Príamo oferece a Aquiles um resgate pelo corpo de Heitor
Do último canto da Ilíada de Homero. Século VIII a.C.
Quase 10 anos de guerra. Heitor, a esperança dos troianos, foi morto por Aquiles que há doze dias brutaliza o seu cadáver para vingar a morte do amado Patroclus, e já o teria dilacerado não fossem as intervenções de Apolo. Instados por ele, os deuses deliberam pela restituição do corpo para que se cumpram os sacrifícios funerais.
A ninfa Tétis é encarregada de anunciar a decisão ao seu filho Aquiles, e Íris ao rei Príamo, que segue imediatamente com seu escudeiro Ideus ao acampamento grego. A meio caminho da orla, Zeus envia Hermes, metamorfoseado em um soldado amistoso da tribo de Aquiles, os mirmidões, para instruir Príamo e ajudá-lo a cruzar os portões.
Então o mensageiro Hermes abriu os portões para o ancião, e desceu do do carro que trazia as magníficas ofertas para Aquiles dos pés rápidos, o filho de Peleus; e então disse: “Meu bom senhor, eu que vim a você na verdade sou um deus imortal, Hermes; pois o Pai celeste me mandou para guiá-lo em seu caminho. Mas chegou a minha hora de retornar. Não irei à vista de Aquiles, pois haveria boas razões para inquietação se um deus imortal fosse visto assim abertamente na companhia de mortais. Mas você, siga adiante, entre, abrace os joelhos do filho de Peleus e relembre-o de seu pai e de sua mãe de lindos cabelos e de seu filho, para que assim você comova a sua alma”.
Assim falou Hermes, e partiu para o alto Olimpo; e Príamo desceu de seu carro para o chão, e deixou lá o cocheiro Ideus, que permaneceu segurando os cavalos e mulas; e o ancião seguiu diretamente para a tenda onde Aquiles, querido a Zeus, costumava se sentar. Lá ele encontrou Aquiles, enquanto seus camaradas estavam reunidos à parte, com exceção de dois, o guerreiro Automedon e Alcimus, rebento de Ares, que permaneciam, prestativos, junto a ele; e ele acabara de consumir carne, de comer e de beber, e a mesa ainda estava ao seu lado. Passando despercebido, Príamo entrou e, aproximando-se, abraçou com suas próprias mãos os joelhos de Aquiles, e beijou suas mãos, as mãos terríveis, dizimadoras de homens, que massacraram muitos de seus filhos. E Aquiles foi tomado pelo espanto à vista de Príamo, semelhante aos deuses, e tomados pelo espanto foram também os outros, e assim como fazem os homens quando na casa de um grande soberano aparece um estrangeiro em busca de refúgio após ter, num momento de insanidade, assassinado um homem em sua própria terra, todos se maravilharam e se olharam entre si.
Mas Príamo lhe suplicou, dizendo: “Lembre-se, ó Aquiles, semelhante aos deuses, de seu pai, cujos anos se emparelham aos meus no doloroso limiar da velhice. Talvez os seus vizinhos o atormentem, e não haja ninguém para protegê-lo contra a guerra e a destruição. Mesmo assim, ao saber que você ainda vive ele se alegra em seu coração, e dia após dia espera ver o seu querido filho retornando das terras troianas. Mas eu, eu sou totalmente desgraçado, pois gerei muitos filhos, os melhores na vasta terra de Troia, mas eu digo que nenhum deles me resta. Tinha cinquenta filhos, quando os gregos chegaram; dezenove foram gerados no mesmo ventre e os outros por mulheres do meu palácio. O furioso Ares quebrou a força dos joelhos da maior parte deles, e o único que me foi deixado para guardar a cidade e seus homens, Heitor, a ele você matou enquanto combatia por nosso povo. Por ele eu venho agora aos navios dos gregos, para retomá-lo de suas mãos, e trago comigo ofertas de um valor incalculável. Respeite então os deuses, Aquiles, e tenha piedade de mim, lembrando-se de seu pai. Ai de mim, que sou muito mais miserável do que ele, e sofri o que nenhum outro mortal na face da terra jamais sofreu, eu que toquei com meus lábios as mãos do homem que matou meus filhos”.
Assim ele falou, e despertou em Aquiles o desejo de chorar por seu pai; e ele ergueu o velho pela mão e gentilmente o pôs diante de si. Então os dois se lembraram de seus mortos, e choraram; um chorou dolorosamente por Heitor, o matador de homens, enquanto se encolhia aos pés de Aquiles, mas Aquiles chorou por seu próprio pai e também por Patroclus; e o som das lamentações preencheu todo o recinto. Mas quando o divino Aquiles se satisfez de tanto chorar e a saudade partiu de seu coração e de seus membros, então ele se levantou de sua cadeira e ergueu o ancião pela mão, sentindo compaixão por sua cabeça grisalha e sua barba grisalha; e ele falou, dirigindo-lhe estas breves palavras: “Ah, pobre homem, certamente o senhor teve de suportar muitas aflições em sua alma. Como pôde ter a coragem de vir sozinho aos navios dos gregos para olhar nos meus olhos, eu que matei tantos de seus valorosos filhos? Em verdade, seu coração é de ferro. Mas venha, sente-se numa cadeira, e, apesar do nosso tormento, nossas angústias se aquietarão em nossos corações; pois não há nada a se ganhar com a cruel lamentação. Porque esta é a sina que os deuses reservaram aos miseráveis mortais: nós devemos viver na dor, enquanto eles não padecem tristezas. Sim, pois sob o pórtico de Zeus há duas urnas repletas de dons que ele distribui, uma com desgraças e outra com benesses. Se Zeus, o senhor dos trovões, as mistura e as confere a algum homem, ele se move ora na miséria ora na glória. Mas quando Zeus reserva a alguém os dons tirados da urna dos males, este se torna um desgraçado entre os homens, e a terrível loucura o apaga da face da sagrada terra, enquanto vagueia desprezado pelos deuses e pelos mortais. Veja, a Peleus os deuses agraciaram com dons magníficos desde o seu nascimento; pois ele superou todos os homens em bens e em saúde, e foi rei sobre os mirmidões, e a ele, que não passava de um mortal, os deuses concederam uma deusa como esposa. Ainda assim, mesmo a ele os deuses trouxeram calamidades, pois em sua gloriosa casa jamais chegou a despontar uma linhagem de filhos fortes, mas só um único filho, condenado a um fim prematuro. E eu não posso cuidar dele enquanto envelhece, já que estou longe, muito longe de minha terra, em Troia, atormentando você e seus filhos. E de você, meu bom senhor, ouvimos como há muito tempo foi agraciado; e como sobre todo o mar de Lesbos, incluindo o reino de Macar, e a Frígia nas terras altas, e o imenso Helesponto, sobre tudo isso, dizem, você, meu bom senhor, foi soberano em razão de suas riquezas e de seus filhos. E não obstante, desde a época em que os deuses celestiais precipitaram sobre o senhor esta catástrofe, desde então sua cidade foi cercada por batalhas e massacres. Mas anime-se, e não chore mais em seu coração, pois não há nada a se ganhar com a dor por seu filho; o senhor jamais o trará de volta; e logo há de enfrentar outra dor”.
E o velho Príamo, semelhante aos deuses, lhe respondeu: “Não me faça sentar numa cadeira, ó Aquiles, querido a Zeus, enquanto Heitor permanece abandonado entre suas barracas; não, dê-me-o de volta o mais rápido possível, para que meus olhos o contemplem; e aceite como resgate este grande pagamento que lhe trazemos. Que você se regozije com ele, e volte à sua terra nativa, sabendo que poupou a minha vida”.
Então, olhando-o com irritação, Aquiles, dos pés rápidos, falou: “Não me provoque, meu bom senhor; eu mesmo já me havia predisposto a lhe devolver Heitor; pois de Zeus veio uma mensageira, a minha própria mãe, que me gerou, filha do ancião do mar. Eu conheço você, Príamo, em meu coração, e não me escapa que algum deus o conduziu por entre os velozes barcos gregos. Pois nenhum mortal, ainda que fosse o mais jovem e forte, ousaria vir ao nosso acampamento; e ele não escaparia aos nossos sentinelas, e tampouco abriria com facilidade os portões. Portanto, não atice mais meu coração entre minhas angústias, pois temo, meu bom senhor, não poupar a sua vida, nem mesmo em meio às suas súplicas, tornando-me assim culpado contra os desígnios de Zeus”.
Assim ele falou, e o velho foi tomado pelo pavor e assentiu às suas palavras. E como um leão, o filho de Peleus cruzou porta afora – e não foi só, pois com ele seguiram seus dois escudeiros, o guerreiro Automedon e Alcimus, aqueles que Aquiles, após a morte de Patroclus, honrava acima de todos os seus companheiros. Eles então soltaram os cavalos e mulas dos arreios, e conduziram para dentro o arauto, o cocheiro do velho rei, acomodando-o em uma cadeira; e de seu bem trabalhado carro extraíram incontáveis espólios pela cabeça de Heitor. Mas deixaram lá dois robes e uma túnica finamente trançada, para que nelas Aquiles pudesse amortalhar o cadáver e assim entregá-lo em condições de voltar para sua casa. Então Aquiles chamou suas serviçais ordenando-lhes que lavassem e untassem o corpo, e o levassem a um lugar apartado, temendo que Príamo, à vista de seu filho, talvez não fosse capaz, na dor de seu coração, de reprimir a sua cólera, despertando assim a cólera no coração do próprio Aquiles, que poderia vir a matá-lo, pecando assim contra a ordem de Zeus. Então, depois que as serviçais lavaram o cadáver, o untaram com óleo e o envolveram com uma bela túnica e um manto, o próprio Aquiles o carregou depositando-o em um ataúde, e junto com seus companheiros o levou até o belo carro de Príamo. Então ele soltou um gemido, e clamou pelo nome de seu querido amigo: “Não se zangue comigo, Patroclus, se acaso ouvir na casa de Hades que eu devolvi o divino Heitor ao seu querido pai, pois grande é o resgate que ele me ofereceu. E a você eu darei a sua parte no espólio, em tudo o que é devido”.
Tradução: Marcelo Consentino
Ilustração: Sarcófago em Tiro, século II d.C.
Locução: Elisa Touchon Fingerman
Produção de som: LuppiArts