin está em oura parte. Esporeia o seu cavalo, sobe a um outeiro, chama os franceses, e fala-lhes assim:
– Senhores barões, Carlos nos pôs aqui. Devemos morrer pelo nosso rei. Ajudai a a cristandade a se defender. Se morrerdes, sereis santos mártires, tereis assentos no grande Paraíso.
Os franceses descem dos cavalos, prosternam-se, e o arcebispo abençoa-os em nome de Deus. Os franceses se erguem, foram completamente absolvidos dos seus pecados. O arcebispo abençoa-os em nome de Deus; depois todos montam nos seus rápidos corcéis. Estão armados como cavaleiros e estão todos prontos para a batalha. Para os desfiladeiros de Espanha parte Roland montado em Veillantif, o seu bom cavalo voador. Leva consigo as suas armas, que tão bem lhe ficam. Segura na sua alabarda, cujo ferro está voltado para o céu; em cima, está enlaçada uma bandeira muito branca. As franjas de ouro batem-lhe nas mãos. Tem o corpo muito belo, o rosto claro e sorridente, e o seu companheiro Olivier vem após ele. Olha altivamente para os sarracenos, mas para os franceses com um olhar modesto e doce. Depois lhes diz cortesmente estas palavras:
– Senhores barões, teremos uns belos despojos, nenhum rei de França teve uns assim tão ricos.
Começa a batalha
Então os dois exércitos encontram-se.
Olivier diz:
– Não tenho que falar; não vos dignastes tocar o vosso berrante e não tereis o apoio de Carlos. Ele não sabe nada do que se passa, e a culpa não é dele, daquele bravo. Aos que estão além não cabe censura. Agora, cavalgai tanto quanto puderdes, senhores barões, e não desanimeis. Em nome de Deus vos rogo, formai o bom propósito de receber e de dar e não esqueçamos a divisa de Carlos.
A estas palavras os franceses não respondem senão com um grito. Quem então os ouviu gritar: “Montjoie!” com verdadeira coragem, ainda há de se lembrar hoje. Depois vão cavalgando, Deus meu, com que altivez! Esporeiam os seus cavalos para ir mais depressa. Eles vão batalhar — que deveriam eles fazer? — mas os sarracenos não se amedrontam; francos e pagãos, ei-los face a face.
O sobrinho de Marsílio (ele tem por nome Aelroth) é o primeiro a cavalgar diante do exército. Tem boas armas, um cavalo ágil e forte, cobre de injúrias os nossos franceses:
– Traidores franceses, hoje lutareis contra nós. Aquele que devia vos defender, vos traiu. Louco é o rei que vos deixa nestes desfiladeiros; a doce França perderá aqui o seu renome e Carlos, o grande, o braço direito do seu corpo. Os desfiladeiros de Espanha ficarão em repouso.
Quando Roland o ouviu, que indignação o tomou! Esporeou o cavalo com as suas esporas de ouro. Quebrando o escudo de Aelroth, tira-lhe a couraça, rasga-lhe o peito, quebra-lhe os ossos, dilacera-lhe toda a espinha dorsal, e com a sua alabarda lança-lhe a alma fora do corpo. Não o abandona sem lhe dizer:
– Miserável! Carlos não é louco e nunca amou a traição. Como bravo procede deixando-nos nos desfiladeiros. A doce França não perderá hoje a sua glória. Lutai franceses! O primeiro combate é nosso! Do nosso lado está o direito; são esses depravados que não o têm.
Ali [entre os inimigo] há um duque que tem por nome Tausserou. É o irmão do rei Marsílio. Possui a terra de Dathan e de Abirou. Entre os seus olhos tem a fronte tão larga que lhe cabe bem metade dum pé. Cheio de dor ao ver seu sobrinho morto, sai da multidão, põe-se em frente das fileiras, levanta o grito dos pagãos e provoca os franceses :
– Hoje a doce França perderá a sua honra.
Olivier ouve-o e sente uma grande cólera; esporeia o seu cavalo com as suas esporas de ouro e fere o sarraceno com verdadeiro golpe de barão, quebra-lhe o escudo, rompe-lhe a couraça e com a lança deixa-o morto, lançando-o fora da sela. Então põe os olhos em terra, vê o depravado estendido e dirige-lhe estas altivas palavras:
— Celerado, desprezo as vossas ameaças. Lutai franceses, havemos de os vencer.
E grita:
—Montjoie!
É a divisa de Carlos.
(…)
A batalha é maravilhosa! É um massacre. O conde Roland não receia se expor. Serve-se da alabarda enquanto ela lhe dura; ao décimo quinto golpe a arma quebra-se e já não existe. Puxa Durendal, a sua boa espada desembainhada, esporeia o cavalo e vai ferir Chernublo. Quebra-lhe o elmo em que luzem carbúnculos, a branca couraça de malhas finíssimas, fere-lhe o corpo, chega-lhe à sela que é recamada de ouro. A espada faz cair mortos sobre o prado, sobre a erva espessa, o cavalo e o cavaleiro. Depois disso lhe diz:
– Bandido, ai de ti! Maomé não virá em teu auxílio. Não será por um tal depravado que a batalha de hoje será ganha.
O conde Roland vai cavalgando através do campo de batalha, Durendal em punho, que corta e retalha os sarracenos e lhes causa grandes perdas. Toda a sua couraça e os seus braços estão cheios de sangue, assim como o pescoço e os ombros do seu bom cavalo.
Olivier cavalga através da refrega. Quebrou a haste da sua lança e não tem mais do que uma simples tora. Então arremete-se contra um pagão, Mausserou, quebra-lhe o escudo que está coberto de ouro e de flores, põe-lhe os dois olhos fora da cabeça e os miolos caem-lhe aos pés. Deita-o por terra morto com setecentos dos seus. Depois mata Turgin e Estorgons. Mas a haste da sua lança se estraçalha até ao punho, Roland lhe diz:
– Companheiro, que fazeis vós? Não é dum bastão que se precisa em tal batalha. O ferro e o aço, eis as nossas armas! Onde está então a vossa espada que tem por nome Hauteclaire, o seu punho é de ouro e a maçã de cristal.
Sire Olivier desembainha a sua boa espada que o seu companheiro tanto lhe pedira e mostra-lhe como cavaleiro. Com ela fere um pagão, Justino de Val Ferrée; racha-lhe a cabeça ao meio, retalha seu corpo e estende-o morto sobre o prado.
Roland lhe diz:
– Eu vos recebo por irmão. Por tais façanhas o imperador vos ama.
De todas as partes se grita:
Montjoie!
A batalha tornou-se horrível. Francos e pagãos combatem maravilhosamente. Uns atacam, outros se defendem. Muitas lanças estão partidas e ensanguentadas. Muitos bons franceses perdem ali a sua juventude. Nunca mais tornarão a ver suas mães nem suas mulheres, nem os franceses que os esperam nos desfiladeiros. Carlos, o grande, [hoje] os chora e lamenta. Mas de que serve! Não haverá ninguém que os vá socorrer! Ganelon prestou-lhes um mau serviço no dia em que a Saragoça foi vender a sua casa real.
A batalha é maravilhosa e tremenda. Olivier e Roland combatem com vigor. O arcebispo Turpin dá mais de mil golpes. Os doze pares não lhes ficam atrás. Os pagãos morrem aos cem e aos mil. Quem não foge não escapa à morte. Quer queiram, quer não, todos ali deixam os seus dias. Os franceses ali perdem a sua melhor defesa, tantos valentes cavaleiros que não verão mais seus pais nem seus parentes nem Carlos Magno que os espera à saída dos desfiladeiros!
Na França há uma maravilhosa tempestade. Ouve-se o trovão e o vento; chove, graniza desmedidamente. O raio cai muitas vezes e há na verdade um tremor de terra. Desde Saint-Michel-du-Péril até Seniz, desde de Besançon até ao porto de Wissant não há casas cujas paredes não se abalem. Mesmo ao meio-dia há grandes trevas. Não há claridade senão quando a faz o raio. Alguns dizem: “É o fim do mundo, o fim do século presente.” Eles não sabem, não dizem nada do que realmente é: é o grande luto pela morte de Roland.
O rei pagão chega ao campo de batalha
Os franceses batalham com coragem e com vigor e os pagãos morrem aos milhares. De cem mil não se salvam dois milhares. O arcebispo exclama:
– Os nossos homens são uns heróis e nunca um rei teve melhores servidores.
(…)
Então o rei Marsílio surge com o seu imenso exército. Marsílio vem pelo meio dum vale com o grande exército que reuniu. Em vinte colunas ele o dispõe. Veem-se brilhar os elmos constelados de ouro e de pedrarias e as alabardas e os estandartes e os escudos e as couraças bordadas; sete mil clarins tocam a investir, grande é o ruído por toda a região. Roland diz:
– Olivier, companheiro, irmão, Ganelon o traidor jurou a nossa morte, e a traição não pode ser encoberta. Grande vingança tirará o imperador. Teremos uma batalha forte e rude. Nunca em tempo algum se viu um encontro assim. Eu batalharei com a minha espada Durendal e tu, companheiro, com a tua Hauteclaire.
(…)
Quando os franceses veem o imenso o número de pagãos e o campo completamente coberto por eles, clamam a Olivier e a Roland e aos doze pares, para que eles os protejam. Então o arcebispo lhes diz:
– Senhores barões, por Deus vos peço que não deserteis. Vale mais que morramos no combate. É certo que vamos morrer, é este o último dia da nossa vida, mas uma coisa vos posso afiançar: o santo paraíso vos será aberto, entre os inocentes vos assentareis.
A estas palavras os francos retomam coragem. Atiram para diante os rápidos corcéis e não há ninguém que não grite: – Montjoie!
A batalha é extraordinária e acelerada. Deus! quantas cabeças cortadas, quantas couraças arrebentadas! Sobre a erva verde corre abundante o sangue claro. Os pagãos dizem uns para os outros:
– Não podemos sofrer mais. Terra major! que Maomé te amaldiçoe. O teu povo é o mais ousado de todos. Não há nenhum que grite: “Cavalga, ó rei, nós temos necessidade de auxílio.”
A batalha é maravilhosa e grande. Os franceses ferem com as suas alabardas brunidas; deveríeis ter visto as grandes dores, tantos homens mortos, aflitos e ensanguentados! Quantos bons cavalos erram no campo da batalha, arrastando as rédeas pendidas no meio do seu peitoral. Os sarracenos não podem suportar o combate por mais tempo. Quer queiram quer não, têm de abandonar o campo de batalha e de ceder terreno. Os francos perseguem-nos com viva força. (…) Matam-nos, mesmo ao pé de Marsílio. Marsílio assiste ao massacre dos seus. Faz tocar as trombetas. Depois monta a cavalo com o seu grande exército, reunido por sua conclamação. Na frente cavalga um sarraceno chamado Abime. Não há maior pérfido na sua tropa. Está coberto de crimes e de grandes perversidades. Não crê em Deus, o filho de Maria. É negro como piche derretido. Ama a traição e a perfídia mais do que todo o ouro da Galícia. Nenhum homem jamais o viu brincar nem rir, mas tem bravura e uma grande audácia. É por isso que Marsílio, o rei pérfido, o estima tanto.
O arcebispo começa a batalha. Monta num cavalo que tomou ao rei Grossaille (que matara na Dinamarca). O corcel é rápido e fogoso. Tem os pés finos e as pernas lisas, a coxa curta e as formas arredondadas, o pescoço bem feito até a garganta, a cauda branca e a crina amarela, a orelha pequena, a cabeça fulva. Não há animal que se compare. O arcebispo o esporeia, e tão valentemente que não pode deixar de cair sobre Abime. Este vai-lhe bater com o seu escudo maravilhoso, coberto de pedrarias, de ametistas, de topázios, de diamantes e de carbúnculos ardentes. Turpin ataca-o sem dó nem piedade. Depois dum tal ataque o escudo já não vale um tostão. Atravessa-lhe o corpo de parte a parte e estende-o já morto. Exclama:
– Montjoie!
É o grito de Carlos.
O conde Roland chama Olivier:
– Senhor e companheiro, não sois do parecer que o arcebispo é muito bom cavaleiro, e que não há nenhum melhor sobre a terra e sob o céu? – O conde diz:
– Vamos auxiliá-lo!
A estas palavras os franceses recomeçam a batalha. Os cristãos, sofrem grandes perdas.
Os amigos se despedem
Dava gosto de ver Roland e Olivier ferir talhando com as suas espadas. O arcebispo por seu lado, serve-se da alabarda. Pode-se avaliar bem o número dos que mataram. Está escrito nas cartas e nos breves. A Gesta diz que mataram mais de quatro mil. Aos quatro primeiros embates, tudo vai bem para os franceses, mas o quinto lhes é cruel e funesto. Todos os cavaleiros de França morreram ali. Deus não poupou senão sessenta. Mas antes de morrer, hão de se vender bem caro.
O conde Roland vê esta imensa perda.
Então chamando seu amigo Olivier:
– Caro amigo, por Deus, que ele vos proteja! Vede estes valentes caindo por terra. Choremos. Ah, que desgraça! a doce França, que vai ficar sem estes barões. Rei bem-amado, se estivesses aqui!… Caro Olivier, meu irmão, que fazer? Por qual meio lhe enviar notícias?”
– Eu não sei, murmurou Olivier. Antes morrer que incorrer em desonra.
– Ah, diz Roland, eu soarei o berrante. Carlos no caminho o ouvirá ressoar; e os franceses virão, eu vos juro.
Mas Olivier:
– Isso será uma grande vergonha; e a reprovação irá para vossos pais. Por toda a sua vida eles corarão. Quando eu vos falei vós não o fizestes; agora o fareis sem meu apoio. Depois, podereis vós soar com todo vigor, tendo já os dois braços totalmente ensanguentados?
– Sim – diz Roland – eu dei golpes ferozes… Ah, retomou ele, a batalha é violentíssima: eu vou soar; o rei Carlos ouvirá.
– Vós sabeis bem que isso não é coisa de homens corajosos – diz Olivier. Quando eu vos supliquei, vós não ousastes, amigo, o fazer. E não obstante, se Carlos estivesse aqui, não teríamos sofrido tamanha desgraça. Aqueles lá não tem culpa.
E acrescentou:
– Por esta minha barba, se chegar a rever Aude minha gentil irmã, vós nunca a tereis por esposa.
Roland responde:
– Por que esta cólera?
Mas Olivier:
– A culpa é sua, amigo. A grandeza quer bom senso e não loucura. Mais que furor vale a sábia medida. Quanto mal causou a vossa temeridade! Estes franceses mortos estão aí por vossa culpa. Carlos não terá mais os nossos serviços. Ele estaria aqui, ele, se vós tivesses confiado em mim; e nós teríamos vencido esta batalha. Capturado ou morto teria sido o rei Marsílio… Fostes valente: mas isso para a vossa perda. E Carlos Magno não terá mais a sua ajuda, este rei tão grande que, até o dia do Julgamento jamais se verá homem igual. É bem cruel. Vós morreis, Roland; e sobre a França se derramará a vergonha. Ademais aqui morre nossa amizade leal: antes desta noite nós seremos separados.
Roland o ouve, e seu coração se enternece. Eles se amam muito; e um pelo outro, choram.
Turpin ouviu a discussão entre Olivier e Roland. Esporeando seu cavalo com suas duas esporas de ouro, ele os aborda e se mete e reprová-los:
– Sire Roland, e vós, sire Olivier, por Deus, não discutis mais! Vosso berrante não pode nos salvar. É bom, portanto que agora soeis o chifre. Que o rei venha: ele poderá nos vingar; e os pagãos não terão um retorno feliz. Quando nossos franceses puserem o pé aqui, e nos encontrarem mortos e esquartejados em pedaços, eles nos porão em seus cavalos, na doce França, estirados em ataúdes. E lá, chorados com dor e piedade, depois enterrados em frente aos mosteiros, nós dormiremos. Nem lobos, nem porcos, nem cães, farão com nossa carne suas refeições.
– Dizeis bem, sire – respondeu Roland.
Roland põe então o berrante em seus lábios; o ajusta firme e soa a plenos pulmões.
Altos são os montes; e o som vai longe. O eco responde a mais de trinta léguas.
Carlos ouve; seus companheiros ouvem.
– Ah – diz o rei – nossos homens se entregaram à batalha!
A morte de Roland
Roland sente que a sua morte está próxima, pois seu cérebro lhe sai pelos ouvidos. De mãos unidas, ele ora а Deus pelos seus pares, pedindo-lhe para que Ele os traga a si, e para si próprio invoca o anjo Gabriel. Segura o berrante e Durendal a sua espada. Entra num campo e sobe a um outeiro. Debaixo de duas belas árvores há quatro degraus de mármore. Sobre a erva verde, Roland cai para trás. Desfalece porque a morte não lhe tarda.
Altos são os picos e altíssimas são as árvores. Há ali quatro degraus de mármore luzidio. Sobre a erva verde, o conde Roland esvanecia. Enquanto isso um sarraceno o espiava; fingindo-se de morto, jaz entre os outros, enche de sangue o seu corpo e o seu rosto, levanta-se dum salto e mete-se a correr. É belo, forte e de grande coragem. Cheio de orgulho e de raiva mortal lança-se sobre Roland, soltando este grito:
– Vencido está o sobrinho de Carlos! Eu levarei esta espada para a Arábia.
Toma-a no seu punho e puxa a barba de Roland.
Roland sente que lhe tiram a espada, abre os olhos e não diz mais do que isto:
– Tu não és dos nossos.
Ele pega o berrante que nunca quis abandonar. Bate com ele no pagão sobre o elmo coberto de ouro e pedrarias, quebra-lhe o aço e a cabeça e os ossos, faz-lhe saltar os olhos da cabeça e prostra-o morto a seus pés.
– Infame – diz ele – como te atreveste a cair sobre mim? Quem o vier a saber o terá por doido. O pavilhão de meu berrante está já rachado, e os cristais e o ouro lhe caíram.
[Todos os franceses estão mortos], Roland sente que a sua morte [também] se avizinha, levanta-se, e tenta fazer esforço, mas o rosto perdeu a sua cor habitual, segura em Durendal, a sua espada, e tem-na desembainhada. Diante dele está uma pedra escura. Bate sobre ela por dez vezes, cheio de cólera e de dor. O aço range, mas não quebra, nem se amassa, e o conde diz:
– Santa Maria, socorrei-me! Ah! Durendal, minha boa espada, que desgraça! Mesmo quando me separar de ti, ainda me sentirei inquieto pela tua honra. Contigo ganhei muitas batalhas e conquistei muitos vastos países. Não te terá o homem que foge diante de outro. Enquanto for vivo, ninguém me desfará de ti. Um belo guerreiro te teve durante muito tempo. Nunca haverá um assim em toda a França, e livre.
Roland bate na pedra de sardônica, o aço range e não se quebra nem se amassa. Quando vê que não a pode quebrar, põe-se a lamentá-la:
– Ó minha Durendal, como tu és clara e branca! Como reluzes e flamejas ao sol! Carlos estava nos vales de Maurienne quando Deus do alto do céu lhe ordenou pelo seu anjo que te desse a um corajoso capitão. Foi então que ele a pôs na minha cinta, o nobre rei, o Magno. Com ela conquistei-lhe Anjou e a Bretanha, conquistei-lhe Poitou e Maine, conquistei-lhe a livre Normandia, conquistei-lhe a Provença e a Aquitânia e a Lombardia e toda a România; conquistei-lhe a Puglia, a Calábria, e a Borgonha e a terra de Espanha; eu lhe conquistei a Baviera e toda a Flandres, e a Hungria e toda a Polônia; Constantinopla, de que ele recebeu homenagem, e a Saxônia, que fez o que ele exigiu. Com ela conquistei-lhe a Escócia, Gales, Irlanda e a Inglaterra, de que ele fez domínio seu. Com ela conquistei tantos países e tantas terras onde reina Carlos que tem a barba branca! Sinto dor e saudade desta espada. Mais vale morrer que deixá-la aos pagãos. Deus nosso pai poupe esta vergonha à França!
Roland bate sobre uma pedra escura. A espada range, ela não dobra nem quebra, salta ao céu. Quando o conde vê que a não pode quebrar, muito docemente se lastima no seu íntimo:
— Ah, Durendal! como tu és bela e santa. No teu punho dourado há muitas relíquias: um dente de São Pedro e sangue de São Basílio e cabelos de São Diniz e vestes da Virgem Maria. Não é justo que os pagãos te possuam, deves ficar a serviço dos cristãos. Praza a Deus que tu não caias nas mãos dum covarde!
Roland sente que a morte se apodera dele, que lhe desce da cabeça ao coração. Ele corre para debaixo de um pinheiro, deita-se em cima da erva verde com a face encostada à terra; põe debaixo dele a sua espada e a sua buzina, volta a cabeça para os pagãos, e se o faz, é por querer ficar certo de que Carlos e todos os seus digam depois que ele morreu, o bravo conde, como vencedor. Repete lentamente o seu mea culpa; pelos seus pecados a Deus, oferece a sua luva.
Roland sente que o seu tempo está contado. Sobre um pico de onde se avista a Espanha, acha-se estendido. Com uma mão bate no peito:
– Mea culpa, meu Deus, pelas tuas virtudes, pelos meus pecados, os grandes e os pequenos, que cometi desde a hora em que nasci até a hora da morte.
Estende para Deus a luva da sua mão direita. Os anjos do céu descem para ele.
O conde Roland está estendido debaixo dum pinheiro, voltou a cabeça para o lado de Espanha. Muita coisa lhe vem à memória: todas as terras que ele conquistou, a doce França, Carlos, o grande, seu senhor, que o apoiou, e os franceses que lhe foram tão dedicados. Não pôde deixar de chorar e suspirar, mas também não se quer esquecer a si mesmo; reza o mea culpa e implora a mercê de Deus:
– Nosso verdadeiro Pai, que nunca mentes, que ressuscitaste São Lázaro da morte e salvaste Daniel dos leões, salva a minha alma de todos os perigos pelos pecados que cometi na minha vida!
Ele oferece a Deus a luva da sua mão direita e São Gabriel toma-a na sua mão. Deus envia-lhe o seu anjo querubim, São Rafael e São Miguel. Com eles foi Gabriel para o paraíso, levam consigo a alma do conde. Leva ao céu sobre as asas dos anjos, que vão cantando as eternas alegrias, e diante de Jesus depõem Roland.
Epílogo – O retorno do rei cristão
O imperador finalmente chega a Roncevaux. Não há uma única estrada, um único caminho, nenhuma vara de terra, nenhum pé de terreno, onde não haja um francês ou um pagão. Carlos grita:
– Onde estás tu, belo sobrinho? Onde está o arcebispo e o conde Olivier? onde está Gérin e o seu companheiro Gérier? onde está Otto e o conde Bérenger? Ive e Ivoire, que eu tanto amei? que foi feito do gascão Engelier? onde está Gérard de Rossillon? onde estão os doze pares que tinha deixado aqui?…
Puxa pela sua barba, como um homem que está perturbado, chora amargamente, assim como os seus bravos cavaleiros.
(…)
Os pagãos batem em disparada; mas os franceses os perseguem. Alcançam-nos por fim, em Val-Ténèbres e impelem-nos para Saragoça; batem neles, matam-nos, cortam-lhes todos os caminhos. Têm diante de si o curso do Ebro. O rio é profundo e a corrente maravilhosamente rápida. Os pagãos invocam Maomé, Tervagan e Apolo; depois saltam na água, mas não acham ali a salvação. Os cobertos de armaduras, os que são mais pesados, caem pela maior parte no fundo do rio… Todos acabam por se afogar nas maiores aflições. E os franceses exclamavam:
– Foi para vossa desgraça que vós vistes Roland!
(…)
O imperador volta de Espanha. Vem a Aix-en-Provence, a melhor sede do império, sobe ao palácio, entra na sala. Vem ter com ele Aude, a bela dama. Diz ela ao rei:
– Onde está o capitão Roland, que me jurou tomar-me por esposa?
Carlos não pôde resistir a tanta dor e a tanta pena; chora amargamente, puxa pela barba branca:
– Irmã, querida amiga, tu me pedes notícias de um homem morto. Dar-te-ei em troca um melhor: é Luís, é o meu filho.
Aude responde:
– Estranhas palavras; que Deus não queira, nem os seus santos, nem os seus anjos, que depois de Roland eu fique viva!
Perde a cor e cai aos pés de Carlos Magno. Morre imediatamente. Deus tenha piedade de sua alma!…